A hora de embainhar as espadas
Aníbal Cavaco Silva esteve a muito curta distância de um discurso capaz de pôr em causa o rumo da política portuguesa. A crueza com que expôs os riscos para as opções estratégicas do país dos últimos 40 anos, a constatação de que esta é a pior hora para experimentalismos e a afirmação de que o PSD, o CDS e o PS constituem um bloco programático fundado na ideia da Europa apoiado pela “maioria esmagadora dos portugueses” nas eleições de 4 de Outubro seriam motivos suficientes para tirar o sono às alas socialistas que olham para um acordo à esquerda com choque e pavor.
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Aníbal Cavaco Silva esteve a muito curta distância de um discurso capaz de pôr em causa o rumo da política portuguesa. A crueza com que expôs os riscos para as opções estratégicas do país dos últimos 40 anos, a constatação de que esta é a pior hora para experimentalismos e a afirmação de que o PSD, o CDS e o PS constituem um bloco programático fundado na ideia da Europa apoiado pela “maioria esmagadora dos portugueses” nas eleições de 4 de Outubro seriam motivos suficientes para tirar o sono às alas socialistas que olham para um acordo à esquerda com choque e pavor.
O problema é que Cavaco Silva é Cavaco Silva. Se expôs ao país os riscos de uma mudança sistémica produzida por uma aliança do PS com partidos que, até à data, pelo menos, tudo fizeram para dinamitar a base dos compromissos europeus, foi incapaz de situar esse combate nos limites da razão e do sentido de Estado. Deixou-se levar pelo ressentimento, essa mácula perene do seu perfil político. Afundou-se nos ódios de estimação. Arrogou-se ao direito de estabelecer pela frágil luz das suas convicções quem pode e quem não pode ser poder em Portugal. E abdicou de ver o país pelos olhos dos outros, a essência de qualquer cultura de compromisso democrático.
Talvez nunca na história recente um discurso, na sua essência legítimo e pertinente, redundou num tão grande e grotesco desastre político. Não fossem as 112 palavras a mais que Paulo Ferreira judiciosamente contou num artigo no Observador, e Cavaco teria deixado o país moderado e centrista, que abarca uma franja significativa do PS, a pensar nas suas causas e nos seus alertas. Mas ao apresentar-se como uma ameaça externa à unidade do partido, o Presidente teve o condão de matar à nascença qualquer veleidade de oposição a António Costa. Com tanto menosprezo pelo Bloco e pelo PCP, com tão ostensiva intenção de os condenar ao ostracismo, Cavaco deu gás a uma onda de simpatia em favor dos proscritos. Porque se é verdade que há uma franja significativa (arrisco a dizer maioritária) de cidadãos que olha a aproximação do PCP e do Bloco ao PS como um casamento de água com azeite, só a extrema-direita ultramontana acredita que Catarina Martins ou Jerónimo de Sousa são um perigo.
Ao sitiar-se do lado da barricada da direita, usando uma terminologia extremista, Cavaco Silva causou dois graves danos ao país. Primeiro, agravou o clima irrespirável que se começa a sentir, um ar cheio de acusações de golpismo, de usurpação, de moções de rejeição, de alegadas falhas de carácter, de sequestros da Assembleia da República, de derrubes de governos ou de supostas ilegitimidades. As redes sociais ficaram intoxicadas pelo desprezo de quem pensa diferente, de intolerância, por vezes pelo ódio mais ou menos dissimulado. Há quem queira vir para a rua “defender” o regime, como se o regime estivesse cercado por tanques. Em segundo lugar, deixou no futuro próximo um horizonte de incerteza que não ajuda nada. O Presidente sabe que o Governo de Passos Coelho é um nado morto e tinha o dever de ser prudente na consideração dos cenários com os quais vai ter de se confrontar quando o seu óbito for confirmado.
As suas palavras foram tão ambíguas que, ao certo, ninguém sabe se está disposto a aceitar um governo do PS apoiado pela esquerda ou se lhe passa pela cabeça manter Passos Coelho em gestão durante pelo menos oito meses. Essa incerteza é já de si um atentado à estabilidade que Cavaco tanto preza na vida política, mas tem ainda uma outra consequência: a de o condenar a uma derrota desnecessária. Quando chegar a hora de propor o Governo ao segundo partido mais votado, o Presidente aparecerá aos olhos do país com a pálida aura de um homem vencido por si próprio e pelas circunstâncias que criou.
Há quem acredite que um cenário assim penoso será suficiente para Cavaco Silva se deixar levar pelos maus fígados e insistir num governo de gestão. Mas um cenário dessa gravidade deixá-lo-ia no regaço da direita radical. Uma opção dessas, para lá dos danos irremediáveis que provocaria na economia, nas finanças públicas e na imagem externa do país, colocaria a maioria dos cidadãos em estado de pré-sublevação. Havendo conformidade constitucional, que ninguém nega, o Presidente não pode deixar de ir ao encontro da plataforma de esquerda que se desenha. Não pode impor as suas convicções pessoais à soberania popular representada na Assembleia. Cavaco Silva tem, por isso, de agir como é comum nas democracias: reconhecendo que é a Lei Fundamental que baliza os limites da vida política. O seu medo é a Europa, mas, que se saiba, o PCP ou o Bloco são mais democráticos e até mais tolerantes à Europa do que os Verdadeiros Finlandeses, que estão no poder em Helsínquia, ou do que a extrema-direita racista que partilhou o governo na Áustria.
A única margem de manobra que resta ao Presidente para um cenário extremo é a possibilidade de o acordo ou acordos do PS com o Bloco e o PCP apresentarem um programa que ameaçasse “syrizar” o país. Não parece que o Bloco e o PCP estejam dispostos a ir por aí. A revogação do Tratado Orçamental não está em cima da mesa, não consta que as metas do Pacto de Estabilidade e Crescimento sejam contestadas nem nada sugere que a renegociação da dívida entre no acordo. O pouco que se sabe é suficiente para percebermos que, sendo um Governo rendido aos lobbies dos professores e, em geral, do funcionalismo público, não é um manifesto de vontade dos delírios do Bloco nem dos devaneios do PCP. Ainda é cedo para ter certezas, mas fica-se com a ideia que Catarina Martins e Jerónimo de Sousa se aproximaram mais das “opções fundamentais do país” do que Costa se afastou delas.
Resta-nos por isso esquecer o ardil que esteve na origem do acordo (uma negociata nos bastidores sem ser apresentada ao escrutínio democrático dos eleitores na campanha), ou a confirmação de que também na esquerda os cadernos de encargos dos programas são letra morta. O que agora importa é encarar o futuro como uma surpreendente normalidade. O que parecia impossível vai mesmo acontecer. Vem aí um Governo de esquerda que, se não puser em causa os fundamentos da Europa, da democracia aberta e da economia social de mercado, deve ser apoiado ou criticado como todos os demais. Procure-se o lado bom das coisas: Jerónimo de Sousa pode ter a cabeça minada pelo marxismo-leninismo, mas é dos poucos políticos em Portugal a quem se podia comprar um carro em segunda mão; Catarina Martins tem um verbo jacobino, mas dispõe de uma inteligência estratégica que pode ser útil; aprecie-se a sensatez de deputados como Elísio Estanque ou a perseverança e capacidade de análise e de estudo de Mariana Mortágua.
O pior que pode acontecer nesta fase da vida nacional é deixar que a guerra latente e facciosa que minou a Primeira República e levou o país ao limite, nos idos de 1975, regresse e se instale. Se o Governo do PS, do Bloco e do PCP é constitucional, pois que avance. Vai ter muitos problemas a resolver e muitas contradições a superar, mas os cidadãos cá estarão para o julgar na hora do voto. Agora, o melhor mesmo é meter as espadas nas bainhas e acreditar que o apocalipse vislumbrado pelo Presidente não passou de uma má digestão ideológica. Não acreditar na bondade de um governo de esquerda e execrar o processo que o constituiu não justificam o clima áspero e o ambiente putschista que se pressente. Tolerância e respeito pelo pluralismo democrático serão os bens mais preciosos para os duros tempos que aí vêm.