“É fundamental arranjar uma saída decente a José Eduardo dos Santos”
Rafael Marques defende que é urgente “criar um quadro de transição” para Angola, que demova o actual Governo pacificamente e prepare a realização de eleições livres e justas no futuro.
Tem sido um dos mais ferozes críticos do regime de José Eduardo dos Santos (JES), um dos que mais tem apontado críticas aos 36 anos de governação do MPLA. Rafael Marques, o mais premiado jornalista angolano, activista dos direitos humanos, defende um governo de transição de modo a preparar pacificamente a sucessão de JES e a realização de eleições livres e justas. “É fundamental, num momento em que impopularidade do presidente nas conversas de rua em Luanda já se torna hábito, encontrar vias para arranjar-lhe uma saída decente. Quanto mais ele insistir nos seus métodos ultrapassados de usar o poder judicial como escudo da sua política de repressão e de má-fé política, mais ele se afundará no poço da sua incapacidade em compreender que chegou o momento de ser humilde e que chegou o tempo de passar o testemunho”.
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Tem sido um dos mais ferozes críticos do regime de José Eduardo dos Santos (JES), um dos que mais tem apontado críticas aos 36 anos de governação do MPLA. Rafael Marques, o mais premiado jornalista angolano, activista dos direitos humanos, defende um governo de transição de modo a preparar pacificamente a sucessão de JES e a realização de eleições livres e justas. “É fundamental, num momento em que impopularidade do presidente nas conversas de rua em Luanda já se torna hábito, encontrar vias para arranjar-lhe uma saída decente. Quanto mais ele insistir nos seus métodos ultrapassados de usar o poder judicial como escudo da sua política de repressão e de má-fé política, mais ele se afundará no poço da sua incapacidade em compreender que chegou o momento de ser humilde e que chegou o tempo de passar o testemunho”.
Critica ferozmente o governo e JES. Que solução propõe para Angola?
Estamos numa fase que precisamos com urgência de criar um quadro de transição, a passagem de pastas deste governo para um governo inclusivo que possa traçar um caminho e definir o rumo da economia deste país de forma aberta. O dinheiro do petróleo desapareceu e não houve diversificação da economia. Andaram-nos a mentir este tempo todo a dizer que tinham investido na agricultura.
O mais importante é que, mais dia, menos dia, o presidente tem que sair. E temos que pensar num cenário pós dos Santos, em como vamos construir a estabilidade e criar um sistema de governo que permita efectivamente reforma das forças armadas angolanas, da economia, das empresas estatais.
É necessário que haja um plano de transição para que tanto os membros do MPLA, da oposição, da sociedade civil sintam alguma segurança, algum entendimento de que a transição não causará tremores outra vez na paz e na ideia de que não queremos mais guerras, confusões, instabilidade. Para que isso aconteça é importante que os 40 anos de independência signifiquem sobretudo a cedência do poder para serventia dos angolanos. O presidente deve ter a iniciativa já que começa a amarfanhar todos os angolanos que comecem a falar publicamente disso.
Está a sugerir que essa transição não seja feita através de eleições?
As eleições foram sequestradas como mecanismo de manutenção do poder, de legitimação do poder. Não resolvem o problema da proibição das manifestações, [direito] que está consagrado na Constituição. As eleições servem apenas, pela forma como são organizadas, para manipular a vontade popular a favor do MPLA: é isso que são as eleições em Angola. Como se permite que o MPLA possa organizar manifestações e a oposição não possa? Que a sociedade civil não possa? Então a democracia é só meter lá o voto, o povo não tem mais direitos? Não tem direito a habitação, a emprego, a nada? É isso que é a democracia?
Mas a questão não é arranjar meios para que as eleições sejam feitas de forma democrática?
Nós temos que conversar porque são muitos anos a excluir as pessoas de bem do processo político, quer ao nível do MPLA, quer ao nível da oposição. Então é necessário que haja um mecanismo de transição para permitir pessoas com conhecimentos, integridade, boa-fé, muitas das quais possam então vir a dar o seu contributo.
Qual é a legitimidade de substituir um grupo por outro sem ser pela via das eleições?
Qual é a legitimidade para se saquear o país? Onde está escrito na Constituição que os dirigentes têm o dever e o direito de saquear o país? Onde está na Constituição a legitimidade para o governo coarctar o exercício dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos? As eleições não conferem legitimidade para isso, por isso temos que pensar o país de forma muito mais séria e não nos atermos apenas aquilo que é fundamental como mecanismo de legitimação do poder. Por isso é que em África, em grande parte das vezes, quando os ditadores se apanham com o poder utilizam sempre a desculpa das eleições porque a comunidade internacional reconhece apenas as eleições como único mecanismo de realização da democracia – e não é.
Então qual seria outro mecanismo?
Estou a falar de um mecanismo de transição que deve ser discutido por todas as partes, deve ser discutido de forma inclusiva pela sociedade para criar um ambiente que permita que até à realização das eleições seja a celebração da liberdade e da participação dos cidadãos na vida pública. As eleições não permitem isso. Dias antes das eleições de 2012 estava o governo a reprimir manifestações.
Quem lideraria esse processo? Gostava de o liderar?
Há políticos e cidadãos para liderar este processo. Estou a falar como cidadão que tem conhecimento da estrutura política e organizativa do estado angolano e o que é necessário fazer para que de facto haja mudanças a esse nível. Tenho todo o direito de propor e o facto de propor não significa que seja eu a liderar ou a fazer parte deste processo. Como indivíduo que pensa, que analisa processos, até porque especializei-me em estudos africanos, analisei processos de implementação da democracia em vários países africanos, estou em condições de dizer que há aqui uma via que podemos abraçar.
Como seria na prática esse processo de transição?
Só com o diálogo. Não é a imposição de uma agenda. Temos que criar uma agenda de concertação resultante de um diálogo abrangente entre os vários extractos políticos. E dessa agenda o que se determinar e for consensual é o que deve ser implementado para que se acabe com as imposições. Certamente as pessoas terão ideias muito boas, quer a nível do MPLA, da UNITA, da sociedade civil, para se encontrar esta agenda de transição e dar garantias de segurança que o presidente poderá sair em paz, ter uma estrutura que dará garantias de segurança a todos os cidadãos. Não descurando a necessidade de justiça, sobretudo na recuperação da parte do património que foi retirado do estado. Porque saqueou-se muito neste país e parte desse património terá que reverter a favor do estado e não poderá haver grandes concessões.
Se notarmos a projecção que Manuel Vicente tinha enquanto presidente do conselho de administração da Sonangol e a que tem enquanto vice-presidente, Manuel Vicente foi apagado. Esta queima de figuras não garante sequer ao presidente o sono para pensar que poderá sair e deixar A ou B porque ele próprio faz a queima das figuras que promove.
Essa solução que propõe é viável, com uma oposição que se diz fraca? De onde poderia partir esse movimento?
A boa-fé é a única opção viável para que todos tenhamos um lugar seguro neste país. E o diálogo é possível. A oposição é fraca: então só os fortes é que têm direito a negociar? E nesse caso, é a solução que o MPLA tem? Como só existe um forte neste país que é o presidente, então o presidente negoceia consigo próprio. É esta ideia que tem que ser desfeita. Independentemente da fraqueza dos outros somos todos angolanos e como angolanos temos os mesmos direitos constitucionais. É nessa base que os mais fortes devem reconhecer os direitos dos mais fracos e trabalhar para que eles também sejam fortes para que possamos fortalecer a soberania nacional. Aqui estamos já a falar do fortalecimento dos poderes individuais em detrimento de uma soberania. Nenhuma soberania é forte quando o povo é fraco. Nenhuma. Por isso é que estamos numa situação em que a soberania está nas mãos dos estrangeiros – portugueses, chineses, israelitas – porque enfraqueceram o seu próprio povo.
Podemos fazer uma comparação ao período colonial. Hoje os dirigentes assemelham-se aqueles chefes indígenas que colaboraram com as autoridades coloniais, mas essas autoridades não conheciam Portugal, não sabiam como os seus compatriotas que entregavam, aos colonizadores, eram tratados como animais na Europa e para onde eram transportados. Hoje os dirigentes angolanos viajam pelo mundo e são eles que levam os bens saqueados no país para fora. Nem a esse nível se podem comparar aos chefes indígenas.
Tem alguma ambição política?
Não. Tenho um grande projecto, o meu grande sonho. Como estou sempre metido em confusões auguro uma reforma, em breve, em Malanje, a terra da minha família, instalar-me numa aldeia que é lindíssima, e então fazer a minha vida a partir dali. Mas obviamente como tenho boca a minha reforma será lutar para que haja electricidade, Internet, os confortos necessários para que eu esteja ligado ao mundo mas ao fazer isto estrarei a contribuir para levar a estrada do conhecimento a estas zonas que há muito estão abandonadas. [Lutará também para levar educação, saúde a essa zona].
O governo fez alguma coisa positiva nestes 40 anos?
Este país não é do MPLA. É dos angolanos, e muitos angolanos fizeram coisas positivas quer para si, quer para o país. Agora a ideia de que Angola é do MPLA e do JES é uma ideia com a qual não concordo. Por isso não tem que me perguntar o que é que este governo fez de bom em 40 anos. O fundamental é que temos, mais uma vez, oportunidade para construir um país que daqui a 40 anos olhamos para trás e dizemos ‘nós angolanos fizemos’ e não ‘o MPLA ou a UNITA fez’. O próprio presidente afirmou que sem ele no poder Angola não é nada. Isso é gravíssimo. E mostra a sua má-fé. Angola é muito mais do que um indivíduo.