Portela, uma urbanização viva feita de “pioneiros” e “novos residentes”
A socióloga Sandra Marques Pereira investigou este conjunto habitacional, nascido na década de 70 do século passado em Loures, e percebeu quem são os que lá vivem. Pelo meio descobriu uma expressão que desconhecia: “ser portelense”.
Para quem a vê de fora, a impressão que fica da Urbanização da Portela, no concelho de Loures, não é provavelmente a mais agradável: aos olhos de quem atravessa a Ponte Vasco da Gama, a imagem que se impõe é a de um monte de prédios, altos, praticamente iguais entre si, ladeados por grandes vias de comunicação. Mas quem entra neste conjunto habitacional descobre uma realidade diferente, um bairro vivo, com qualidade urbana, e onde apesar de haver ainda muitas pessoas que aí moram desde o início se assiste a uma renovação geracional assinalável.
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Para quem a vê de fora, a impressão que fica da Urbanização da Portela, no concelho de Loures, não é provavelmente a mais agradável: aos olhos de quem atravessa a Ponte Vasco da Gama, a imagem que se impõe é a de um monte de prédios, altos, praticamente iguais entre si, ladeados por grandes vias de comunicação. Mas quem entra neste conjunto habitacional descobre uma realidade diferente, um bairro vivo, com qualidade urbana, e onde apesar de haver ainda muitas pessoas que aí moram desde o início se assiste a uma renovação geracional assinalável.
Fátima Brito Soares é uma das “pioneiras”, uma das moradoras que primeiro se instalaram na urbanização, cujos prédios começaram a ser construídos no ano de 1970. Já Sara Pisco faz parte dos “novos residentes”, daqueles que chegaram a partir de 2000, alguns pela primeira vez, outros depois de terem abandonado a casa dos pais na urbanização e decidido regressar à Portela depois de alguns anos a viver noutros locais.
As designações dos diferentes grupos de moradores são de Sandra Marques Pereira, investigadora do Centro de Estudos sobre a Mudança Socioeconómica e o Território (Dinâmia'Cet), do ISCTE-IUL, que está a desenvolver “um estudo de caso aprofundado” sobre a Portela. A investigadora, doutorada em sociologia, explica que aquilo que se procurou fazer foi lançar “um olhar focado e intenso”, “com metodologias muito diversas”, sobre o bairro, projectado pelo arquitecto Fernando Silva a pensar na classe média-alta.
Uma das vertentes desse estudo foi, detalha, a realização de “um inquérito representativo à população e de entrevistas de aprofundamento dos resultados”. Através desse inquérito foi possível identificar “quatro perfis” de moradores: os “pioneiros”, aqueles que se poderão designar por “nativos” (que vivem na Portela desde que nasceram), os que ali se instalaram nos anos 80 e 90 e finalmente os “novos residentes”. Os primeiros representam 44% da população e os últimos 27%, sendo estes os dois grupos mais representativos.
Sandra Marques Pereira destaca que entre os “pioneiros” há dois subgrupos distintos: um formado por pessoas que vieram das ex-colónias, fundamentalmente de Angola e de Moçambique, e outro de pessoas que saíram de Lisboa, “à procura de uma casa boa, grande com luz”, e na maioria dos casos também à procura de serem proprietários de uma habitação.
“Os de Lisboa eram pessoas da classe média em ascensão, a maior parte deles licenciados”, descreve a investigadora, acrescentando que no essencial estavam em causa casais “em início do ciclo de vida familiar”. Já os oriundos das ex-colónias “partilhavam a mesma classe”, embora “eventualmente não tivessem um grau de instrução tão elevado”. “Eram sobretudo funcionários públicos e empreendedores”, diz, referindo que alguns chegaram à Portela já com filhos “de dez, 12 anos”.
Fátima Brito Soares é um dos rostos do primeiro subgrupo. “Vim para a Portela faz 36 anos para a semana. Foi no dia 30 de Outubro de 1979”, conta. O nível de detalhe não é de estranhar, uma vez que a data da mudança para a urbanização foi também o dia do seu casamento.
Esta moradora, que se orgulha de ter mantido a casa “exactamente” como estava quando a comprou, conta que no momento de sair de casa dos pais ainda procurou casa em Lisboa. “Comecei por ver no Restelo, mas pediram-me uma barbaridade”, diz, explicando que a Portela, que “era um bairro em construção, de que toda a gente falava” e onde moravam algumas colegas suas de escola, surgiu como uma opção natural.
“Achámos a casa boa, com dimensão. Cada quarto tinha um roupeiro e havia três casas de banho. E achei graça à organização do espaço”, refere. A juntar a isso, havia a garagem individual e o facto de o prédio ficar “ao fundo da rua”, permitindo que tivesse uma vista desafogada.
E a urbanização, como era nessa altura? “Em termos de equipamentos era um caos. Só havia uma escola pré-fabricada. E espaços verdes, nada”, constata, recordando que para chegar ao Centro Comercial da Portela era preciso caminhar “por cima de pedras e terra”.
Outra coisa de que Fátima se recorda é que quando queria fazer um telefonema a única hipótese era recorrer à cabine pública instalada no fim da rua. “Esperei três anos para que me pusessem o telefone. Eu e o meu marido às vezes dizemos, a brincar, que a outra casa [a que chegou a ver no Restelo] era mais cara mas tinha telefone”, conta a rir-se.
Porquê morar num “estaleiro”?
Passados os primeiros tempos, e passados os “anos muito ruins” em que aquela zona esteve virada do avesso por causa das obras da Expo’98, a Portela “melhorou”. Novos acessos foram construídos, os espaços verdes apareceram e os equipamentos também. Hoje, existem na urbanização escolas de vários graus de ensino, campos de ténis e de futebol, piscinas, parques infantil, um parque urbano e uma igreja, benfeitorias que muitos atribuem em grande parte ao papel interventivo que a associação de moradores e a junta de freguesia (que entretanto se fundiu com a de Moscavide) tiveram.
Face ao cenário com que se depararam os primeiros moradores, que se instalaram num local que parecia “um estaleiro”, Sandra Marques Pereira faz a pergunta natural: “Porque é que os pioneiros foram para ali?”. À resposta não é indiferente o facto de esse “inacabado” ser “absolutamente normal” para a época, mas aquilo que mais pesa, segundo a socióloga, é mesmo o facto de “a prioridade” para aquelas pessoas ser “a casa”.
“As pessoas estavam mais vocacionadas para o espaço privado”, constata, sublinhando que a esse nível aquilo que a Portela prometia “era a modernidade total”. “As casas eram moderníssimas, novas, grandes, com muita luz, e tinham um preço acessível”, resume.
A acrescer a isso há um aspecto que, como sublinha Sandra Marques Pereira, foi “absolutamente determinante na vivência” dos residentes: a existência de pátios em cada um dos prédios. “Era onde se brincava. Os pátios são uma das memórias fundamentais dos miúdos da Portela”, refere.
“Quase toda a gente tinha miúdos pequenos. Nas férias, quando estava bom tempo, lá atrás era uma barulheira enorme de crianças. E era uma coisa segura, porque a porteira estava de olho neles”, confirma Fátima Brito Soares, notando que assim nasceram várias das amizades do seu filho. “Dávamo-nos muito bem. Chegámos a fazer arraiais de Santo António lá em baixo”, diz ainda, não sem deixar escapar um lamento de que hoje esses “laços de vizinhança” já não são tão fortes.
Ainda assim, a residente de 67 anos, admite que conhece “muita gente” na urbanização, a começar pelos habitantes do apartamento do lado: num caso que não é único nesta urbanização, o filho de Fátima ficou a morar na Portela, depois de ter saído de casa dos pais. Com ele vivem a mulher e as duas filhas, que contam diariamente com a presença e o apoio dos avós.
Caso semelhante é o de Sara Pisco, que foi morar para ali assim que saiu da maternidade, “quando tinha três dias”. Aos 26, quando surgiu a oportunidade de arrendar uma casa na zona do Rato, que se lembra de ser “muito baratinha”, abandonou a casa dos pais.
“Vivi numa quantidade de casas, por Lisboa inteira. Tenho pesadelos com caixas de mudanças”, refere, contando que no meio desse percurso casou e teve uma filha, que tem hoje três anos. Já depois de se divorciar voltou para o apartamento da mãe, onde esteve pouco tempo: assim que teve “condições financeiras”, arrendou o seu próprio apartamento, também na Portela.
E porquê a Portela? “Porque a minha mãe vive lá”, começa por dizer Sara. “Percebemos as vantagens dos subúrbios quando temos crianças”, acrescenta logo depois, explicando que na urbanização encontrou uma creche a poucas centenas de metros de casa, parques infantis, “imensos” espaços verdes e uma piscina municipal “óptima”, além de um lugar “seguro” para criar a sua filha.
“Na verdade não desgosto de viver na Portela. Entram pelos olhos a dentro as vantagens que tem”, resume esta residente de 37 anos, que integra o tal grupo dos chamados “novos residentes”. Sara diz que são muitas as caras que reconhece da sua infância, concluindo que “há montes de gente que saiu da Portela e voltou para ter filhos”.
Foi também essa a conclusão a que chegou Sandra Marques Pereira. “O bairro é um enclave muito fechado sobre si próprio”, começa por dizer, explicando que isso levou a que muitos adolescentes ou jovens adultos tenham sentido a dada altura “necessidade de sair” dali. Mais tarde, devido às “redes locais de apoio”, muitos deles acabaram por regressar. “Um dos aspectos que mais me surpreendeu é que os novos residentes têm todos familiares ali”, destaca a investigadora, constatando que a Portela “é um bairro de famílias”.
Ser portelense
Ao longo da investigação que fez, Sandra Marques Pereira deparou-se com uma expressão que não conhecia e que “remete para a construção de uma identidade local”: “ser portelense”. Já para Sara Pisco, que de quando em quando faz publicações nas redes sociais com a hashtag (etiqueta) “verdadeira portelense”, esta é uma designação que faz todo o sentido.
Essas publicações, conta, podem por exemplo incluir fotografias de “um saco do Suportel”, “um croissant do Tarik”, ou “um almoço do Tabuleiro”. Para quem não vive ou viveu na Portela, é preciso decifrar que Sara está a referir-se a um supermercado, a uma croissanteria e a uma pastelaria/restaurante, todos localizados naquele que é o local em torno do qual se desenvolve toda a urbanização: o Centro Comercial da Portela.
Também aí se pode ainda hoje encontrar aquela que foi a primeira casa da Portela Cafés, uma marca que entretanto ganhou nome e se expandiu para várias outras localizações em Loures e Lisboa. A ideia inicial, conta o único dos dois sócios fundadores que permanece ligado ao negócio, era instalar no local uma retrosaria, mas a descoberta de “uma casa de café” de sucesso na vizinha Moscavide levou a uma mudança de planos.
“Tínhamos uma máquina de café em grão, para degustação, mas o que sobreviveu foi a bica. As pessoas chegavam a fazer fila para beber aqui um café. Vinha gente de Cascais e de Oeiras”, recorda Ângelo Marçal. Além de ser proprietário daquela que é uma das poucas lojas iniciais do centro comercial que resistiram ao passar do tempo, o empresário é também morador na Portela, onde chegou depois de vários anos em Angola.
“Tem uma comodidade de viver muito grande. Há aqui umas condições fabulosas”, avalia Ângelo, referindo-se à urbanização. E os seus elogios estendem-se ao edifício circular que muitos vêem como sendo o coração do bairro: “Este centro comercial é muito superior a qualquer outro. Não lhe falta nada, até um notário tem. Toda a gente vem aqui”, diz com orgulho. “A Portela é a Portela”, conclui, como se mais não fosse preciso dizer.
Além desta urbanização em Loures, na qual viverão hoje qualquer coisa como dez mil pessoas, a equipa da qual Sandra Marques Pereira é um dos elementos está a estudar outros dois casos: o do Bairro Prenda, em Luanda (da equipa do arquitecto Fernão Lopes Simões de Carvalho), e o do conjunto STDM, em Macau (do arquitecto Manuel Vicente). Intitulado Habitações para o Maior Número, este projecto é coordenado por Ana Vaz Milheiro, doutorada em Arquitectura e Urbanismo e investigadora do DINÂMIA’CET, e financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia.
Este projecto, como se explica em informação escrita sobre o mesmo, “procura compreender de que forma o modelo de urbanização moderna típico das décadas de 1960 e 1970 – constituído por edifício altos, fora da cidade tradicional e com grandes espaços abertos – foi utilizado em três contextos sociais, geográficos e culturais muito diferentes”.