O desastre esquecido da Grande Guerra em África

Em 2014, dois jornalistas do PÚBLICO foram à procura a guerra contra os alemães em Moçambique que permanece desconhecida. E, na sequência da série de reportagens que venceu o Prémio Gazeta, nasceu um livro, assinado por Manuel Carvalho. Esta é parte do primeiro capítulo.

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Mausoléu em ruínas no cemitério de Mocímboa da Praia, Moçambique Manuel Roberto

Por volta das quatro e meia da tarde de 19 de Dezembro de 1917, o grupo avançado de uma coluna de 350 homens arrastava-se para o interior do forte de Unango, nos confins da província do Niassa, no norte de Moçambique. Tinha começado a sua fuga dos montes Macolos há mais de 40 horas. Pelo caminho, fizera duas breves paragens em pontos elevados para evitar um ataque-surpresa dos alemães. Ao longe, num cume dos Macolos onde tinham passado as três últimas semanas, uma nuvem de fumo erguia-se no ar, dando conta de que a destruição do equipamento que não conseguiram transportar fora bem-sucedida. Durante a fuga em marcha forçada, os soldados tinham consumido as rações de combate que sobraram, refrescaram-se com frutos da selva que os soldados indígenas sabiam distinguir e deliciaram-se com duas galinhas e umas espigas de milho furtadas numa das aldeias algures no trajecto. Os doentes, incapazes de acompanhar o passo, tinham ficado para trás. Os que resistiram agarravam-se em paus, gemiam, vergados pela dureza do caminho, pelo cansaço, pelo medo e pelo sentimento da derrota.

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Por volta das quatro e meia da tarde de 19 de Dezembro de 1917, o grupo avançado de uma coluna de 350 homens arrastava-se para o interior do forte de Unango, nos confins da província do Niassa, no norte de Moçambique. Tinha começado a sua fuga dos montes Macolos há mais de 40 horas. Pelo caminho, fizera duas breves paragens em pontos elevados para evitar um ataque-surpresa dos alemães. Ao longe, num cume dos Macolos onde tinham passado as três últimas semanas, uma nuvem de fumo erguia-se no ar, dando conta de que a destruição do equipamento que não conseguiram transportar fora bem-sucedida. Durante a fuga em marcha forçada, os soldados tinham consumido as rações de combate que sobraram, refrescaram-se com frutos da selva que os soldados indígenas sabiam distinguir e deliciaram-se com duas galinhas e umas espigas de milho furtadas numa das aldeias algures no trajecto. Os doentes, incapazes de acompanhar o passo, tinham ficado para trás. Os que resistiram agarravam-se em paus, gemiam, vergados pela dureza do caminho, pelo cansaço, pelo medo e pelo sentimento da derrota.

Quando, finalmente, passou pela porta da entrada do forte de Unango, o alferes José Teixeira Jacinto, 37 anos, retirou a bandeira de Portugal que trouxera enrolada no corpo e içou-a no mastro no centro do forte. Depois, os corneteiros deram o toque de armas e os soldados em formatura fizeram uma prolongada continência. Um tenente inglês, que chegara pouco antes a Unango, não queria acreditar no que estava a ver. Os rostos esquálidos, a pele tisnada, “o cabelo e a barba de mais de dois meses por cortar”, a sujidade, “os fatos e o calçado dos europeus a cair aos pedaços e os soldados indígenas quase todos seminus, sendo os casacos tristes farrapos em cima do dorso”, levaram os presentes a chamar à infeliz tropa de José Teixeira Jacinto a “Companhia Pirata”.

A sua aparência e condição eram uma boa imagem do que restava do Exército português enviado a Moçambique para combater os alemães na Primeira Guerra Mundial. No final de 1917, era um exército derrotado, acossado pela fome e pela sede, sem comando nem destino. Os alemães haviam sido expulsos pelos ingleses do seu território, a actual Tanzânia, e levaram a Primeira Grande Guerra em África para o solo do império colonial português. No seu avanço, desbarataram a frágil linha de resistência na Batalha de Negomano, em 25 de Novembro de 1917, e acabaram de vez com os últimos sonhos de conquista e de glória que a República projectara para África. “Fui daqueles que entraram nesta guerra com os olhos mais cheios de belas utopias e o coração largo abrasado de fé e lusismo, esperançado de que a minha raça, como todas as raças, se salvaria sob a cinza deste braseiro”, escreveria anos mais tarde António de Cértima. Naqueles dias de Dezembro de 1917, as “belas utopias” estavam destroçadas. Portugal sofrera a maior derrota militar em África desde Alcácer Quibir.

Poucos dias depois de José Teixeira Jacinto ter hasteado a bandeira nacional no Unango, a condução das operações militares em território português seria entregue aos ingleses, que tinham partido do Quénia e, após três anos de pressão, tinham empurrado os alemães do Tanganica, a sua África Oriental, para a região do Niassa. Os homens que restavam das últimas expedições nacionais arrastavam-se na rotina em postos remotos, lutavam contra a malária e a dureza do clima ou, como a coluna do alferes Jacinto, procuravam apenas um refúgio onde pudessem recuperar as forças após semanas de ansiedade, privação e medo. Para eles, a guerra deixara de existir. Sem inimigos para defrontar, a vitória mais desejada era a da sobrevivência e, principalmente, a de um lugar num vapor que os levasse para casa. A profética declaração de vergonha proferida pelo tenente Manuel de Oliveira, que num raro ato de solidariedade se voluntariara para salvar a coluna com uns mil homens cercados no forte de Nevala um ano antes, cumprira-se: “Adeus Portugal! Já não há portugueses”.

Um século passado, esse desastre militar em Moçambique não passa de um vestígio remoto na memória da Primeira Guerra Mundial. No dia 26 de Junho de 2014, o primeiro-ministro de Portugal, Pedro Passos Coelho, foi ao cemitério militar de Richebourg, no norte da França, “prestar a nossa homenagem colectiva” aos soldados que morreram na guerra, mas se em vez de ter escolhido para a cerimónia o teatro europeu optasse pelos cemitérios militares portugueses que persistem no norte de Moçambique, dificilmente teria condições para manifestar o “respeito e sentimento de enorme orgulho” que o país supostamente “tem por todos aqueles que se sacrificaram ao serviço da nação”. Porque nesses lugares remotos não encontraria cemitérios com cruzes brancas, alinhadas e conservadas, a recortar o verde da paisagem. Descobriria sim lápides a emergirem entre o lixo que alimenta galinhas e cabras, tumbas engolidas pelo avanço da selva, túmulos profanados, campas onde só com esforço se consegue ler o nome dos que morreram nas praias do Índico, na selva do planalto dos Macondes ou nas margens do rio Rovuma.

Dulce et decorum est Patria mori. O verso de Horácio que atesta a beleza e a nobreza da morte ao serviço da pátria soa assim vazio e mentiroso na porta de entrada no mausoléu em ruínas no cemitério de Mocímboa da Praia, erigido pelo Estado Novo para perpetuar a memória dos soldados que morreram em Moçambique entre 1914 e 1918. O mausoléu conserva ainda a estátua imponente de uma figura feminina que segura a espada com a mão direita e ampara um escudo com as armas nacionais com a esquerda. Mas no seu interior devastado pelo tempo, pelo saque e pelo vigor da natureza tropical, as tumbas onde se encontram depositadas as ossadas dos soldados são a prova de que nada, nem a paz eterna, fez sentido naquela guerra. As pesadas pedras de mármore que tapavam as sepulturas no interior do mausoléu foram arrastadas depois da independência de Moçambique e restos de fémures, de caveiras, de cúbitos assim ficaram ao ar. Em 2014, o projecto Conservação das Memórias da Liga dos Combatentes exumou 24 restos mortais em Mocímboa da Praia e previa recuperar um ano depois o ossário.

O historiador Marco Arrifes escreveu que “o soldado desconhecido de África é bem mais desconhecido que o da Flandres”, e não faltam argumentos para comprovar a sua tese. Já no tempo da guerra essa discriminação era sentida. “Para a França foram os políticos, os escritores, os literatos e os militares conhecidos; para Moçambique foram os que apenas eram militares ou soldados, e por isso a campanha, lá longe, lutando contra todos os inconvenientes possíveis ou imaginários, combatendo-se em silêncio, e silenciosamente morrendo pela Pátria, é desconhecida”, notava, em 1924, o capitão António J. Pires. Nada justifica esse desconhecimento. Em África combateu-se, de acordo com a ideologia e o direito da era colonial, pela defesa do território nacional. No norte de Moçambique, morreram mais soldados portugueses do que nas trincheiras da Flandres. Em África, os soldados tombaram não tanto pelo poder de fogo dos alemães, mas principalmente por causa da impreparação e falta de treino dos soldados, da incúria com a alimentação e o vestuário, da insensibilidade dos comandantes, da sede, do paludismo e da disenteria.

Foi por isso uma derrota em parte auto-infligida, cheia de ensinamentos e significados que não justifica a omissão da História nem o apagamento que o Estado Novo lhe impôs. Como escreveria mais tarde o higienista Ricardo Jorge, foi uma guerra na qual “o inimigo foi o próprio português, com a sua leviandade, irreflexão, desmazelo e birras, a sua vara na mão, o seu cego quero posso e mando. Velar pela alimentação, pela saúde e pela assistência das tropas, prevenir e atacar os flagelos que sobre elas incidem letalmente, ouvir e respeitar as vozes da higiene e da medicina, não são predicados da simples caserna”. Nos anos conturbados da “renovação nacional” do Estado Novo, falar das falhas do exército só fazia sentido para recriminar o republicanismo jacobino. Era preciso esquecer essa nódoa na bandeira das glórias ultramarinas. Quando o 25 de Abril abriu uma nova página, essa guerra estava já distante de mais para merecer curiosidade e estudo. Afinal, o império colonial era coisa do passado.

(…) Em condições normais, não seria difícil a Portugal bater-se de igual para igual contra os alemães. Os portugueses frequentavam as costas do Índico há 400 anos, enquanto os alemães tinham chegado à actual Tanzânia apenas em 1885. O conhecimento acumulado pelos portugueses da flora, da fauna, das exigências sanitárias e dos hábitos indígenas era claramente superior. Mesmo que a ocupação se tivesse limitado, durante séculos, às zonas costeiras, os portugueses mantinham operações militares contra indígenas sublevados em África desde a década de 1880. Quando a Grande Guerra deflagrou, dezenas de oficiais portugueses tinham passado pela experiência das campanhas africanas. Pedro Massano de Amorim, Pereira d’Eça, Gomes da Costa ou Alves Roçadas faziam parte dessa longa estirpe de africanistas que em algum momento das suas carreiras enfrentaram o mato, o calor, a malária e a dificuldade em manter uma cadeia de abastecimentos capaz de sustentar colunas de tropas a longas distâncias do seu ponto de partida. Muito pouco dessa experiência, porém, foi aproveitada.

(…) Quando a primeira expedição comandada pelo coronel Pedro Francisco Massano de Amorim, director militar das Colónias, chega a Porto Amélia e desembarca do Durham Castle, no dia 1 de Novembro de 1914, é já possível perceber a dimensão do improviso, da negligência ou do amadorismo. Não se tinham definido objectivos militares concretos, a instrução dos soldados fora esquecida, a criação de reservas, bens de primeira necessidade, negligenciada. Cedo se perceberam os custos dessas falhas – a expedição foi dizimada pelas doenças e ficou confinada a Porto Amélia. Mas nada mudou na preparação das expedições seguintes, que depois de Março de 1916 tiveram de viver em estado de guerra declarada com os alemães. Numa das sessões secretas da Câmara de Deputados e do Senado da República destinadas a discutir a situação da guerra, que decorreram entre 11 e 31 de Julho de 1917, o líder do Partido Unionista, Brito Camacho, daria conta da lassidão e negligência com que essas expedições eram preparadas: “Não é segredo para ninguém que se têm mandado tropas para a África como se não mandam reses para o matadouro.”

Mais de dois mil soldados europeus mortos, uma derrota copiosa em todas as frentes, a cedência aos ingleses do comando operacional após o desastre do verão austral de 1917: a linha de fronteira traçada pelo curso do Rovuma tornou-se “o mais fantástico atoleiro da história militar portuguesa moderna”, na opinião do historiador francês René Pélissier, um especialista no estudo do passado das ex-colónias portuguesas em África. No final da guerra, Portugal estava do lado dos vencedores apesar de ter perdido as principais batalhas em que se envolveu. África tornou-se, neste paradoxo, uma memória incómoda. Quando, seis anos depois do final da guerra, a República sucumbiu a um golpe militar que criaria os esteios do Estado Novo, começou a construir-se uma cortina de silêncio sobre esse passado traumático e aviltante para uma nação que se projectava à sombra da grandeza do seu império colonial. Era preciso esquecer essa nódoa na bandeira das glórias ultramarinas, até porque em breve Portugal voltaria ao Niassa para combater a Frelimo.

A Guerra que Portugal Quis Esquecer é apresentado em Lisboa dia 26, às 19h, no El Corte Inglés (piso 7). Esta é parte do primeiro capítulo

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