Comentaristas e politólogos
Há dias, António Vitorino, um político-painelista, isto é, com lugar cativo nos “painéis” televisivos, comentava na SIC Notícias a situação política pós-eleitoral, contracenando com um seu colega também painelista Pedro Santana Lopes. Riu muito, sem moderação, brincou com o facto de ter sido poupado aos últimos desenvolvimentos do folhetim político por ter estado uns dias no estrangeiro e — disse ironicamente — acabado de aterrar no estúdio ainda com jet lag. O que significam tanta galhofa, tanto informalismo, tanta displicência? Significam que este comentador está tão habituado àquele lugar e apropriou-se de tal modo dele que o ocupa como se estivesse em casa ou no café com os amigos. O chamado “comentário político” — na televisão, na rádio, nos jornais — tornou-se um lugar de convívio e de tertúlia, onde se encenam consensos e polémicas, acordos e beligerâncias. Um exército armado de painelistas e comentadores capturou a esfera pública e assegura a prossecução desta festa diária que em momentos críticos e de irrupção de algo novo, como é este que estamos a viver, se torna uma torrente de discursos que nos sufocam e sufocam tudo. Trata-se de um exército de elite que tem a seu cargo a acção de mortificar aquilo em que toca. Para esta orgia tanatológica — oposta, portanto, ao erotismo, nada de vivo passa por ela — muito conta o regime de versatilidade instituído: os políticos tornaram-se jornalistas e os jornalistas tornaram-se políticos. Uns e outros restauram uma função que até no campo da literatura há muito tempo começou a vacilar: a função-autor. Ela é agora uma função vazia, mas com a capacidade de criar uma fábula, a dos autores-comentaristas (não foi também assim que surgiram em França “os novos filósofos”?). Há-os de todos os géneros: satíricos, carnavalescos, épicos e romanescos, dramáticos, raramente líricos, já que o lirismo, ao contrário da narrativa, não satisfaz a exigência de continuidade, tende para a interrupção. Esta torrente mantém-se porque funciona como um sistema homeostático, alimentando-se de si próprio: atinge o ponto da homeostase e, passando a um regime autotélico, deixa de precisar de uma fonte de alimento exterior. Dito de maneira mais simples: o exercício do comentário tem como objecto outros comentários que, por sua vez, também são comentários de comentários. E assim cresce um burburinho espectacular e um ambiente de guerra civil a partir de uma semiose infinita e barroca, de um processo auto-referencial imparável. Ver aqui uma forma de propaganda, por analogia com a propaganda dos totalitarismos, é não descortinar o essencial: a propaganda era instrumental, enquanto o comentário é, tendencialmente, um meio sem fim, é o todo da política na época em que ela foi cooptada pelo fetichismo da mercadoria. É um poder real, mas tem de ser analisado na perspectiva de um poder constituinte, mais do que de um poder constituído. A espiral barroca do comentário passa também pelos politólogos. São eles os legitimadores de última instância, chamados de vez em quando a fornecer umas pitadas de verosimilhança científica (ou, pelo menos, de um saber universitário), algo que eles fazem — hipótese benevolente — com a mesma atitude com que um médico receita um comprimido inócuo ao seu doente para produzir um efeito placebo. Enquanto um comentador diz muito simplesmente que “hoje não chove e por isso ainda não vamos ter governo”, o politólogo diz antes: “A chuva é, em termos kantianos, um transcendental governativo, isto é, uma condição de possibilidade de formação do governo. E como estamos em seca...”
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Há dias, António Vitorino, um político-painelista, isto é, com lugar cativo nos “painéis” televisivos, comentava na SIC Notícias a situação política pós-eleitoral, contracenando com um seu colega também painelista Pedro Santana Lopes. Riu muito, sem moderação, brincou com o facto de ter sido poupado aos últimos desenvolvimentos do folhetim político por ter estado uns dias no estrangeiro e — disse ironicamente — acabado de aterrar no estúdio ainda com jet lag. O que significam tanta galhofa, tanto informalismo, tanta displicência? Significam que este comentador está tão habituado àquele lugar e apropriou-se de tal modo dele que o ocupa como se estivesse em casa ou no café com os amigos. O chamado “comentário político” — na televisão, na rádio, nos jornais — tornou-se um lugar de convívio e de tertúlia, onde se encenam consensos e polémicas, acordos e beligerâncias. Um exército armado de painelistas e comentadores capturou a esfera pública e assegura a prossecução desta festa diária que em momentos críticos e de irrupção de algo novo, como é este que estamos a viver, se torna uma torrente de discursos que nos sufocam e sufocam tudo. Trata-se de um exército de elite que tem a seu cargo a acção de mortificar aquilo em que toca. Para esta orgia tanatológica — oposta, portanto, ao erotismo, nada de vivo passa por ela — muito conta o regime de versatilidade instituído: os políticos tornaram-se jornalistas e os jornalistas tornaram-se políticos. Uns e outros restauram uma função que até no campo da literatura há muito tempo começou a vacilar: a função-autor. Ela é agora uma função vazia, mas com a capacidade de criar uma fábula, a dos autores-comentaristas (não foi também assim que surgiram em França “os novos filósofos”?). Há-os de todos os géneros: satíricos, carnavalescos, épicos e romanescos, dramáticos, raramente líricos, já que o lirismo, ao contrário da narrativa, não satisfaz a exigência de continuidade, tende para a interrupção. Esta torrente mantém-se porque funciona como um sistema homeostático, alimentando-se de si próprio: atinge o ponto da homeostase e, passando a um regime autotélico, deixa de precisar de uma fonte de alimento exterior. Dito de maneira mais simples: o exercício do comentário tem como objecto outros comentários que, por sua vez, também são comentários de comentários. E assim cresce um burburinho espectacular e um ambiente de guerra civil a partir de uma semiose infinita e barroca, de um processo auto-referencial imparável. Ver aqui uma forma de propaganda, por analogia com a propaganda dos totalitarismos, é não descortinar o essencial: a propaganda era instrumental, enquanto o comentário é, tendencialmente, um meio sem fim, é o todo da política na época em que ela foi cooptada pelo fetichismo da mercadoria. É um poder real, mas tem de ser analisado na perspectiva de um poder constituinte, mais do que de um poder constituído. A espiral barroca do comentário passa também pelos politólogos. São eles os legitimadores de última instância, chamados de vez em quando a fornecer umas pitadas de verosimilhança científica (ou, pelo menos, de um saber universitário), algo que eles fazem — hipótese benevolente — com a mesma atitude com que um médico receita um comprimido inócuo ao seu doente para produzir um efeito placebo. Enquanto um comentador diz muito simplesmente que “hoje não chove e por isso ainda não vamos ter governo”, o politólogo diz antes: “A chuva é, em termos kantianos, um transcendental governativo, isto é, uma condição de possibilidade de formação do governo. E como estamos em seca...”