Meg Stuart pára o trânsito

Porque precisava de parar, Meg Stuart escolheu uma cidade que há muito não estava tão hiperactiva. Talvez isso torne ainda mais preciosos os dias “de laboratório” que a coreógrafa está a viver no Porto desde o princípio de Setembro.

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Dois miúdos de skate na Praça D. João I e um deles é o filho de Meg Stuart.

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Dois miúdos de skate na Praça D. João I e um deles é o filho de Meg Stuart.

Posta nestes termos, a imagem com que começa e com que acaba o primeiro ensaio que a mais europeia das coreógrafas americanas abriu à cidade podia estar numa daquelas campanhas que andam aí pelo mundo das redes sociais a vender o Porto: é o tipo de imagem com que a mesma cidade que se entusiasmou com a chegada de Iker Casillas ali ao bar da esquina, ou de Mario Testino à Pérola do Bolhão, saliva com alguma facilidade, o tipo de imagem que, parece, faz vender (clínicas dentárias, no caso do ex-guarda-redes do Real Madrid; edições da Vogue, no caso do star-fotógrafo peruano).

Sim, Meg Stuart também escolheu o Porto, mas não exactamente para fazer o tipo de coisas que põem a salivar as redes sociais (ainda que o ensaio aberto do fim de Setembro tenha ido parar ao omnívoro Facebook do vereador Paulo Cunha e Silva, o almanaque oficial, em formato selfie, do que se passa na cidade). É mais subterrâneo e mais silencioso do que um anúncio ou do que um editorial de moda, o trabalho que a coreógrafa está a desenvolver no Porto até ao final do mês, a convite da Mezzanine, a plataforma de produção e programação fundada em 2009 por Ana Rocha, Jorge Gonçalves e Marta Bernardes, e com o apoio do Teatro Municipal do Porto: dois meses de residência no Rivoli, com uma série de sessões abertas à comunidade artística e destinadas a proporcionar-lhe um contexto de pesquisa internacional (Collective Dreaming, o módulo que decorreu em Setembro, incluiu workshops com os coreógrafos Anna Nowicka, Benoît Lachambre e Mark Tompkins; Phantasmal Archeology, que decorre até ao fim de Outubro, terá a colaboração do dramaturgo Jeroen Peeters, com quem Meg Stuart editou em 2011 o livro Are We Here Yet?, e do cenógrafo e arquitecto Jozef Wouters). Sem a obrigação de chegar ao fim e, como é prática habitual, ter de pagar a conta com uma estreia absoluta.

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nelson garrido

Quebrar o ciclo infernal processo de criação-ensaios-estreia-digressão, seguido de processo de criação-ensaios-estreia-digressão, e assim sucessivamente, foi aliás o que fez salivar Meg Stuart quando, ainda em Berlim, Ana Rocha, então a fazer assistência de produção para a coreógrafa, lhe começou a sugerir a ideia nada óbvia de um período sabático no Porto. “Tenho uma coisa antiga com a cena portuguesa das artes performativas: fiz a minha primeira peça [Disfigure Study, 1991] com o Francisco Camacho e a Carlota Lagido, conheci a Vera Mantero quando ela estava em Nova Iorque, mais recentemente voltei a trabalhar com o Francisco Camacho [Blessed, 2007]… Resumindo: sigo o meio há muito tempo, e mesmo não conhecendo o Porto assim tão bem pareceu-me tentador poder ganhar alguma distância em relação aos meus processos normais e explorar outras direcções sem a pressão directa de criar um espectáculo novo”, diz ao Ípsilon. Acaba de se sentar na esplanada dos Maus Hábitos (as esplendorosas tardes de sol deste mês de Outubro são outra vantagem em relação a Berlim, onde vive, ou a Bruxelas, onde está sediada a sua companhia, a Damaged Goods) e continua a explicar que o facto de não haver o compromisso de concluir estas The Porto Sessions com uma produção de palco é diferente de “estar só de passagem”: “Quero mesmo envolver-me, fazer parte. Com tudo o que isso implica, incluindo encontrar uma escola temporária para o meu filho que acaba de fazer 13 anos – e um clube para ele poder continuar a jogar futebol.”

A borbulhar
Desenhadas como um laboratório de investigação, as Porto Sessions têm servido a Meg Stuart para imaginar e experimentar espaços alternativos para o trabalho artístico – num processo militantemente colectivo, que não exclui, antes pelo contrário, artistas e outros agentes da cidade. Nada de fazer parar o trânsito, para voltarmos à comparação com o anúncio que Iker Casillas filmou no bar da esquina? Depende do que se entender por trânsito.

Numa cidade acabada de regressar à vida depois de anos de um sono que nem sequer foi de beleza, num teatro municipal cuja simples existência parece motivo de celebração semanal – ou seja, num território cujo saneamento básico não está consolidado há assim tanto tempo –, imaginar e experimentar contextos alternativos parece um exercício entre a extravagância e o anticlímax (“Eu sei, eu sei, para quem acaba de recuperar um teatro é estranho vir alguém implicar com os espaços old-school… Mas eu tenho esta sensação de que o ecossistema da arte contemporânea vai mudar”). O que no fundo talvez signifique que Meg Stuart – uma coreógrafa que se define como estando em constante redefinição – está no lugar certo à hora certa. “Não é igual ter a Meg Stuart no Porto agora ou tê-la no Porto daqui a dois ou três anos – mesmo enquanto criadora, ela coloca-se sempre neste tipo de situações, gosta de estar no momento em que as coisas estão ainda a ajustar-se, ainda em ebulição. Artisticamente o Porto está a viver a um ritmo muito acelerado, mas ao mesmo tempo ainda está a tentar definir uma linha. Tendo em conta o nosso objectivo, que passa por proporcionar oportunidades de contacto entre o meio artístico português e o meio internacional, é o melhor momento para se fazer isto – é o momento-charneira”, argumenta Ana Rocha, que se cruzou com Meg Stuart pela primeira vez em 2011 e entretanto lhe deu assistência coreográfica em Built to Last (2012), Sketches/Notebook (2013) e Hunter (2014).

Duas semanas depois do ensaio aberto da Praça D. João I, Meg Stuart diz que não podia estar mais contente com “o ambiente, o estado de espírito” da cidade onde escolheu parar para se afastar provisoriamente do círculo vicioso que é o meio artístico de Bruxelas ou Berlim. “O Porto é relaxado ao ponto de eu poder estar a ver o meu filho a andar de skate enquanto faço um ensaio, mas ao mesmo tempo há muita coisa a acontecer, e tudo fica perto. Percebes que o meio está a borbulhar, mas ainda não é esmagador, ainda não é esgotante; as pessoas estão a tentar perceber o que é que podem fazer com esta mudança. E há de facto um movimento na cidade que não é só o este susto repentino tipo ‘oh meu deus, tantos turistas’: quando tentamos perceber o que está por baixo, vemos que há terra firme”, observa a coreógrafa. Admite, porém, que não estava à espera de encontrar o Porto neste estado tão pré-Berlim. “Quando a ideia de fazer esta residência apareceu, a cidade ainda não estava na moda. Talvez eu tenha de fazer outras paragens, em contextos ainda mais precários, se quiser prosseguir com a minha investigação.”

É um projecto a longo prazo, pelo menos para dois anos, sem que esteja definido nem calendarizado nenhum regresso ao Porto, embora o programa seja suficientemente fluido para que isso possa acontecer (seja como for, Meg Stuart voltará ao Rivoli a 8 de Julho para ali apresentar Violet, mas essa é outra história): “Quis parar para olhar para o modo como as estruturas artísticas estão configuradas e para imaginar outro tipo de espaços de criação e de apresentação para o futuro – espaços que ainda não são conhecidos, que ainda não foram cartografados, que não estão equipados. E também quis perceber como seria sonhar com outras pessoas, que operam noutro contexto, porque normalmente sonhamos sozinhos. Discutir políticas de colaboração e de apresentação, relações centro-periferia, formas de coabitação entre o virtual, o privado e o público, lugares em que os artistas e os espectadores se possam encontrar, sem ser no sítio do costume, o bar do teatro.”

Vinda de onde vem – o centro do centro da Europa, “para onde todos os artistas correm com grandes expectativas, com grandes fantasias, com grandes utopias” –, Meg Stuart tem a sorte de saber o que funciona. Mas “a certo ponto é preciso questionar o que funciona para haver um kick para continuar”, para que uma carreira não se resuma à mecânica constantemente repetida de “estrear e seguir em digressão sempre pelos mesmos lugares”. Nisso, diz, o Porto é a sua “pequena escola”: “Gosto sempre de trabalhar com o que não conheço, mas espero que esta estadia me abane um pouco. Se não fosse para isso, não teria vindo.” Nesta fase, ainda muito próxima da casa partida, é difícil, para não dizer impossível, antecipar onde isto irá parar. “Ainda estou à procura. Vim para o Porto porque queria olhar para Berlim de outra maneira. Mas isso é só o ponto de partida. Acho importante eu inspirar este lugar e inspirar-me neste lugar – quero que seja uma troca honesta, um espaço para juntos questionarmos as nossas práticas e fazermos algo mais do que apenas queixar-nos. E depois, no fim, veremos quais foram os efeitos, quais foram os vestígios.”

Ana Rocha imagina uma coisa longe do anúncio ou do editorial de moda, longe até “do billboard com a cara da Meg Stuart a tapar toda a fachada do Rivoli”. Mas “mesmo que não seja visível a esse nível”, tem a certeza de que estes dois meses vão “ter repercussões”: “A Meg Stuart é a Patti Smith da dança contemporânea. Tê-la é ter a oportunidade de discutir o que podemos fazer aqui e agora.”