Adeus promessa, olá certeza
Durante anos conhecemo-lo como O Cão da Morte e era dos putos com mais potencial que por aí andavam. Agora Luís Severo é ele próprio – e tem em Cara d'Anjo um disco tremendo.
Há quatro anos, um rapaz desconhecido editava o seu segundo álbum, ao qual nem se deu ao trabalho de dar nome (ficou conhecido por Segundo Álbum ou Ainda Sem Nome), e, para compensar, caprichava no nome artístico: O Cão da Morte. Já o nosso espanto perante aquele talento precoce levou-nos a dar-lhe uma alcunha não menos inesperada: “O Messi do nacional-cançonetismo”.
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Há quatro anos, um rapaz desconhecido editava o seu segundo álbum, ao qual nem se deu ao trabalho de dar nome (ficou conhecido por Segundo Álbum ou Ainda Sem Nome), e, para compensar, caprichava no nome artístico: O Cão da Morte. Já o nosso espanto perante aquele talento precoce levou-nos a dar-lhe uma alcunha não menos inesperada: “O Messi do nacional-cançonetismo”.
Messi porque era baixinho e imensamente talentoso. Nacional-cançonetismo talvez fosse não fosse a melhor caracterização – aquela música andava pelo território de Nick Cave e Leonard Cohen. Mas havia ali qualquer coisa de português que agora se torna explícita no proto-rancho de Lábios de vinho, o tema que encerra Cara d’Anjo. Assim se chama o espantoso disco que assinala o regresso de O Cão da Morte às canções, quatro anos depois. Quer dizer, em termos factuais a história não é nada assim.
Cara d’Anjo é o primeiro e tremendo álbum de Luís Severo, artista que na sua vida civil é conhecido por Luís Gravito. “Severo é o nome de família da minha mãe e Gravito o do meu pai”, explicita, num domingo tempestuoso. “Como a minha avó materna não tem nenhum filho que tenha filhos, o nome dela acaba nesta leva. E então decidi usá-lo, porque assim ele continua."
Até ao ano passado, todos os quatro discos de Gravito haviam saído sob o nome de O Cão da Morte. Depois de dois álbuns sem título, lançou, em 2012, Odissipo, e, no ano seguinte, Fim de Verão – pelo que na prática Gravito só ficou dois anos sem gravar. Mas Cara d’Anjo é mesmo o regresso às canções: é que Odissipo e Fim de Verão eram “mais experimentais, uma sujeira do pior, e estavam mesmo a pedir que as pessoas não os ouvissem”. A dificuldade que Odissipo e Fim de Verão apresentavam era propositada, uma reacção do então Cão da Morte ao súbito sucesso a que foi exposto. “O segundo disco era um disco pop. Foi muito ouvido, para o que eu estava à espera, e eu instintivamente quis afastar-me do hype à volta dele."
Esta atitude surpreenderá quem se depare com Cara d’Anjo. O segundo tema, Santo António, exibe uma graça, um charme e uma patine que um Gainsbourg não desdenharia. Cara d’anjo, a canção, repleta de teclados luxuriantes, lembra o génio desaparecido de Elliott Smith na sua melhor forma. Este rapaz tornou-se um homem.
Crescer
Essa é a história de Cara d’Anjo e não é por acaso que o disco se chama assim – a canção homónima explicita o que aqui está em jogo: o crescimento. Nesse tema, Severo canta “ao menos agora estás diferente/ nos vintes que te sabem a velho/ se ainda és adolescente/ o espelho ainda não trouxe a paz”. Resumindo a moral de Cara d’Anjo: agora, amigo, mesmo que não queiras tens de crescer. E é por isso que ele deixou de ser O Cão da Morte e passou a ser Luís Severo. “Com este disco eu senti que mudara muito. E percebi que corria o risco de ficar o resto da carreira com um nome que escolhi aos 16 anos."
Em 2011, Luís Severo era um garoto cheio de potencial com uma data de canções semi-folk, semelhantes a uma carroça periclitante, cujo charme residia na fragilidade. Vivia com os pais em Odivelas e andava no primeiro ano da faculdade. Gaguejava um pouco mas falava muito depressa. Agora, quatro anos depois, é licenciado em Sociologia; ainda não tem emprego fixo, mas já não precisa de mesada e anda “à procura de casa”. Para sobreviver faz um pouco de tudo: “Transcrições de entrevistas, edição de vídeo, canções para televisão..." Pode parecer estranho que alguém cuja carreira passou pela férrea crença em não ceder ao comercial faça canções por encomenda, mas a tarefa agrada-lhe. “Não tem nada a ver com o que eu faço a solo, mas escrevi a música do novo desenho animado da RTP2 que manda os miúdos para a cama, e o tema do programa do Herman, o À Tarde. É porreiro fazer música cujo cliente final não sou eu. As tuas ideias estéticas pouco importam, porque tens um cliente que tem de ficar satisfeito."
Essa noção de que existe um mundo exterior que nos exige coisas que podem não ter a ver com o nosso gosto implica uma coisa: maturidade. Mas não se pense que Luís Severo se tornou um sujeito aborrecido, perorando sobre Bourdieu. “Nem sequer me considero sociólogo”, diz, “porque nunca fiz nada a nível académico que eu sentisse que fosse assim tão bom. E sempre que tentei pôr mais de mim naquilo entendi que não se enquadrava no que sou." Por uma razão: é que toda a sua vida “revolve sempre à volta de música”. Cada vez que se tenta perceber o que se passou nestes quatro anos para tão depressa atingir esta maturidade, fecha-se em copas: apesar da sua admirável capacidade para juntar palavras numa frase, está sempre à defesa. Já não mora com os pais, mas não quer explicar com quem mora. Evita falar sobre o seu mais recente ganha-pão e pede que não escrevamos sobre ele. Uma frase revela um pouco sobre o mundo de onde vem. “Os meus pais ficaram satisfeitos por eu simplesmente ter acabado o curso. Eles ficam satisfeitos por eu não passar o dia em casa a dormir, e que eu tente fazer coisas."
Portugalidade
Chuva dura em coração fechado, Luís Severo lá concede um olhar sobre si próprio: “A maior diferença entre agora e há quatro anos é que sou menos impulsivo. Só o facto de estar há dois anos sem mandar nada cá para fora demonstra isso." Olhando para trás, parece-lhe que “a impulsividade inicial foi boa, porque não houve espaço para dúvidas" ("A minha atitude era ‘Tenho uma ideia, vou gravar, está feito, siga"). "Mas não sei até que ponto é que a minha obra podia continuar a ser isso: um gajo a ir para o estúdio com uma música feita há dois dias e que já quer fazer qualquer coisa dela."
Durante dois anos, conscientemente não editou, enquanto aprendia tudo o que pudesse sobre a sua obsessão: a música. Montou uma banda, que toca com ele neste disco, e tocou ao vivo o mais que pôde. Com os Flamingos, e porque o Coelho Radioactivo, seu colega na banda, "é um grande guitarrista”, passou para as teclas, que dominam este disco. Teve aulas de canto “acima de tudo para aprender onde respirar", de modo a não lhe faltar o ar numa melodia. Pode dizer-se que as aulas compensaram: a sua colocação de voz, neste disco, é admirável – é que não há um tema que não pudesse ser single. Lábios de vinho, por exemplo: "[Foi composta] sem a ajuda de um piano ou de uma guitarra – foi só voz. Por causa disso soa um bocado a rancho. Tiras o instrumento e fica só a portugalidade. Está no disco todo – não posso dizer que não sou tuga."
Talvez a universidade também tenha tido a sua influência: “Nos últimos anos comecei a ouvir fado – e acabei por apaixonar-me por algumas coisas. Alfredo Marceneiro, a Argentina Santos, que foi a que me tocou mais... Tive aulas de fado com o Ruy Vieira Nery. Eram as únicas aulas às oito da manhã a que eu ia sempre."
Dominar a impulsividade traduz-se em pensar um pouco mais sobre aquilo de que cada canção precisa. Escolher melodias, acordes, arranjos. Ainda é cedo é uma delícia de órgãos gingões e melodia que dá vontade de bater palmas e dizer bis. Este jeito de cruzar melodias de teclas perpassa o disco todo – situando-o entre Gainsbourg e um António Variações que não une Braga e Nova Iorque, mas sim Odivelas e Paris. A pinta, o charme, estão por todo o lado: coros de uh-uhs, palmas. Deus, como é belíssimo o dueto de Abençoar, cada um dos arranjos: que canção, catano! De uma ponta à outra, este é um disco em que as dores de crescimento são tratadas com requintes de sedução. Severo fala com as suas mulheres e as suas angústias como se estivesse a tentar seduzir o tempo, a dizer-lhe “Pára um pouco, deixa as coisas como estão."
Mas para chegar às dez canções que compõem Cara d'Anjo foi preciso cortar, cortar, cortar. “Compus para aí umas 50 canções ao longo dos últimos dois anos. Não estou a dizer que são todas boas – quando ainda estavam só com piano e voz pus de parte as que não estavam a soar bem. Mas a partir daí foi uma dúvida constante. Só acabei porque me impus um prazo. Estava a gravar há meses. Como fiz o disco num estúdio caseiro não tinha limites de tempo. Se não impusesse um fim ainda estava lá." Quando chegou a altura de arranjar as canções, os seus músicos dera-lhe “possibilidades quase infinitas”. O que foi óptimo, mas também o confundiu: “Chegas a um ponto em que aquilo já não é nada porque estás a tentar tudo. E depois tens de reduzir outra vez, para ficar um objecto consolidado."
É tarde e a chuva está a amainar. De repente, Severo resume: “Não sei se já sei dizer o que levo deste disco. O Cohen fez o I'm Your Man aos 54." Faz uma pausa. “Há coisas neste disco que servem de molde para novos discos. Se fizer novo disco não vou começar do zero." Agora está a chegar perto do que quer dizer. “O que eu levo daqui é um tom. Acho piada ao tom com que o disco está, o tom em que digo as coisas. Os teclados são um bom molde daquilo que eu quero que seja a minha componente melódica. Na componente rítmica, se calhar ainda não tenho um molde." Com as letras, sim, está mesmo contente. Na extraordinária Nita (de “bonita”, e a forma como ele usa os vocábulos é admirável) canta: “Quando é que sai do forno/ quando é que eu engordo um pouco?”. Como que a dizer: quando é que eu cresço?
A questão é que Luís Severo já cresceu e (era isto que ele queria dizer) em Cara d’Anjo encontrou a sua voz. E, senhoras e senhores, com que voz diz Severo das coisas da vida.