O PS passou-se?
Não há acordo, ninguém o viu, o PS acha que não tem de o mostrar, mas o Governo só pode ser dele. Confirma-se: está mesmo tudo doido.
Para não ser logo muito bruto, deixem-me começar pelas questões em que António Costa tem razão, ainda que alguma direita tenha dificuldade em admiti-lo.
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Para não ser logo muito bruto, deixem-me começar pelas questões em que António Costa tem razão, ainda que alguma direita tenha dificuldade em admiti-lo.
Costa tem razão na legitimidade de um Governo à esquerda, se Passos e Portas caírem no Parlamento e o PS conseguir um acordo sólido com Bloco e PCP – eu não alinho nas conversas de golpe de Estado. Costa tem razão quando diz que foi claro durante a campanha eleitoral na rejeição do Bloco Central (o facto de ninguém o ter levado a sério não é culpa sua). Costa também tem razão quando acredita que a maior parte do PS está do seu lado. E Costa tem ainda razão quando intui que a possibilidade de uma fragmentação do PS pode ser maior em caso de acordo com a direita do que no caso de um acordo com a esquerda.
Costa até tem razão em tentar prosseguir o seu caminho: quando olhamos para a sondagem da passada segunda-feira na TVI, ela não disse o que muitos gostariam que dissesse. Se os números do PS não mexem, isso significa que a quase totalidade do seu eleitorado engoliu a patranha antiausteridade e deseja, em primeiro lugar, que a coligação seja impedida de formar Governo. Quatro anos de sacrifícios racharam o país ao meio – António Costa tinha um tubo de cola na mão direita e martelo e escopro na mão esquerda. Optou pelo martelo e escopro. Está no seu direito. E até combina melhor com a bandeira do PCP.
Mas, como imaginam, tudo o que atrás ficou dito, todas as razões que atribuí a António Costa, têm como premissa duas pequenas palavrinhas: “acordo sólido”. “Acordo”, no sentido de “documento assinado”. E “sólido”, no sentido de “aceitável dentro das metas do Tratado Orçamental”. É que, sem acordo, não há nada. Sem acordo, há apenas um grupo de socialistas desesperados a rodopiar por aí. Sem acordo, resta António Costa travestido de um Martim Moniz com défice democrático, procurando com a bojuda perna esquerda impedir que a porta de São Bento se feche na sua cara.
Deixem-me, então, recorrer à brutidade: a figura que o PS fez na terça-feira, primeiro pela voz do líder do PS, à saída do Palácio de Belém, e depois, à noite, na SIC e na TVI, pelas vozes de Carlos César e de Pedro Nuno Santos, é das coisas mais irresponsáveis e vergonhosas que me foram dadas a assistir na política portuguesa. Quando questionado sobre os termos do acordo, Carlos César respondeu: “Não lhe posso detalhar o acordo. Em primeiro lugar, ele não está subscrito pelos seus parceiros. E, em segundo lugar, a sua divulgação só tem interesse por ocasião da indigitação.” Está tudo doido?
Uma resposta destas merecia nova manifestação na Fonte Luminosa. António Costa tinha jurado na sexta-feira, em entrevista à TVI, que não iria chumbar um Governo da coligação se não tivesse uma alternativa. Mas, na terça-feira, embora essa alternativa não existisse nem se soubesse se iria existir, ele já estava a pedir ao Presidente da República a indigitação para liderar o país. Não há acordo, ninguém o viu, o PS acha que não tem de o mostrar, mas o Governo só pode ser dele. Confirma-se: está mesmo tudo doido.
O DN resumia o caso exemplarmente na sua manchete de ontem: “Governo à esquerda – só falta que Costa, Catarina e Jerónimo assinem acordo.” No campeonato do wishful thinking, é das melhores coisas que li até hoje. Dentro desse mesmo espírito, posso já revelar aqui o título do meu próximo artigo: “João Miguel Tavares casa-se com Monica Bellucci, Charlize Theron e Scarlett Johansson – só falta elas aceitarem”.
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