Tudo a postos (em princípio) para redefinir o quilo em 2018
O que é um quilo? Por enquanto, é a massa de um cilindro metálico muito bem guardado perto de Paris. Mas esse objecto de referência pode em breve tornar-se obsoleto.
Quando o homem do talho pesa uma peça de carne, fá-lo em quilos e gramas. Mas como é que a balança que utiliza foi calibrada para medir essas unidades métricas internacionais?
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Quando o homem do talho pesa uma peça de carne, fá-lo em quilos e gramas. Mas como é que a balança que utiliza foi calibrada para medir essas unidades métricas internacionais?
Pode parecer insólito, mas todas as balanças de todos os talhos do mundo medem quilos e gramas com base na massa (a quantidade de matéria) contida num objecto físico do qual apenas existe um exemplar de referência no mundo, chamado “quilograma-padrão”. Também conhecido pela sigla em inglês IPK (international prototype kilogram), ou ainda pela alcunha em francês “le grand K”, trata-se de um cilindro de platina e irídio que reside há 126 anos, debaixo de três redomas de vidro, num cofre do Gabinete Internacional de Pesos e Medidas (BIPM) em Sèvres, nos arredores de Paris.
O quilo é hoje a única unidade do sistema métrico internacional que ainda se rege por um objecto físico – ao contrário das unidades de tempo, distância ou temperatura, por exemplo, que são definidas por fenómenos naturais extremamente estáveis. E há décadas que os especialistas de metrologia tentam substituir a definição do quilo por outra, igualmente derivada de propriedades naturais estáveis e independente de qualquer massa física real. Só que o caminho para lá chegar tem-se revelado bastante árduo – a ponto de, até há uns meses, haver quem duvidasse de que fosse possível.
O quilo encolheu
Por que substituir o quilograma-padrão? Porque a definição actual da massa coloca problemas de monta em termos de calibração dos milhões e milhões de balanças utilizadas pelo mundo fora. “Como é fácil perceber, há uma série de etapas de calibração entre o IPK e a balança da loja”, disse ao PÚBLICO Ian Robinson, do Laboratório Físico Nacional (NPL) do Reino Unido. “Trata-se de um processo que envolve um grande número de medições e cada uma delas faz aumentar a incerteza do processo.”
E não só: acontece que, apesar de daquele cilindro metálico de referência estar muito bem protegido, nem a sua própria massa é imutável. De facto, o IPK tem vindo a “encolher” em relação às réplicas que dele existem nos institutos de pesos e medidas nacionais por todo o mundo – o que leva, no mínimo, a duvidar do seu valor enquanto referência eterna.
“O que é engraçado é que, se alguém espirrasse no quilograma-padrão, cerca de dez constantes fundamentais [da física] ficariam alteradas, porque o valor de todas elas está ligado ao valor do quilograma”, ironizava há dias Jonathan Ellis, da Universidade de Rochester (EUA), que tem participado nos esforços de redefinição do quilo, em comunicado da sua universidade.
Mas não teria graça nenhuma. Em particular porque, embora as balanças do nosso quotidiano possam ser mais ou menos precisas – na maior parte dos casos, uns gramas a mais ou a menos não fazem diferença –, já na indústria farmacêutica ou de alta tecnologia, a precisão das medições torna-se crucial.
Quilo quântico
Seja como for, em 2011 o Comité Internacional de Pesos e Medidas (CIPM) tomou a decisão formal de basear a nova definição do quilograma numa constante fundamental da física quântica: a constante de Planck. Esta constante liga a energia transportada por uma partícula ao seu comprimento de onda (os objectos quânticos são partículas e ondas ao mesmo tempo). E a famosa equação de Einstein, E=mc2, encarrega-se de ligar a energia à massa. Portanto, o cálculo da constante de Planck, em teoria, devia permitir obter uma nova definição, muito estável e precisa, do quilograma.
Os requisitos impostos pelo CIPM de forma a poder-se considerar fiável um valor da constante de Planck eram muito estritos. Seria preciso obter, através de três experiências independentes, recorrendo a pelo menos dois métodos de medição diferentes, valores dessa constante que fossem compatíveis entre si com margens de erro mínimas. Condições sine qua non que demorariam três anos a satisfazer.
Um dos métodos de medição adoptados tinha como objectivo definir o quilograma como sendo um número fixo de átomos de uma dada substância. Para isso, uma equipa internacional, baptizada Projecto Avogadro, decidiu contar os átomos contidos em duas esferas, de massa igual à do quilograma-padrão actual, feitas de um cristal muito puro de silício. Obter-se-ia assim o valor de uma outra constante, dita de Avogadro e ligada à constante de Planck por ainda outra fórmula – e daí deduzir-se-ia o valor da constante de Planck.
O outro método escolhido utilizava um dispositivo experimental chamado “balança de watt”, que permite medir de forma muito precisa o peso (e portanto a massa) de um dado objecto através de certas propriedades eléctricas. Aqui, duas equipas lançaram-se no empreendimento: uma da iniciativa do Conselho Nacional de Investigação (NCR) do Canadá; a outra do Instituto Nacional de Normas e Tecnologia (NIST), nos EUA.
Diga-se de passagem que a balança de watt utilizada no Canadá tinha sido originalmente construída por Ian Robinson (acima citado) e pelo seu colega Bryan Kibble do NPL – e mais tarde adquirida pelo NCR, que a tornou a montar do outro lado do Atlântico e que a aperfeiçoou.
Onde está o erro?
Foi aqui que surgiu um obstáculo que chegou a parecer inultrapassável. É que, enquanto os valores da constante de Planck obtidos pelo NCR eram compatíveis com os do Projecto Avogadro, isso já não acontecia com os primeiros valores calculados no NIST. E foi há apenas uns meses que os cientistas do NIST anunciaram, na revista Metrologia, que tinham finalmente conseguido reconciliar os seus resultados com os das duas outras equipas. Pouco depois, o NRC também publicava, na mesma revista, uma correcção dos seus resultados que respondia aos requisitos de incerteza do CIPM.
Apesar de terem corrigido um erro no seu dispositivo que passara inicialmente despercebido, a causa das discrepâncias dos primeiros resultados do NIST permanece misteriosa. “Apesar de toda a experiência que possuímos”, escrevem os autores no seu artigo, “reconhecemos que não percebemos as causas (…) da deriva [nos resultados]. Por isso, tivemos de repercutir essa falta de compreensão na incerteza que atribuímos ao nosso valor final”. Mesmo assim, a margem de erro do NIST também está dentro dos valores permitidos pelo CIPM.
Os cientistas do mundo inteiro têm até 1 de Julho de 2017, lê-se numa notícia na revista Nature, para afinar ainda e publicar outros valores da constante de Planck. E se tudo correr bem, o “valor de consenso” da constante – e a nova definição do quilo – poderão ficar decididos na próxima Conferência Geral de Pesos e Medidas organizada pelo BIPM e programada para 2018.