Também há linhas vermelhas nas histórias dos camionistas
Viajantes Solitários, o espectáculo que o Teatro do Vestido estreia esta quarta-feira em Viseu, a bordo de um camião TIR, é um diário de bordo de vidas passadas na estrada — e dos acidentes que as encostam à berma.
Os primeiros 260 quilómetros pela A1 (ou pela A8), os últimos 80 pela A25.
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Os primeiros 260 quilómetros pela A1 (ou pela A8), os últimos 80 pela A25.
Já é em piloto automático que o Teatro do Vestido faz este Lisboa-Viseu. Tornou-se uma espécie de caminho de regresso a casa desde que, em 2013, a companhia de Joana Craveiro saiu da capital em direcção ao (outro) país real para ali fazer uma das versões de Esta é a minha cidade e eu quero viver nela – e um ano depois regressou, carregada de malas, para a aventura colectiva de recolha de histórias coloniais e pós-coloniais que foi Retornos, Exílios e Alguns que Ficaram. Algures entre essas idas e vindas, apareceu um camião TIR: este que a partir desta quarta-feira e até domingo leva os espectadores de Viajantes Solitários pela estrada fora, em direcção a vidas que se contam ao quilómetro (isto quando não há acidentes de percurso).
É uma história que Joana Craveiro nos conta dentro do camião, onde o frio já gela as mãos apesar da merenda de vinho tinto, queijo e chouriça, um clássico da berma de estrada, e apesar de o Inverno ainda não ter descido à cidade (mas dessas e de outras “situações complicadas” sabem eles, os camionistas). “O Teatro Viriato, com o qual trabalhamos há já alguns anos, tem uma relação de mecenato com uma empresa de transportes internacionais, a Patinter. Algures numa reunião surgiu a ideia de se fazer um espectáculo a partir de histórias de camionistas – e eu disse logo que queria muito fazer um espectáculo num camião”, explica a encenadora de Viajantes Solitários, experiência ambulante que depois de Viseu estacionará também em Ovar, Porto e Lisboa.
Recolhidos em entrevistas de vida feitas a um grupo de motoristas da Patinter que entretanto se alargou a funcionários de outras empresas e mesmo a ex-camionistas já afastados da estrada, os materiais biográficos que Joana usou para construir este texto (polifónico mas não necessariamente coral) para dois actores cruzaram-se em muitos pontos do caminho, porque há itinerários colectivos nestas vidas irremediavelmente individuais.
Parece unânime, isso de se chorar na primeira viagem (a maioria “é logo aí que desiste”) ou de se maldizer o Périphérique, a impossível circular de Paris (“França é o pior, podia ter uma ponte por cima ou um túnel por baixo”), tal como parece unânime assobiar para o lado quando se fala do medo de não se chegar ao destino, de se perder a carga, de se morrer longe de casa, de se ficar “ali estendido” (“O patrão às vezes diz: a peça mais barata do camião é o motorista”).
Mas cada história, cada camionista, teve, tem, a sua maneira de chegar a casa, até porque os pontos de partida não são necessariamente semelhantes: “Entrevistámos cerca de 40 camionistas, sempre atentos ao perigo das generalizações, que aliás os nossos trabalhos tendem a tentar desmontar. Eles próprios se revoltam muito com os estereótipos, normalmente negativos, e fazem questão de se demarcar: não gostam de ser vistos como feios, porcos e maus.”
Ao volante
Não há, sublinha Joana Craveiro, um camionista-tipo: a não ser quando se trata de uma tradição familiar, que se transmite de geração em geração (o Teatro do Vestido encontrou casos desses), “parece uma profissão a que se chega depois de se terem tentado muitas outras”. Ou depois de uma carta de pesados obtida na tropa, como sugere a significativa quantidade de ex-militares que a companhia foi encontrar ao volante de camiões TIR, transportando com eles, Europa fora, às vezes com neve e muitos graus abaixo de zero em cima, o stress pós-traumático da passagem forçada pela Guerra Colonial ou por outras guerras depois dela.
São “situações complicadas”. Há tantas que todo um capítulo de Viajantes Solitários fica rapidamente preenchido com o inventário de acidentes, roubos, perigos e manobras difíceis que faz inevitavelmente parte da educação sentimental do camionista. Por exemplo: foram os primeiros a saber da crise dos refugiados. É uma velha história para os passageiros frequentes do Canal da Mancha – dentro da cabina de um camião TIR, há muito que Calais é um nome muito fácil de apontar no mapa, mas muito difícil de negociar –, e Joana Craveiro apontou-a logo: “Uma das primeiras entrevistas que fiz foi a um motorista que tinha acabado de ser apanhado com vários migrantes escondidos no camião à saída de Calais. Para eles essa passagem é um pesadelo, tanto que muitos preferem não fazer transportes para Inglaterra. Como a crise dos refugiados estava a rebentar, foi impossível o tema não ficar marcado no espectáculo.”
Tal como foi impossível não ficarem marcadas todas as linhas vermelhas que se foram erguendo nas entrevistas, e nas várias viagens de iniciação que a equipa de Viajantes Solitários fez dentro de um camião: a noite, a solidão, o medo, as mulheres, os puticlubs, os vícios, as máquinas de jogo, as guerras. “Cada um tem as suas linhas vermelhas. Algumas cruzavam-se mais facilmente quando eram os rapazes [os actores Estêvão Antunes e Simon Frankel] a fazer as entrevistas, embora mesmo nesses casos a regra é serem sempre os outros: são sempre os outros que fazem as coisas mais ‘proibidas’ ou mais mal vistas”, conta Joana.
A verdade é que, fazendo parte desta paisagem, as estações de serviço, os motéis, as fronteiras “onde se vende “tudo, tudo, tudo, tudo – mas mesmo tudo”, são folclore quando comparados com a energia mais dura, e mais misteriosa, de que se faz este espectáculo: “O que verdadeiramente queríamos saber era como é que mantêm a sanidade mental quando passam tantas horas sozinhos na estrada – ao ponto de muitos já nem saberem estar em casa. Há todo o tipo de respostas, muitas delas fascinantes. Estes homens são grandes filósofos da estrada.”