Estes Madredeus lembram uma imitação de Madredeus

Voltam ao seu universo de eleição, como se procurassem imitar-se.

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Uma imitação por vezes boa, por vezes aborrecida, por vezes bela – mas uma imitação José Francisco Pinheiro

Não é fácil, hoje, lembrar o quão improvável era o som dos Madredeus, quando surgiram em 1987, quão inacreditável parece o feito de, nessa época, soarem simultaneamente radicais e (como dizer?) quase evidentes, no sentido em que era como se aquele som sempre ali tivesse estado, à espera que alguém o libertasse, como a maçã esperou que Newton se deitasse à sombra da árvore que a parira. Pedro Ayres Magalhães reuniu um combo com guitarra acústica, violoncelo, acordeão e teclas, capaz de ser tão doce quanto contundente, quando era necessário. Era fado? Não era fado? Era português? Talvez nada naquelas melodias, naquela conjugação harmónica, carregasse maior património genético luso que uma guitarra portuguesa, mas quem os ouvia não conseguia deixar de pensar que nada podia ser tão português quanto os Madredeus.

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Não é fácil, hoje, lembrar o quão improvável era o som dos Madredeus, quando surgiram em 1987, quão inacreditável parece o feito de, nessa época, soarem simultaneamente radicais e (como dizer?) quase evidentes, no sentido em que era como se aquele som sempre ali tivesse estado, à espera que alguém o libertasse, como a maçã esperou que Newton se deitasse à sombra da árvore que a parira. Pedro Ayres Magalhães reuniu um combo com guitarra acústica, violoncelo, acordeão e teclas, capaz de ser tão doce quanto contundente, quando era necessário. Era fado? Não era fado? Era português? Talvez nada naquelas melodias, naquela conjugação harmónica, carregasse maior património genético luso que uma guitarra portuguesa, mas quem os ouvia não conseguia deixar de pensar que nada podia ser tão português quanto os Madredeus.

O problema foi que a dada altura levaram ao extremo o traço mais notório do que era, na realidade, uma intrincada conjugação de variáveis: apostaram as fichas todas na doçura, táctica que se cristalizou em Espírito da Paz. A partir daí foi um pouco como o Barcelona na última época de Guardiola: tudo muito bonito, muito estético e previsível. Quando Teresa Salgueiro saiu, Ayres Magalhães pareceu perdido, como John Stockton sem Karl Malone ou Rui Costa sem Batistuta. Essência era exemplo disso: sendo um disco de Madredeus em modo-progressivo era vagamente fascinante porque, bem, a última banda do mundo que se imaginava a entrar por esse universo eram os Madredeus; havia algo de nobre nele, uma tentativa desesperada de encontrar um caminho radicalmente diferente, ainda que falhado.

Agora Ayres Magalhães guinou violentamente o seu combo e fez uma curva de 180 graus: voltou-se à demanda pela beleza, pelas harmonias cristalinas (no caso, entre guitarras acústicas e violoncelos) e pelas vozes tão puras que evocam de imediato imagens de regatos límpidos e prados prenhos de verde. O que é uma forma de dizer: estes Madredeus lembram o Bayern de Guardiola com Goetze a fazer de Messi, o que por sua vez é uma forma de dizer: estes Madredeus lembram uma imitação de Madredeus. Por vezes boa, por vezes aborrecida, por vezes bela – mas uma imitação. Que raio de sensação estranha, esta: pode alguém ser uma imitação de si próprio? É Ayres Magalhães que escreve assim e pronto ou andará ele a fazer de Beatriz Nunes (a actual voz) uma nova Teresa? Não há uma resposta exacta – em Amor Sagrado, por exemplo, temos uma “Teresa” mais Teresa que Teresa era. Isso significa que é uma má canção? De todo – apenas nos coloca no centro de um Vertigo musical. Capricho sentimental de Capricho não tem nada. É uma tentativa de pegar onde os Madredeus escorregaram, naquele som de Espírito da Paz, que tinha boas canções quando não era aborrecido.