Diagnóstico pouco reservado
O terceiro livro da série que Philip Roth dedicou ao seu alter-ego Nathan Zuckerman é uma ficção sobre o fim do romancista — ou a auto-análise neurótica de um escritor em sofrimento
Em 1984, pouco depois de Philip Roth publicar o terceiro romance dedicado à personagem Nathan Zuckerman — o seu alter-ego —, o escritor britânico Martin Amis assinava uma crítica no The Observer alertando para o que considerava ser uma “fixação”: a do autor norte-americano com o sucesso pessoal, que explorava obsessivamente através da autobiografia ficcionada. Esse texto, e muitos dos que então se escreveram, chamava a atenção para a neurose literária de contornos cada vez mais vincados que a obra de Roth parecia materializar. No início dos anos 80, quase 15 anos depois da publicação de O Complexo de Portnoy (1969), o escritor fazia da sua biografia a matéria da sua ficção, num jogo cuja maior das virtudes parecia ser (ainda é) a manipulação da identidade. Onde começa e onde acaba Roth? Ou, de forma mais directa, quem é Roth em cada uma das personagens que cria? Continuaria a ser assim até ao dia em que anunciou que não escreveria mais, em vésperas de fazer 80 anos. Mas a auto-análise enquanto matéria literária ganhou especial evidência com a publicação de A Lição de Anatomia, o tal livro de que Amis falava com uma certa irritação.
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Em 1984, pouco depois de Philip Roth publicar o terceiro romance dedicado à personagem Nathan Zuckerman — o seu alter-ego —, o escritor britânico Martin Amis assinava uma crítica no The Observer alertando para o que considerava ser uma “fixação”: a do autor norte-americano com o sucesso pessoal, que explorava obsessivamente através da autobiografia ficcionada. Esse texto, e muitos dos que então se escreveram, chamava a atenção para a neurose literária de contornos cada vez mais vincados que a obra de Roth parecia materializar. No início dos anos 80, quase 15 anos depois da publicação de O Complexo de Portnoy (1969), o escritor fazia da sua biografia a matéria da sua ficção, num jogo cuja maior das virtudes parecia ser (ainda é) a manipulação da identidade. Onde começa e onde acaba Roth? Ou, de forma mais directa, quem é Roth em cada uma das personagens que cria? Continuaria a ser assim até ao dia em que anunciou que não escreveria mais, em vésperas de fazer 80 anos. Mas a auto-análise enquanto matéria literária ganhou especial evidência com a publicação de A Lição de Anatomia, o tal livro de que Amis falava com uma certa irritação.
Nathan Zuckerman aparecera pela primeira vez enquanto personagem em The Ghost Writer (1979). Era um jovem escritor natural de Newark, como Philip Roth; filho de imigrantes judeus, como Philip Roth; ambicioso e com grande consciência de si, como Philip Roth; um jovem escritor apresentado como um talento promissor e às voltas com o seu judaísmo, numa identidade feita de tensão entre a herança cultural e religiosa e as aspirações de quem se sente americano de pleno direito. Dois anos depois, em 1981, saía Zuckerman Unbound, o livro que encontrava Zuckerman em pleno momento de sucesso após a publicação de Carnovsky, o romance em que — à semelhança de Roth com o seu O Complexo de Portnoy — rompe com o seu passado e abre um confronto que lhe custa a animosidade familiar e de um povo, o judeu. Em A Lição de Anatomia, que acaba de ser publicado em Portugal em mais uma tradução de saudar de Francisco Agarez, Zuckerman tem 40 anos e está refém de uma dor que o impede de escrever, uma dor no pescoço, nos braços e nos ombros que não o deixa “percorrer mais do que alguns quarteirões ou sequer estar muito tempo de pé no mesmo sítio” — sem que haja uma explicação clínica para tal sofrimento. “Zuckerman era simplesmente um homem saudável que sofria de dor”, lê-se logo no início (p. 29), depois de o leitor ser confrontado com uma cruzada inconclusiva de consultas a médicos de várias especialidades, e da panaceia que para ele constitui a visita regular de quatro mulheres que o ajudam em tarefas rotineiras, entre as quais sexo e conversa.
É um cenário de queixas e diagnóstico difícil em que o sofrimento físico, paralisante, é mais uma vez pretexto para um longo monólogo sobre a identidade, a criação, o sucesso e o fracasso, a solidão, o sexo e a literatura. Ou seja, as grandes questões que atravessam a obra de Roth, aqui apresentadas entre doses de grande ironia e amargura e com uma nostalgia assente na impressão de que talvez o melhor da vida já terá passado, irremediavelmente, e de que o que sobra poderá não passar de uma tentativa de resgatar qualquer coisa do que ficou para trás para poder continuar a existir. A dor de Zuckerman é sustentada por uma sucessão de perdas. Depois da morte do pai, acontece a da mãe, vítima de um tumor no cérebro; seguem-se o silêncio do irmão, a falta de estímulo criativo, o medo de não conseguir repetir o sucesso, a sensação de já não pertencer a uma geografia que era muito concreta e que passou a ser vaga até se diluir. “Zuckerman ficara sem tema. Sem saúde, sem cabelo e sem tema. O que não tinha importância, porque também não conseguia ter posição para escrever. A matéria de que até então tinha feito a sua ficção era a paisagem calcinada de uma guerra racial, e as pessoas que para ele tinham sido gigantes estavam mortas. A grande batalha judaica era com os estados árabes; aqui tinha acabado e o lado da Nova Jérsia do Hudson, a Margem Ocidental de Zuckerman, estava agora ocupado por uma tribo forasteira.” Em 1973, Zuckerman é um espectador do Watergate pela televisão; está anestesiado por vodka, marijuana e analgésicos e confrontado com uma ideia de fim. “Se mãe, sem pai e sem terra natal, morria o romancista.” Resta-lhe, pensa, seguir a sua intuição: deixar Nova Iorque e ir estudar Medicina para a Universidade de Chicago.
Tudo parece remeter para um livro insuportavelmente amargo, mas Philip Roth transforma-o num exercício de divertida e corrosiva auto-reflexão, feito no estilo despudorado de sempre, em que o patético está em Zuckerman e não no texto. Tratando-se de Roth, e do tal exercício autobiográfico permanente que é a sua obra, poder-se-á sugerir que esse patético estará também nele, Roth, e não no texto? É a questão que apaixona biógrafos e críticos e que o próprio escritor também já tratou em Os Factos, a autobiografia literária que escreveu no final dos anos 80, em reacção a um esgotamento nervoso. Nela quis falar de si sem recorrer à ficção. Mas fê-lo como numa imensa carta a Zuckerman e, em resposta, Zuckerman lembrava-lhe, nada mais, que a autobiografia não é senão a arte da manipulação. O jogo persiste. Em Roth estamos sempre em território tão sinuoso quanto o da dor de que parte esta A Lição de Anatomia.