Linhas vermelhas. Vermelhas mesmo
Um entendimento com vista à formação do Governo entre os socialistas e os dois partidos da extrema-esquerda – o Bloco e o PCP – é um passo negativo, francamente negativo, para a democracia.
1. Volto a insistir: não há nenhuma ilegitimidade formal ou constitucional num Governo de coligação do PS com a esquerda radical ou num Governo minoritário do PS com apoio parlamentar dessa mesma extrema-esquerda. Nada impede o Presidente da República de, à primeira ou à segunda tentativa, indigitar António Costa como primeiro-ministro para formar um Governo nessas condições. O Presidente, nos termos da Constituição, tem todo o espaço para optar pela solução que entender mais conveniente e adequada. Pode indigitar o líder do partido mais votado, assim cumprindo uma praxe ou convenção constitucional. Mas pode também, em alternativa, indigitar logo à cabeça quem lhe ofereça garantias credíveis de obter uma solução parlamentar estável. Ambas as possibilidades são legítimas e conformes à Constituição. Isto assente, torna-se óbvio que o presente problema da formação do Governo e da composição da respectiva plataforma de suporte parlamentar não vem a ser um problema de regularidade ou de admissibilidade constitucional. Carecem, pois, de sentido as impostações de que a admissão de uma maioria que funda a extrema-esquerda (PCP e Bloco) com o centro-esquerda (PS) seria um “golpe de Estado” ou algo de equipolente.
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1. Volto a insistir: não há nenhuma ilegitimidade formal ou constitucional num Governo de coligação do PS com a esquerda radical ou num Governo minoritário do PS com apoio parlamentar dessa mesma extrema-esquerda. Nada impede o Presidente da República de, à primeira ou à segunda tentativa, indigitar António Costa como primeiro-ministro para formar um Governo nessas condições. O Presidente, nos termos da Constituição, tem todo o espaço para optar pela solução que entender mais conveniente e adequada. Pode indigitar o líder do partido mais votado, assim cumprindo uma praxe ou convenção constitucional. Mas pode também, em alternativa, indigitar logo à cabeça quem lhe ofereça garantias credíveis de obter uma solução parlamentar estável. Ambas as possibilidades são legítimas e conformes à Constituição. Isto assente, torna-se óbvio que o presente problema da formação do Governo e da composição da respectiva plataforma de suporte parlamentar não vem a ser um problema de regularidade ou de admissibilidade constitucional. Carecem, pois, de sentido as impostações de que a admissão de uma maioria que funda a extrema-esquerda (PCP e Bloco) com o centro-esquerda (PS) seria um “golpe de Estado” ou algo de equipolente.
2. E também é desprovida de sentido a alegação de que a aceitação dessa maioria parlamentar “revolucionária” configuraria uma fraude eleitoral. É bem verdade que, ao invés do que o PS e António Costa fazem agora passar, nunca em tempo nenhum o PS sinalizou que estaria disponível para se coligar com a esquerda radical. E, simetricamente, nunca o PCP ou o Bloco deram algum sinal de plausibilidade a respeito de um entendimento desse tipo. Basta ver como identificavam o PS e as suas políticas com a direita e com políticas de direita para logo aquilatar da aversão que devotavam ao PS e a uma eventual coligação com ele. Mesmo quando Catarina Martins aventou o cenário de um diálogo, situou-o em termos tais que o tornou pura e simplesmente irrealista (como, aliás, decorreu cristalinamente da reacção de António Costa). Apesar dessa absoluta implausibilidade, num regime com uma evidente componente parlamentar, nada obsta a que os governos se formem nos bastidores e nos corredores do Parlamento – literalmente nos “passos perdidos”. O estabelecimento de uma política de alianças ulterior ao acto eleitoral não é anormal nem singular. Pode não ser o mais curial modo de lidar com os eleitores numa época em que a democracia é cada vez menos representativa e tende ostensivamente para um carácter directo, semidirecto ou imediato. Mas é legítimo e aceitável, mesmo quando não desejável. E, por conseguinte, por mais nefasta que se considere uma coligação entre a esquerda moderada e o radicalismo de esquerda, ela não deve ser qualificada como uma fraude eleitoral. É uma decorrência possível e natural da lógica parlamentar, que, amiúde, engendra nos bastidores soluções de governo que não foram efectivamente anunciadas ou ponderadas nas urnas.
3. O problema de uma eventual coligação entre o PS e a esquerda radical não é, por isso, um problema de legitimidade constitucional, política ou moral. É mesmo, e só – o que chega, sobra e não é pouco –, um problema de mérito político. Reitera-se: não é uma questão de legitimidade, é uma questão de conteúdo, de substância, de mérito.
Um entendimento com vista à formação do Governo entre os socialistas e os dois partidos da extrema-esquerda – o Bloco e o PCP – é um passo negativo, francamente negativo, para a democracia. Para a democracia tal como a entendemos no espaço ocidental. No caso do PCP, adepto confesso e orgulhoso da ditadura do proletariado (e das classes que hoje tem por equivalentes), é manifesto e patente o desprezo pelas instituições e pelas garantias da democracia liberal. No caso do Bloco, este carácter está mais oculto e diluído, mas basta pensar nas raízes marxistas, trotskistas, maoístas e quejandas, para avaliar do grau de respeito pela concepção ocidental de democracia. É inaceitável que o PS, partido com pergaminhos democráticos ímpares na história contemporânea portuguesa, transija e faça acordos de largo alcance com forças políticas que não reconhecem nem a grandeza nem a superioridade da democracia liberal. É, a todos os títulos, inadmissível que o PS não trace aqui uma linha vermelha, uma fronteira. Nem o Bloco de Esquerda nem o PCP fizeram qualquer retractação ou “actualização” doutrinária ou ideológica que justifique esta aproximação. Quem, em sede europeia, advoga o isolamento da extrema-direita e condena muito justamente as suas concepções autoritárias e antidemocráticas, não pode entabular acordos e pactos de governação com a extrema-esquerda. O descaso da extrema-esquerda pelas liberdades pessoais e pelas garantias democráticas não é menor nem menos intenso do que o que por elas nutre a extrema-direita. A questão, aqui, não é de conveniência do momentum politicum nem de oportunidade; é de substância e de princípio. Precisamos, mais do que nunca, de clareza e de clarificação. Sem papões e sem tabus, é a saúde do sistema democrático que está em causa. No dia em que esses partidos fizerem o aggiornamento democrático, pode haver espaço para o diálogo. Enquanto estiverem entrincheirados no gueto antidemocrático, por mais méritos que, no terreno e em aspectos parcelares, possam exibir, não podemos ceder nem pactuar.
No plano da substância, não minguam argumentos económicos e financeiros, de combate ao populismo, de política externa e de defesa nacional para acrescentar verdadeiras e próprias linhas vermelhas. Mas nenhuma delas supera o argumento democrático. Que António Costa e o “seu” PS queiram atravessar esse “mar vermelho”, esse autêntico oceano de linhas vermelhas, é especialmente grave. Trata-se de um desenvolvimento que, a ocorrer, vamos pagar caro e do qual, mal isso seja possível, teremos de ser resgatados. Resgatados, nos vários sentidos do termo.
Eurodeputado do PSD
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