A Europa está a impedir as pessoas de exercer o “direito sagrado” ao asilo

David Ingleby considera que os europeus transformaram a política migratória num “mal necessário” e pensa que que todo este pânico relacionado com crise migratória actual é “exagerado”.

Fotogaleria

As populações em fuga da guerra e da perseguição política ou religiosa, e que buscam na Europa uma solução para os seus problemas, estão a descobrir à chegada que “os seus problemas estão apenas a começar”. A incapacidade dos países europeus de encontrar uma solução para a actual crise de refugiados no seu território, não só está a exacerbar o quadro de fragilidade destas pessoas, como está a expor a União Europeia à chantagem política dos países vizinhos, nota David Ingleby, investigador do Centro de Ciências Sociais e Saúde Global da Universidade de Amesterdão e professor emérito de Psicologia Intercultural da Universidade de Utrecht, na Holanda.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

As populações em fuga da guerra e da perseguição política ou religiosa, e que buscam na Europa uma solução para os seus problemas, estão a descobrir à chegada que “os seus problemas estão apenas a começar”. A incapacidade dos países europeus de encontrar uma solução para a actual crise de refugiados no seu território, não só está a exacerbar o quadro de fragilidade destas pessoas, como está a expor a União Europeia à chantagem política dos países vizinhos, nota David Ingleby, investigador do Centro de Ciências Sociais e Saúde Global da Universidade de Amesterdão e professor emérito de Psicologia Intercultural da Universidade de Utrecht, na Holanda.

O académico britânico, que há décadas se dedica ao estudo das populações refugiadas e migrantes, esteve no Porto para participar no ciclo “Complexidade – Conversas Interdisciplinares”, promovido pela Universidade do Porto, e conversou com o PÚBLICO sobre os desafios que a emergência migratória representa para a Europa.

A Europa está a viver a sua pior crise migratória desde a Segunda Guerra Mundial. O senhor participou em inúmeros estudos com populações refugiadas e migrantes: como vê a actual situação?
É importante recordar que esta não é a primeira vez que a Europa passa por esta situação: houve uma grande crise em 1992, durante a guerra dos Balcãs. Nessa altura, a União Europeia (UE) era mais pequena e significativamente menos rica, pelo que essa crise foi na verdade maior do que aquela que atravessamos agora. Pessoalmente creio que a situação actual vai piorar e que o número de refugiados vai aumentar. Em todo o caso, da última vez não me lembro de ter havido tanta histeria, pânico, má gestão e caos, como agora. Claro que a situação era diferente, porque as pessoas que se movimentavam vinham dos Balcãs, mas o que quero dizer é que penso que todo este pânico é exagerado, e que não há razão nenhuma para isso.

Na sua opinião, há condições na Europa para ultrapassar o actual impasse e concertar soluções para a crise humanitária representada pela chegada de milhares de refugiados?
Como se costuma dizer, quando há vontade as coisas resolvem-se, logo o grande problema é não haver vontade. E porquê? As atitudes mudaram muito desde 1992: nesse período ainda se podia dizer que a diversidade era boa, e actualmente a diversidade é vista como uma ameaça às sociedades. O multiculturalismo é visto como ultrapassado e desacreditado. Os europeus mais ou menos transformaram a política migratória num “mal necessário” que deve ser reduzido ao mínimo possível.

Quer dizer que está pessimista…
De certa maneira, sim. Mas ao mesmo tempo, sinto-me optimista com a reacção pública, que tem sido surpreendentemente positiva. Ninguém esperava grandes manifestações a favor dos refugiados, tanta actividade nas redes sociais, as pessoas a voluntariarem-se. Aquela foto do menino afogado fez disparar os alarmes e levou a maioria silenciosa a falar.

O seu livro Forced Migration and Mental Health faz o diagnóstico dos impactos na saúde mental das populações forçadas a fugir das suas casas e dos seus países. Pode referir, resumidamente, quais os problemas que os refugiados enfrentam?
Nós distinguimos três etapas, que se referem ao stress antes da fuga, durante a fuga e depois da fuga. O que é invulgar na situação corrente é o facto de o stress pós-fuga estar num nível extraordinariamente elevado: estes migrantes (vou chamar-lhes assim sem distinções), quando chegam, têm uma expectativa de que os seus problemas terminaram, quando na realidade estão apenas a começar, porque eles têm sido obrigados a caminhar milhares de quilómetros em condições bastante precárias. Julgo que isso nunca aconteceu desta forma, serem atirados de um lado para o outro como agora.

As imagens destes refugiados que desembarcam na Europa dão-nos uma ideia do estado de debilidade ou fragilidade – física e porventura mental – em que estas pessoas se encontram. Já é possível traçar um quadro das doenças que os afligem?
Na verdade não, não sabemos. Os problemas físicos mais imediatos têm a ver com ferimentos, infecções ou bronquites, que resultam da sua experiência europeia e que são de esperar quando as pessoas têm de caminhar centenas ou milhares de quilómetros a pé, ao calor, frio ou chuva. Quanto aos problemas mentais, hesitaria muito em falar deles para já. Seguramente terá sido traumático para estas pessoas, que acreditavam que estariam a salvo na Europa, descobrir que não era assim. Recordo por exemplo um refugiado que disse que nunca tinha sido tão mal tratado na Síria, em referência à hostilidade que sentiu na Hungria. Mas se isso vai deixar problemas sérios, não sei. As pessoas estão num estado agudo de instabilidade emocional, mas essa é uma reacção normal perante uma situação muito anormal. Habitualmente, essa condição é ultrapassada quando a vida normaliza e estabiliza –enquanto estas pessoas não tiverem uma cama, comida e segurança, é óbvio que não se vão sentir bem.

Isto não quer dizer que não haja problemas profundos, que têm a ver com a situação na Síria e nos outros países de origem [dos refugiados], ou com as experiências no percurso até à Europa. Por exemplo, sabemos que muitos perderam companheiros na viagem, que testemunharam afogamentos, e isso por vezes origina traumas sérios. Os que vieram de zonas de conflito terão vivido experiências muito traumáticas, que são altamente debilitantes, mas no momento o que as domina é a luta pela sobrevivência. Teremos sem dúvida pessoas que perderam familiares, casas, etc, a revelar quadros de ansiedade, tristeza e depressão que serão patológicos no sentido em que não desaparecerão espontaneamente, precisarão de tempo e de ajuda profissional.

No actual debate político e público sobre a crise dos refugiados, fala-se de inúmeros “desafios” ao acolhimento dessas pessoas, em termos económicos ou culturais. Faz falta introduzir a perspectiva da saúde pública na discussão?
As questões da saúde que vi levantadas foram apenas políticas. Isto porque, para lidar com a situação, têm de ser mobilizados muitos recursos e muito dinheiro para um grupo que é impopular. Esse é que é o problema. Eu contesto esta impressão que se criou de que estamos no limite das nossas capacidades. É uma ideia totalmente falsa. Vejamos: se tivermos um milhão de refugiados no meio de uma população de 500 milhões de europeus – e um milhão de pessoas é muita gente! – estamos a falar de 0,2% da população total. Esse número não é nada, proporcionalmente, comparado com os números dos países vizinhos da Síria, Jordânia, Líbano, Turquia, que são mais pobres e menos desenvolvidos. Como podemos dizer que somos incapazes de resolver esta crise na Europa? Se assim é, de que serve sermos modernos? E noutra perspectiva, como podemos dizer que este 0,2% de pessoas vai destruir as condições de vida dos restantes? É um exagero tremendo.

Também se têm falado nos riscos, por exemplo de contágio de doenças infecciosas, que a chegada destas populações coloca. É sabido que a situação em termos de saúde na Síria é catastrófica, mas ao introduzirmos esse elemento no debate, não estaremos a promover mais rejeição e intolerância destas populações nos países europeus?
Absolutamente, há um certo perigo ao falar nestes assuntos porque as pessoas ficam extremamente preocupadas. Não vi, pelo menos até agora, nenhum caso de doença infecciosa ou outras doenças “exóticas” ser reportado entre os refugiados. Doenças como a tuberculose, o HIV e a hepatite são muito comuns nas populações que vivem em situação de pobreza extrema, tipicamente em zonas da África subsariana. Mas os sírios são uma classe diferente de migrantes. Repare, eles dispõem de milhares de euros para pagar aos contrabandistas, têm boas condições. Não têm problemas de saúde.

Ou seja, os sírios que chegaram à Europa não foram afectados pelo colapso dos serviços de saúde do país, onde só 40% dos hospitais funcionam...
A situação na Síria é verdadeiramente dramática, com os doentes oncológicos sem acesso à quimioterapia e os diabéticos sem insulina. Não tenho dados, mas penso que a população que arrisca viajar é aquela que está em boas condições físicas, não serão os que estão doentes que se vão dispor a percorrer milhares de quilómetros.

Regressando à Europa, e falando do que está a ser feito em termos de acolhimento e integração destas populações. Existem os mecanismos necessários ou é preciso nova legislação, novos serviços?
Conheço bem o quadro legal e jurídico e os mecanismos existentes em termos de apoio aos refugiados e o que posso dizer é que podia ser bastante melhor em muitos países. O quadro jurídico é o primeiro obstáculo, com alguns países a estabelecer restrições para se eximirem de prestar a ajuda necessária.

Existe, por exemplo, um problema específico na Alemanha, onde um candidato a asilo apenas tem direito a cuidados [de saúde] bastante básicos durante os primeiros 15 meses. Esse será um problema com todos os milhares de refugiados que estão a chegar à Alemanha e que vão precisar de vários tipos de tratamento, e que vão descobrir que ou é uma emergência ou então não têm direito. Quase todos os outros países têm melhores condições. Alguns, como por exemplo Portugal, aplicam um “teste”, uma avaliação de recursos, e tentam cobrar pelos tratamentos se aferirem que o candidato tem meios financeiros. É comum em muitos países mas Portugal é o único país que pede o reembolso retroactivo das despesas médicas.

No terreno, os meios existentes – dos centros de acolhimento aos serviços de saúde – não costumam ser problemáticos. Julgo que agora poderá haver um problema de falta de pessoal, principalmente enfermeiros. Em locais muito isolados, que é onde os governos gostam de pôr os refugiados, poderá haver alguma pressão sobre os serviços [de saúde] já existentes, mas não deverá ser um problema geral.

Há algum exemplo anterior de gestão de uma crise migratória, ou alguma experiência que tenha sido desenvolvida e que possa servir de exemplo para os especialistas e decisores na Europa?
R – Nos anos 90 houve um fluxo contínuo de refugiados em território europeu, e isso permitiu desenvolver capacidades, meios e competências. Em dez anos construiu-se uma boa rede, em termos de recursos, e coleccionou-se experiência e conhecimento. Mas como a pressão [migratória] diminuiu, muitos centros foram encerrados, e a capacidade anterior perdeu-se. Agora têm de se encontrar soluções de forma muito urgente e por isso as soluções são bastante temporárias. Mas os especialistas ainda estão aí e poderiam ser rapidamente mobilizados.

Longe da Europa, na Síria e nos restantes países “emissores” de refugiados, a questão humanitária é pior do que nunca, mas as dificuldades são tantas que até uma avaliação no terreno parece ser impossível de fazer…
De momento, a maior fábrica de refugiados no mundo é o Afeganistão, tem sido há 20 anos e a situação tende a piorar. No Iraque é o mesmo, a situação não melhora. E a Síria é o caos total, ninguém se atreve sequer a pensar numa solução. Por isso, teremos de nos habituar a este fluxo, porque não vai acabar, vai continuar a crescer.

O problema para a UE é que todos os países assinaram a Convenção de Genebra de 1951 e assim obrigaram-se a pelo menos processar todos os candidatos a asilo que cheguem ao seu território. A solução encontrada para resolver esse imbróglio foi tornar a vinda muito difícil: foram tomadas medidas que levaram a que a maior parte das pessoas não possam viajar de avião ou utilizar os meios de transporte normais para chegar; foram construídas barreiras físicas nas fronteiras. O que a Europa está a fazer é impedir as pessoas de exercer o tal “direito sagrado” reconhecido na Convenção de Genebra, nunca deixando que as pessoas se aproximem o suficiente para poder reclamar esse direito.

Mas como a Europa não pode erguer um muro a toda a volta, agora procura travar estas pessoas mais cedo, mobilizando os países vizinhos – seja Marrocos, Ucrânia ou Turquia – para que estes impeçam os refugiados de sair dos seus países, sem nunca falar em questões de direitos humanos. Muito dinheiro foi pago e continuará a ser pago para que alguns destes governos assumam essa responsabilidade. Neste último caso da Turquia, é incrível o que a UE está disposta a fazer: gastar 3 mil milhões de euros, garantir vistos para 75 milhões de pessoas, e como bónus assegurar uma maioria eleitoral ao partido no Governo. É o desespero, que está a gerar este sistema de chantagem dos países vizinhos.

O que explica esse desespero, é o receio dos Governos europeus dos efeitos políticos da entrada destas populações estrangeiras?
Infelizmente, o clima político é semelhante nos Estados Unidos, no Canadá ou na Austrália. A UE está a tentar provar a sua potência, depois de ter sido criticada por não ter feito nada até agora. E como tem pressa, tem de fazer concessões – e note que no acordo com a Turquia em discussão, não há nada que obrigue o Governo [de Ancara] a implementar as medidas descritas ou, se não o fizer, a devolver o dinheiro. O que implica, logo à partida, que as condições [para os refugiados] que na Turquia eram boas demais para ser verdade, vão seguramente piorar muito.