A dieta d’ Ella salvou-a

Tem um blogue de receitas com milhões de visitas por mês ?e mais de 400 mil seguidores no Instagram. Ella Woodward tornou-se um fenómeno depois de ter tido uma doença rara e de ter melhorado com uma dieta alimentar.

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Foi de repente, no final do Verão de 2011, que a vida de Ella Woodward se suspendeu. Filha do deputado trabalhista britânico Shaun Woodward e de Camilla Sainsbury (da família proprietária dos supermercados Sainsbury), tinha 19 anos e terminara o segundo ano do curso de História da Arte na Universidade de St. Andrews. Passara o Verão em Paris a fazer alguns trabalhos como modelo, tinha um namorado e tudo estava a correr bem.

Mas, de um momento para o outro, o seu corpo começou a ter um comportamento estranho. Basicamente, Ella não conseguia manter-se de pé e tinha um permanente mal-estar que se manifestava de diversas maneiras, cada uma mais incómoda do que a outra.

“Não conseguia sequer andar na rua, dormia 16 horas por dia, desmaiava, tinha dores crónicas, palpitações ininterruptas, problemas de estômago insuportáveis, dores de cabeça constantes”, descreve no seu livro As Delícias de Ella (que acaba de ser editado em Portugal pela Lua de Papel). Depois de muitos exames e de muitas entradas e saídas de hospitais, os médicos diagnosticaram-lhe uma doença rara: síndrome de taquicardia postural.

Trata-se de uma doença — que pode ter uma origem viral — que afecta todo o funcionamento do sistema nervoso autónomo, agravando-se quando a pessoa está de pé. Não, não era “do foro psicológico”, como muitas pessoas lhe diziam. No entanto, foram precisos quatro meses até os médicos conseguirem identificar exactamente o problema. E mesmo aí as coisas não melhoraram.

Os esteróides e medicamentos que tomava não alteravam significativamente o seu estado e Ella estava desesperada. “Continuava praticamente presa à cama, o que me provocava uma sensação de grande isolamento, pelo que a minha confiança e auto-estima desapareceram”, escreve. A certa altura, achando que não podia continuar assim, decidiu que ia fazer com o namorado uma viagem a Marrocos que tinha sido combinada antes de ela adoecer. “Acabei por ser trazida para casa, semi-inconsciente, numa cadeira de rodas.”

Foi então que resolveu começar a pesquisar na Internet e encontrou um livro escrito por uma norte-americana, Kris Carr, que tinha tido um cancro e mudara radicalmente a forma como se alimentava. Ella nunca tinha pensado muito na forma como comia. Mas o relato de Carr em Crazy Sexy Diet convenceu-a.

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“Não conseguia sequer andar na rua, dormia 16 horas por dia, desmaiava, tinha dores crónicas, palpitações ininterruptas, problemas de estômago insuportáveis, dores de cabeça constantes

Na verdade, até essa altura, a alimentação de Ella era muito pouco saudável. “Muita junk food, pizzas, hambúrgueres, chocolates”, conta à Revista 2 durante uma conversa numa tarde chuvosa, no restaurante vegetariano Jardim dos Sentidos, em Lisboa, depois de um almoço que consistiu em várias das suas receitas. “No Reino Unido, muita gente come grandes quantidades de açúcar. As pessoas crescem com isso, o açúcar e os doces estão em todo o lado, são algo normal, não são para um momento especial. Por isso, limitava-me a comer o que os outros comiam e não pensava muito no que estava a pôr no meu corpo.”

A descrição que faz no livro é bastante mais assustadora. Não comia fruta nem legumes (à excepção de bananas e milho) e era viciada em doces. “Até há quatro anos, eu era uma consumidora feroz de açúcar, posso mesmo afirmar que a minha dependência era total”, afirma, para de seguida descrever a mistura que gostava de fazer com as irmãs e que consistia em lançar para uma taça de coisas como chocolates de leite, marshmallows, gomas, caramelos, xarope de glucose e Rice Krispies, deixando-as derreter até formarem “um monte deliciosamente pegajoso de chocolate”.

Neste momento, o açúcar foi uma das coisas que desapareceram da vida de Ella — assim como a carne, os produtos lácteos, o glúten e os alimentos processados, com químicos e aditivos. A sua alimentação baseia-se em grande parte em fruta e legumes. “Não como carne nenhuma e, embora coma peixe às vezes, sinto-me melhor quando não o faço, porque acho que é mais difícil de digerir que os vegetais”, explica.

Depois de ler o livro de Carr e recolher mais informação na Internet, decidiu alterar a alimentação. “Foi um processo muito lento”, conta-nos. “Foram precisos 18 meses para poder deixar a medicação e não sentia melhoras todos os dias.” Mesmo assim, insistiu.

Mas teve de vencer outro obstáculo: o seu total desconhecimento das mais básicas técnicas de cozinha. “Conseguia cozer esparguete e fazer ovos mexidos, mas era tudo.” Arranjou três receitas — papa de banana e mirtilos para o pequeno-almoço, torrada de trigo sarraceno com abacate e tomates assados, para o almoço, e massa integral com molho de legumes, para o jantar — que comeu todos os dias durante três meses.

Os sinais de melhoras eram encorajadores, mas Ella estava farta daqueles três pratos. Resolveu então começar a experimentar outros. “Aprendi a cozinhar brincando com os alimentos. Nunca segui regras com as receitas, fui experimentado para ver o que acontecia. Aprendi por tentativa e erro e as receitas foram surgindo.”

Para garantir que não desistia, começou um blogue. Teve um sucesso extraordinário — e, para ela, totalmente inesperado. O seu livro lançado agora em Portugal chegou às livrarias britânicas em Janeiro deste ano e durante seis semanas manteve-se no primeiro lugar do top de vendas. O seu blogue Deliciously Ella tem seis milhões de visitas por mês e no Instagram atingiu já os 400 mil seguidores.

No livro e no blogue explica quais os ingredientes básicos que tem na cozinha — vinagre de sidra, leite de coco, farinhas e massas sem glúten, tâmaras medjool (que usa como substituto do açúcar, alertando no entanto para o facto de serem mais caras do que as outras), manteigas de oleaginosas, sementes, adoçantes, etc. Ensina a fazer leites e sais caseiros, a cozinhar cereais, faz “pataniscas” de quinoa e brownies de batata-doce ou tarte de lima, e responde a perguntas como “como faz quando sai com amigos?” ou “como é que se ingerem proteínas suficientes numa dieta de base vegetal?”.

E entre os seus planos para o futuro próximo está a abertura de uma cadeia de restaurantes em Londres (o nome ainda é secreto) com as suas receitas — está previsto que o primeiro inaugure já daqui a poucas semanas.

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Aprendi a cozinhar brincando com os alimentos. Nunca segui regras com as receitas, fui experimentado para ver o que acontecia

Ella não explica de que forma a dieta influenciou a doença e também não obteve essa explicação da parte dos médicos. “A decisão de alterar a forma como me alimentava foi minha e completamente independente deles”, afirma. Os sintomas desapareceram, mas mostra-se cautelosa. “Acho que se voltar a comer imenso gelado e chocolate podem voltar, mas no dia-a-dia deixei de ter sintomas. Julgo que tem tudo a ver com o facto de equilibrarmos o nosso corpo.”

Nunca diz que ficou curada, mas defende que “há muitas doenças ligadas ao estilo de vida, pessoas com a síndrome do intestino irritado, por exemplo, ou pessoas que sentem pouca energia ou muitas dores de cabeça”. Nesses casos, acha que “se deve olhar para a alimentação”. Quanto a outras doenças mais complicadas, diz perceber “que os médicos se mostrem cépticos”.

Se procurarmos informação sobre a síndrome da taquicardia postural — que está integrada nas disautonomias, um conjunto de patologias do sistema nervoso autónomo e que afecta mais as mulheres —, encontramos conselhos de alteração de estilo de vida que passam pelo aumento do consumo de líquidos e de sal (por causa do sódio, que tem um papel na regulação da frequência cardíaca), por fazer refeições mais pequenas, pela redução dos hidratos de carbono e por uma avaliação da reacção ao glúten e aos produtos lácteos.

José Camolas, nutricionista do Serviço de Endocrinologia do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, reconhece que estes exemplos de sucesso influenciam muita gente, mas considera que “o risco é o paciente achar que vai curar-se com a alteração da dieta e não procurar outro tipo de tratamento”. A tendência actual, explica, é olhar para “a forma como cada um de nós metaboliza os alimentos” e que difere de pessoa para pessoa. “Cada um utiliza os mesmos nutrientes de forma diferente em função de vários factores, características genéticas, a dieta que segue habitualmente, o local onde vive, o estilo de vida, etc.”

Daí que “existam grandes probabilidades de a estratégia adoptada por uma pessoa não ter o mesmo impacto noutra pessoa com a mesma patologia”. Não conhecendo directamente o caso de Ella, imagina, no entanto, que a mudança de alimentação terá sido acompanhada por uma mudança mais completa de estilo de vida — uma soma de alterações que terá contribuído para melhorar o bem-estar geral e fazer desaparecer os sintomas.

“Cada vez mais vejo o trabalho em nutrição como uma abordagem personalizada levada ao extremo”, afirma José Camolas. “Nas minhas consultas, tento perceber o padrão alimentar dos meus clientes e partir dos pontos que os deixam confortáveis ou desconfortáveis e alinhar a dieta com o padrão desejável.”

No entanto, reconhece que “ainda se está a iniciar o conhecimento” em áreas como a “evicção [retirada de grupos inteiros de alimentos] total do glúten ou da lactose ou a utilização de produtos biológicos”. O que diz a quem decide iniciar uma dieta vegan, por exemplo, é que esta “não é um padrão de alimentação, é uma forma de estar na vida” que implica que a pessoa “adquira um conjunto de competências em áreas como a preparação de alimentos ou a leitura de rótulos”.

No caso de Ella, José Camolas acredita tratar-se de alguém que “tirou o foco da doença e sentiu-se parte da solução”. Fazê-lo através da dieta “foi uma excelente estratégia” e, neste momento, já passou da fase da evicção para a da construção, criando as próprias receitas. 

Quanto aos milhares de seguidores de Ella, diz simplesmente que “se o prato lhes agradar e gostarem de cozinhar e se esse exemplo lhes dá esperança de se sentirem melhor”, isso são “camadas interessantes” que podem ter um contributo positivo. A esperança é importante e não deve ser menosprezada, admite. “Às vezes, nós, técnicos de saúde, apresentamos muito o problema e os riscos e não elogiamos as pessoas pelos seus resultados terapêuticos. No fundo, cuidamos pouco da esperança dos doentes.”