Alheiras, Clostridium botulinum e botulismo
Reza a história que a alheira foi inventada, em finais do século XV, pelos judeus refugiados em Trás-os-Montes que, por questões religiosas, não consumiam carne de porco, acabando por ser facilmente identificados e perseguidos. Ora, para convencer a Inquisição da sua condição de cristãos-novos, os judeus começaram a fazer pequenos enchidos dourados que aparentavam conter carne de porco – quando o que tinham era carne de aves e de outros animais. A carne de porco foi mais tarde introduzida pelos cristãos, grandes apreciadores destes enchidos.
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Reza a história que a alheira foi inventada, em finais do século XV, pelos judeus refugiados em Trás-os-Montes que, por questões religiosas, não consumiam carne de porco, acabando por ser facilmente identificados e perseguidos. Ora, para convencer a Inquisição da sua condição de cristãos-novos, os judeus começaram a fazer pequenos enchidos dourados que aparentavam conter carne de porco – quando o que tinham era carne de aves e de outros animais. A carne de porco foi mais tarde introduzida pelos cristãos, grandes apreciadores destes enchidos.
Atualmente, a alheira tem como ingredientes carne e gordura de porco, carne de aves, pão, azeite e especiarias. As carnes são fervidas em água condimentada e o pão, cortado em fatias finas, é embebido e amolecido no caldo das carnes. As carnes desfiadas são adicionadas, a massa é homogeneizada, ajusta-se o tempero e junta-se a banha e o azeite. Tripa de porco ou sintética é enchida com a massa bem misturada e as alheiras seguem para o tradicional fumeiro.
Recentemente, um surto de botulismo foi atribuído ao consumo de alheiras comercializadas por uma única marca. O botulismo é o nome dado às intoxicações causadas pela bactéria Clostridium botulinum. O botulismo alimentar resulta da ingestão de alimentos contaminados com a toxina produzida pela bactéria, denominada “toxina botulínica”. Esta intoxicação alimentar é reconhecida, há mais de um século, como sendo causada pelo consumo de “salsichas” (botulus em latim), com sintomas que incluem fraqueza, visão dupla e dificuldade em falar e em engolir e que, se não for diagnosticada e tratada, pode levar à morte por paragem cardiorrespiratória.
O que terá estado na origem deste surto? Poderia ter sido evitado? Com o que sabemos sobre C. botulinum e, nomeadamente, sobre alheiras, é possível chegar a algumas conclusões.
Existem poucas probabilidades de que a bactéria tenha sobrevivido ao processo de cozedura das carnes, e a contaminação pode ter ocorrido aquando da adição dos restantes ingredientes. Se as alheiras tivessem sido mantidas a temperaturas de armazenamento inferiores a 10°C, a contaminação, embora indesejável, não teria causado o botulismo. Ainda, sabendo que existe a possibilidade (remota) de crescimento e produção de toxinas a temperaturas inferiores a 4°C, a toxina botulínica é destruída se mantida durante alguns segundos a 90°C, ou durante cerca de meia hora a 80°C. Se as alheiras atingissem estas temperaturas, o botulismo seria evitado.
A alheira é cozinhada antes de ser consumida – assada, grelhada ou frita. Mas, como tínhamos já demonstrado e publicado no Food Control Journal (vol. 22, pages 1960-1964, 2011), a maioria dos processos culinários utilizados, em casa como na restauração, na preparação de alheiras para consumo não são suficientes para destruir bactérias ou toxinas. Com base neste estudo, as únicas alheiras que atingiram temperaturas suficientes para destruir a toxina botulínica foram as assadas no forno. Saberão os consumidores como cozinhar uma alheira de forma segura? Não existem indicações nos rótulos sobre os tempos e as temperaturas a que devem ser cozinhadas.
Esta é, provavelmente, a mensagem mais importante a transmitir aos produtores – indicações precisas nos rótulos podem reduzir ocorrências graves. É, também, uma demonstração inequívoca da necessidade de se fortalecerem as ligações entre a indústria e a investigação alimentares, a bem dos consumidores.
Docente da Escola Superior de Biotecnologia da Universidade Católica Portuguesa, no Porto. A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico.