Os olhos no escuro
Nos contos de Leila Guenther o tempo e o espaço são conceitos que implodem deixando o leitor a caminhar na escuridão
A brasileira Leila Guenther (Santa Catarina, 1976) estreou-se na literatura com a colectânea de contos – brevíssimos, a maioria de apenas uma página, ou pouco mais do que isso – O Voo Noturno das Galinhas (2006). Depois publicou outra colecção de histórias curtas e participou em meia dúzia de antologias (dedicadas ora a Guimarães Rosa, a Machado de Assis, a Adorno, ao erotismo...). Este livro, recentemente por cá publicado pela editora madeirense Nova Delphi – que nos tem dado a conhecer uns quantos autores brasileiros – fascina de imediato pela estranheza, pela sensação pouco usual de fechamento claustrofóbico da historia sobre o leitor, pelas personagens que estão presas num espaço diminuto com a conivência de quem lê, como se aqueles contos tão breves não acabassem logo ali mas continuassem mais adiante, noutros que os teriam de recuperar. Desde a primeira história que o leitor é de imediato envolvido numa espécie de escuridão que parece querer iluminar-se a si própria, a escrita com “os olhos abertos no escuro, tão treinados que enxergavam nas trevas”.
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A brasileira Leila Guenther (Santa Catarina, 1976) estreou-se na literatura com a colectânea de contos – brevíssimos, a maioria de apenas uma página, ou pouco mais do que isso – O Voo Noturno das Galinhas (2006). Depois publicou outra colecção de histórias curtas e participou em meia dúzia de antologias (dedicadas ora a Guimarães Rosa, a Machado de Assis, a Adorno, ao erotismo...). Este livro, recentemente por cá publicado pela editora madeirense Nova Delphi – que nos tem dado a conhecer uns quantos autores brasileiros – fascina de imediato pela estranheza, pela sensação pouco usual de fechamento claustrofóbico da historia sobre o leitor, pelas personagens que estão presas num espaço diminuto com a conivência de quem lê, como se aqueles contos tão breves não acabassem logo ali mas continuassem mais adiante, noutros que os teriam de recuperar. Desde a primeira história que o leitor é de imediato envolvido numa espécie de escuridão que parece querer iluminar-se a si própria, a escrita com “os olhos abertos no escuro, tão treinados que enxergavam nas trevas”.
Os 33 contos de Leila Guenther são autónomos entre si, mas há um fio que os liga para alem do estilo da escrita, é essa estranha sensação de que “a realidade e a fantasia são absolutamente inúteis” àquelas narrativas, como diz a voz que conta uma das historias. “Minha nova dificuldade consiste em não distinguir o que sonhei do que realmente aconteceu. Vêm-me à cabeça lembranças que, depois, descubro, não passaram de sonhos.” Estamos, ao longo das noventas páginas, num ambiente onírico, onde o tempo e o espaço são conceitos que parecem implodir de vez em quando deixando o leitor a caminhar na escuridão, tentando adivinhar o dia que virá depois daquela noite que se sabe longa. Há em Leila Guenther uma inesperada tensão narrativa muito pouco usual para um primeiro livro, uma tensão que ao mesmo tempo liga todos os contos (nem a disparidade de vozes a trai) numa narrativa única, apesar de bastante fragmentada. De longe chegam ao leitor murmúrios das vozes de Kafka, de Borges, de Clarice Lispector, entre outras. Também Penélope, que espera sentada por Ulisses na ilha (mais uma vez um espaço claustrofóbico), anda por ali: “Mas havia tanto tempo que arranquei todos os botões das camisas que ficaram e pus-me a pregá-los de novo.”
Estes contos são disparos fotográficos em que a autora faz questão de nos mostrar apenas o negativo, o jogo de tons, de sombras que se entrelaçam por detrás do cenário, o preto e o branco que se confundem e que se distorcem de maneira propositada para esconderem a nitidez. Há neles gente que tentou sobreviver para saber como iria ser o futuro, e que quando este chegou percebeu que não seria melhor. “Oráculos verdugos, como para me lembrar: veio o futuro”. Há mulheres que se evadem da vida quotidiana a que estão cingidas, e que dela partem para um outro tempo (quase sempre onírico e livre) implodindo o espaço de claustrofobia em que vivem: “O peixe. Hoje várias vezes ela se vira como um, dentro de um pequeno aquário e, quando a situação ficava pior, para não chorar imaginava-se livre, nadando num rio sem vidros, para longe, para sempre.” Há mulheres e homens que não se entendem, que não se suportam, que se ofendem mutuamente por ignorância um do outro, por incapacidade de empatia, de afecto, por medo, como a historia da mulher a quem de vez em quando assomava um lado escuro “que ele não compreendia e, por isso mesmo, poderia submergi-lo no caos, [ele] tornava-se agressivo e tinha vontade de insulta-la.” Há mulheres que se recusam a mostrar-se, por medo, por incompreensão de si próprias: “Haveria sempre um lado dela que se fecharia, ao qual jamais ele teria acesso.”
O Voo Noturno das Galinhas é um livro que se abre sobre o abismo, sobre os nossos abismos, e de onde saímos com vontade de regressar a mais histórias de Leila Guenther.