“Quando se chega aqui, ou se diz tudo, ou mais vale ficar calado”

Astronomia, que Mário Cláudio lança hoje no Escritaria, em Penafiel, é ao mesmo tempo um romance complexo e inovador e um desassombrado e minucioso auto-retrato, no qual o escritor se expõe de um modo raramente visto na ficção portuguesa.

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A coragem deste romance também está na sua complexa estrutura e nos inovadores dispositivos narrativos Diogo Baptista

Conta a infância sem se poupar a nenhum embaraço, das pequenas crueldades que todas as crianças cometem às ingénuas experiências eróticas com criadas e rapazes. Narra abertamente a longa relação amorosa que iniciou aos 25 anos com um inglês que não nomeia no livro, mas que é uma das pessoas que fez questão de ter ao seu lado na homenagem que o festival Escritaria lhe está a prestar em Penafiel, descreve a sua desolada passagem pelo funcionalismo público, confessa as ânsias juvenis de reconhecimento nos anos em que se dava a conhecer ao mundo como escritor, descreve com demorada minúcia os seus rituais de velhice, a ponto de nos mostrar como procede ao ensaboamento de orelhas e sovacos, para já não falar das “nádegas e respectivas adjacências ocultas”. Talvez nenhum romancista português se tenha exposto tanto como Mário Cláudio neste Astronomia, mesmo se ele próprio vai avisando que o livro, “como todos os retratos, também é mentiroso”. Mas a sua autenticidade, uma autenticidade que dispensa nomes, datas ou lugares em benefício de verdades mais essenciais, não deve fazer esquecer que a coragem deste romance também está na sua complexa estrutura e nos inovadores dispositivos narrativos, que incluem o recurso a fotografias, a citações de contos tradicionais e a entradas de dicionários, e ainda um estranho narrador, que chama “velho” a um menino e “menino” a um velho, até os confundir a ambos no final. “É curioso”, diz Mário Cláudio, “que foi só ao escrever este livro que soube que não tive uma infância feliz.

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Conta a infância sem se poupar a nenhum embaraço, das pequenas crueldades que todas as crianças cometem às ingénuas experiências eróticas com criadas e rapazes. Narra abertamente a longa relação amorosa que iniciou aos 25 anos com um inglês que não nomeia no livro, mas que é uma das pessoas que fez questão de ter ao seu lado na homenagem que o festival Escritaria lhe está a prestar em Penafiel, descreve a sua desolada passagem pelo funcionalismo público, confessa as ânsias juvenis de reconhecimento nos anos em que se dava a conhecer ao mundo como escritor, descreve com demorada minúcia os seus rituais de velhice, a ponto de nos mostrar como procede ao ensaboamento de orelhas e sovacos, para já não falar das “nádegas e respectivas adjacências ocultas”. Talvez nenhum romancista português se tenha exposto tanto como Mário Cláudio neste Astronomia, mesmo se ele próprio vai avisando que o livro, “como todos os retratos, também é mentiroso”. Mas a sua autenticidade, uma autenticidade que dispensa nomes, datas ou lugares em benefício de verdades mais essenciais, não deve fazer esquecer que a coragem deste romance também está na sua complexa estrutura e nos inovadores dispositivos narrativos, que incluem o recurso a fotografias, a citações de contos tradicionais e a entradas de dicionários, e ainda um estranho narrador, que chama “velho” a um menino e “menino” a um velho, até os confundir a ambos no final. “É curioso”, diz Mário Cláudio, “que foi só ao escrever este livro que soube que não tive uma infância feliz.

Uma coisa difícil de negar a este romance autobiográfico é que é um livro corajoso. Fala  abertamente da sua sexualidade, confessa pânicos e fobias, descreve com uma minúcia potencialmente embaraçosa os seus rituais de higiene, para citar apenas alguns exemplos. Tratou-se de uma decisão prévia, combinou consigo próprio que ia expor-se sem contemplações, ou foi a própria escrita do livro que o empurrou? 
Foi um processo espontâneo. Antes de mais, isto aconteceu na altura em que acho que devem acontecer as memórias, as autobiografias. Não é tanto por estar avançado em anos, mas porque a partir de certa altura olha-se para trás e as coisas que não faziam sentido começam a fazer todo o sentido. É como se a vida fosse um mosaico e as peças estivessem todas trocadas, mas de repente caíssem todas nos sítios certos e formassem um padrão inteligível. Por isso não tinha alternativa se não ser o mais autêntico possível. E uma das grandes vantagens da idade é perder-se a vergonha: deixa-se de ter preocupações sobre o que os outros vão pensar disto ou daquilo, do que somos ou não somos, das nossas opções de vida. Tudo isso se torna secundário, inexistente. De modo que o caminho estava aberto para eu pôr no livro o que achasse que devia pôr. Sei que em determinadas passagens terei sido um pouco cruel comigo próprio, mas isso também faz parte da nossa natureza. E quando se chega aqui, ou se diz tudo, ou mais vale ficar calado.

Depois de um início mais experimental, com Um Verão Assim, tornou-se a partir dos anos 80, quando publicou Amadeo, Guilhermina e Rosa, um romancista-biógrafo, com uma obra que é hoje quase um catálogo dos vários modos possíveis de tratar ficcionalmente a biografia. O que é que o levou a seguir esse caminho?
Alguém disse que um ficcionista a partir de dado momento só devia ler biografias, e eu concordo. As histórias estão todas inventadas, as vidas estão todas inventadas, e uma biografia é tão inventada como um livro de memórias ou uma autobiografia. Também neste livro o ingrediente ficcional é impossível de descartar, e é espesso. O que me interessa no convívio com os outros é aquilo a que poderia chamar a alma dos outros. E essa alma tem de ser escavada, ou ficamo-nos pela superficialidade, e eu faço isso através da escrita. Há dias, uma jovem romancista que aprecio, a Isabel Rio Novo, disse-me uma coisa curiosa: que sempre que entra num museu, a primeira coisa que vai ver são os retratos. Acontece o mesmo comigo. Interessa-me o que há de retrato na pintura: o auto-retrato, o retrato do outro, a confrontação de rostos.  Este livro insere-se nisso, é uma espécie de auto-retrato, e como todos os retratos, também é mentiroso. 

Se todas as suas biografias conterão alguma dimensão autobiográfica, parece legítimo sugerir que Tiago Veiga é nesse aspecto um caso à parte, pese embora a declarada diferença de idades entre o retratado, que teria nascido em 1900, e o retratista. Numa obra cheia de trilogias e de livros inter-relacionados, diria que Anatomia mantém uma ligação especial com essa biografia de um desconhecido e versejador bisneto de Camilo?
Acho que sim, que este livro está próximo de Tiago Veiga. É o outro lado do espelho. E sobre isso não posso dizer mais nada. Mas voltando à questão do romancista-biógrafo, há um aspecto a precisar: é que no meu caso, quando se fala de biografia, não se trata necessariamente de biografar uma pessoa. Pode ser um projecto, como quando abordei a tentativa do Eça de escrever As Batalhas do Caia, ou um crime, como em Ursamaior, ou até uma determinada situação, como acontece nesta última trilogia dedicada às relações afectivas entre pessoas de idades muito distintas. As figuras que aparecem nesses livros são apenas ilustrativas dessa situação, não faço a biografia do discípulo de Leonardo [em Retrato de Rapaz, 2014] ou da Alice Lidell [em O Fotógrafo e a Rapariga, 2015].

Astronomia tem um dispositivo narrativo com várias singularidades. Começo por esta: a primeira parte diz respeito à sua infância e é contada no presente, mas enquanto os seus parentes - pais, avó, tios - o tratam por “menino”, o narrador chama-lhe “o velho” e refere-se à casa onde decorre a acção como “a casa demolida”. Simetricamente, o velho retratado na parte final do romance é tratado pelo narrador como “o menino”. A primeira parte da operação poderia justificar-se pelo facto de as infâncias não terem consciência de si próprias, e portanto só poderem ser narradas a posteriori…
De facto, a consciência da infância só existe na velhice, e é uma consciência de revisitação, de mitificação, não da factualidade. Todas aquelas histórias são mitificadas. Em princípio, as crianças são um pouco imunes ao tédio, que é a paisagem dominante da velhice. Mas é o tédio que nos permite pensar nessas coisas. Há muitos anos, vi na televisão uma entrevista com a filha do Eça de Queiroz em que ela conta que um dia estava a olhar pela janela, em Paris, e disse ao pai: “Estou aborrecida”. E o Eça respondeu: “Aborrecida? Olha para as folhas das árvores”. Esta é a operação que a infância não consegue fazer de forma deliberada, porque a infância vê, não olha. Mas o velho, se quer sobreviver como criança, tem de olhar. E quando o velho procura olhar para o mundo com os olhos que tinha em criança, todas as coisas começam a falar.

A opção de pôr o menino tratado por velho a desembocar no velho tratado por menino acentua essa ideia de órbita que o romance desenha, mas também introduz um elemento inquietante no modo como o lemos, porque sentimos aquela infância na “casa demolida” como algo já prometido à ruína, ao mesmo tempo que, no final, é como se adivinhássemos nos rituais do velho o olhar desconcertado do menino.
Acaba por ser o encontro de duas solidões: a da infância e a da velhice. E é curioso que foi só ao escrever este livro que soube que não tive uma infância feliz. Sempre pintei a minha infância como felicíssima. E era. Não me faltava nada, tinha muitos afectos, tinha três tios adolescentes que brincavam imenso comigo, e o meu pai, com quem tive sempre uma relação de grande transparência. Mas tinha rasurado uma coisa: é que a minha infância foi toda ela atravessada pelo sangue. Neste livro, o sangue aparece muito, desde logo o sangue da tuberculose dos meus tios…

Apanharam-na os três, não foi?
Exactamente. Esse é o sangue da doença. E há o meu próprio sangue: conto o episódio em que cortei a cana do nariz com uma lâmina. E depois há o sangue cristológico, de um pietismo ainda à século XIX. A minha avó era extremamente piedosa, talvez por defesa: ficou viúva aos 32 ou 33 anos, e é natural que se tenha arrimado à igreja e à religiosidade. E havia aquela D. Adelaide, uma senhora inglesa amiga da minha avó, que como todos os ingleses católicos era super-católica, uma beata atemorizadora, vestida de preto com uma mantilha na cabeça.

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Ficámos a saber com Anatomia que reza diariamente a Deus, à Virgem e aos santos da sua devoção. Tendo em conta quer a D. Adelaide, quer o que depois conta da frequência de um colégio de padres, há que dizer que a sua fé resistiu a duras provações.
No colégio havia situações claras de pedofilia com um padre que era uma figura tenebrosa, sempre de batina e com uma caixa de bolachas debaixo do braço. Mas era com os rapazes mais velhos, e eu era dos mais novos. A mim, assustou-me mais a D. Adelaide.

Manteve sempre a fé?
Com as oscilações características dos 18 ou 20 anos, sim. O que contribuiu muito para estabilizar a minha religiosidade judaico-cristã foi o convívio com a pintura italiana da Renascença. Comecei a ir a Itália muito cedo, aos 17, 18 anos, e isso deu-me uma visão completamente diferente: já não eram aquelas pagelas horríveis da D. Adelaide, eram imagens religiosas em que havia nudez, juventude, cores, tudo o que o mundo tem de mais exaltante.

Outra singularidade deste livro é o extenso recurso a citações. Na primeira parte vêm  sobretudo de obras para crianças: histórias de Perrault, Andersen, dos irmãos Grimm. E a escolha dos excertos parece servir diferentes propósitos: às vezes são ilustrativas, mas também podem desviar a leitura para interpretações mais inquietantes dos episódios que as antecedem.
É que parte dessa literatura infantil dá acesso àquele universo um pouco conturbado do erotismo vivido com as criadas, que aparece depois no livro. Hoje não temos noção disso, mas havia muitas situações de pedofilia, vividas sobretudo pelos meninos. Criadas muito sabidas que os iniciavam, se não fisicamente, pelo menos no imaginário sexual: “Ponha aqui o dedinho, e mais não sei o quê…”. São passagens que apontam para coisas que virão mais tarde e que são bastante assustadoras. Repare que o referente do sangue é permanente nas histórias tradicionais.

Por vezes essas citações também têm um efeito cómico, como no episódio em que o menino, depois de se ter visto obrigado a masturbar a criada, aponta no papel esta frase: “Puxa a cavilhazinha, a taramela abre-se”.
É tirada de Hansel e Gretel, que também é uma história um bocado indecente, com a bruxa que fecha as crianças e de vez em quando quer ver o dedo do menino... Outra figura hoje altamente sob suspeita é o Flautista de Hamelin, que encanta as crianças com uma flauta. Veja bem, com uma flauta.

Na prática, como é que fez? Iam-lhe ocorrendo passagens para cada episódio, ou fez primeiro um apanhado de citações e depois foi-as enfiando nos momentos mais adequados?
Foram surgindo aos poucos. Tenho um grande baú cheio de memorabilia - livrinhos, brinquedos e outros objectos da infância -, de modo que bastava lá ir e as coisas desencadeavam-se naturalmente.

Na segunda parte, a da maturidade, começam a aparecer citações dos seus próprios livros…
… E mesmo no final, não sei se reparou, voltam os livros da infância, sobretudo de banda desenhada, como o Tintin. E termino com o Príncipe Valente, que lia no Primeiro de Janeiro e é uma figura inultrapassável no meu imaginário infantil.

Ia dizer que a primeira citação sua que aparece é do conto Espólio de Lama, que evoca a guerra colonial. Uma das coisas que se percebe ao ler-se Astronomia é que essa experiência lhe deixou marcas fundas, mas a guerra, curiosamente, não é um tema forte na sua obra, ao contrário do que acontece, por exemplo, com António Lobo Antunes.
Aparece nesse conto e também no Tiago Veiga, onde se relata um encontro dele comigo em Bissau, e em alguns fragmentos de Um Verão Assim. Escrevi ainda uma história a pedido da D. Quixote, para uma colectânea qualquer, que se chama Para o Livro de Oiro do Capitão Garcez, e que é o retrato do tenente Robles, um patife do pior, um tipo ultra-condecorado que cortava cabeças e as punha em cima da mesa. Mas é verdade que rasurei a guerra. Não é caso único: estudei em Coimbra, mas também nunca fui um coimbrão saudosista. Aquela atmosfera de Coimbra, aquele Mondego Mondeguinho, foi-me sempre um bocado repugnante. Os estudantes que viviam nas Repúblicas nunca tomavam banho, e muitos passavam o tempo todo metidos na cama, se calhar vestidos com a roupa de andar de dia.

Viveu a crise académica de 1962 e explica aqui que não simpatizava com os filhos-família ultra-católicos, mas que também não se revia nos grevistas. Não é um pouco estranho? Seria natural que um jovem de vinte anos se deixasse entusiasmar por causas.
Sentia que a maior parte dos que aderiam à greve o faziam por serem amigos deste ou daquele, ou porque não lhes apetecia ir às aulas e preferiam passar o dia aos berros. Havia uns líderes mais esclarecidos, mas o resto era um rebanho que eu achava um bocado irritante.

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Essa atitude de não encaixar bem em nenhum dos lados parece repetir-se após o 25 de Abril, que o apanha na biblioteca de Gaia, onde, segundo conta, ainda conseguiu salvar alguns livros de uma comissão que queria destruir a literatura reaccionária.
Isso aconteceu mesmo. Mas quando estava na biblioteca foi com clara simpatia que vi o 25 de Abril, só que ao mesmo tempo causavam-me repulsa os vira-casacas, tipos que dias antes tinham ido a Lisboa vitoriar o Caetano e que duas semanas mais tarde andavam com o emblema do PC. Nunca fui muito de causas. Ficava tão embaraçado nas sessões em que me obrigavam a cantar o hino nacional, como depois nas outras em que se esperava que cantasse a Grândola.

Embora não cite nenhum deles pelo nome, creio que muitos leitores de Anatomia reconhecerão pelo menos as suas descrições de Pedro Homem de Mello, Eugénio de Andrade, Jorge de Sena e David Mourão-Ferreira. Quatro autores que são antes de mais poetas. Tanto quanto me apercebi, não refere nenhum romancista.
A Agustina não aparece?

Não dei por ela, e era mesmo isso que lhe ia perguntar: se não é uma ausência surpreendente, sendo o Mário Cláudio um autor do Porto, e tendo até em conta as características da sua obra?
Mas aparece no Tiago Veiga. Há um a cena na recepção do Hotel Borges, em Lisboa, em que a Agustina está muito preocupada porque lhe caíram as moedas… Em todo o caso, a ausência de romancistas não é deliberada. De resto, o Sena e o David também foram ficcionistas.

Se mostra votar a Jorge de Sena uma consideração sem reservas, a imagem que dá de Eugénio de Andrade, com quem trabalhou na Segurança Social, não sendo isenta de admiração, parece um bocadinho mais ambígua.
Podia ser-se amigo do Eugénio, mas não um amigo incondicional. Quem o tentou, ficou esmagado. Não era possível. Pela personalidade dele, que era muito possessiva e manipuladora. Já o Sena era temível. Convivi menos com ele, uma vez que estava no estrangeiro, mas era vulcânico, uma pessoa um pouco assustadora naquele seu gigantismo, que se manifestava aos mais diversos níveis. De todos eles, com quem tive uma relação mais afectuosa foi com o David, que ao contrário do que se pensa era tudo menos um mundano, embora gostasse de conviver, sobretudo com mulheres. Era um homme à femmes irredutível. E como é frequente em personalidades desse tipo, era infiel nos amores, mas fidelíssimo nas amizades.

Conta no livro que durante bastante tempo teve uma orientação sexual instável, e que mesmo enquanto leitor se ia apaixonando tanto pelos “eles” como pelas “elas” dos romances que lia…
Houve uma fase de coexistência das duas orientações. Não sei se uma seria mais intensa do que a outra, mas as grandes paixões que tive na adolescência foram por raparigas.

O encontro com o rapaz inglês que viria a ser o amor da sua vida ajudou-o a ultrapassar essa indefinição? Percebe-se que teria uns 25 anos quando se conheceram.
Exactamente. A nossa aventura foi vivida em Inglaterra, onde havia tabus e tradições vitorianas, mas a abertura era muito maior. Em Portugal teria sido inimaginável. Ainda há pouco tempo comentei com esse meu amigo que se os tempos em que nos conhecemos fossem os de agora, quem sabe se não poderíamos ter constituído família. Mas hoje sinto-me absolutamente incapaz de casar com um homem. Não é algo que condene, pelo contrário, mas não me vejo nessa situação, ainda tenho dentro de mim o repressor antigo.

Há no livro muitas figuras cujos nomes nunca vimos a saber - o seu amigo inglês é apenas um deles -, e é ainda mais avaro com a designação dos lugares. Mas dá elementos suficientes para que muitos leitores consigam preencher estas omissões. Dir-se-ia que oculta mas sem querer verdadeiramente esconder.
Sim, nem sequer nomeio alguns países, como a Inglaterra ou a Itália. Faço isso para que todas as suspeitas fiquem latentes, não para ocultar, mas porque não quero certificar ou atestar nada.

Na estrutura do livro, a parte da infância é a mais vasta…
… A infância é sempre grande. Quando vemos os escritores que a frequentaram, como o Proust ou o Nobre, pensamos em termos de grandes infâncias, no mundo da infância. Mas ninguém fala de grandes velhices, a velhice encolhe.

Mas não deixa de ser curioso, na autobiografia de um escritor, que a parte correspondente à carreira literária e profissional seja a menos desenvolvida.
Porque essa é a perspectiva que valoriza a factualidade. Na infância, a factualidade não existe. Existe a imaginação, a mitificação. É um universo que se dilata e domina a vida inteira. Não é preciso ir mais longe, basta pensar na psicanálise: o Freud não estudou pessoas que tiveram um trauma terrível aos 30 anos. Da maturidade, o que está no livro é uma espécie de resmonear interior, uma ruminação do que aconteceu. E depois na terceira parte, na velhice, há uma grande permanência do sono, o sono que antecipa a morte, e que é o contraponto da aurora infantil.

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No final, o livro insiste muito nesses momentos entre a vigília e o sonho. É uma fronteira em que nos tornamos um bocadinho seres isentos de tempo, em que somos ao mesmo tempo o menino e o velho?
É isso mesmo. São os chamados estados hipnagógicos. É aliás assim que acaba o livro, com uma viagem através dessa estratosfera, que é de algum modo metafórica do que acontece no fim da vida. Quando as pessoas têm demências senis, caem nesses estados, que podem ser crepusculares, mas também podem ser de um regresso jubiloso à infância. Os velhos de um modo geral dão-se muito bem com as crianças, porque há ali grandes afinidades. Lidam mal é com a maturidade, que é autocrática, disciplinadora, e tem uma vocação didáctica que o velho não suporta.

Uma das seduções deste livro é a evocação de palavras e expressões que caíram em desuso, como “está choquinha” aplicado a uma grávida, ou a interjeição “bumba”, ou ainda esconjuros tão pitorescos como esse que o protagonista do livro ouve a uma criada: “Vade retro, Satanás, para as pedras cagadeiras!”. Há nisso um intuito de defesa do património linguístico? Estou também a pensar nos vários momentos em que o protagonista do livro vai procurar definições ao dicionário.
Há, e assumo-o. Se me perguntarem se acredito na literatura como missão, direi redondamente que não, mas nesse plano acho que tenho o dever, como escritor, de tentar preservar todas as teclas da língua portuguesa. Se existem, é para serem usadas, não podem é ser usadas a torto e a direito.

Outro aspecto talvez não tão obviamente sedutor é a recorrência do tópico dos trânsitos intestinais. De vários episódios de diarreias catastróficas até às páginas em que reflecte sobre o acto de defecar e historia os vários métodos de limpar o rabo que o engenho humano foi propondo. O tema interessa-lhe como símbolo da nossa condição?
Da nossa condição miserável, sim. O Régio chamava muito a atenção para a circunstância de os nossos órgãos do amor estarem ligados às coisas mais porcas do corpo humano, algo que só  poderia ocorrer a alguém de formação judaico-cristã. 

Num livro em que muita gente, mesmo sem ser nomeada, não sai nada bem do retrato, como os seus ex-colegas da segurança Social, nem as pessoas que convida para almoçar escapam a alguns remoques, umas pelo que dizem, outras pelas maneiras à mesa. Não receia que leiam o livro e comecem a recusar os convites.
Não creio que recusem. Todos os autores fazem isto, a Agustina fartou-se de o fazer. Todos temos os nossos ridículos, mas há-de reconhecer que também ponho aqui os meus, não me coloco num plano diferente.

Satiriza aqui também essas fornadas de novos escritores confiantes nas suas “intuições geniais”, mas assegura que quando lhe aparece o artigo genuíno, “não se poupa a esforços para proclamar a epifania”.
É verdade, e por acaso aqueles a quem tenho dado o meu aval estão nos antípodas de mim em termos estéticos, como o Gonçalo M. Tavares. Mas tem uma linguagem própria, identifico-o no que escreve, e isso para mim continua a ser importante. E há autores de uma geração mais próxima da minha de quem sou leitor devotado. Uma delas é a Hélia Correia, que acho uma escritora fabulosa. E esse é um caso de admiração gostosa, porque é da minha família. E a próxima crónica que vou escrever para o DN será sobre a Olga Gonçalves, que está completamente esquecida, mas que é a única voz do romance português que deu um testemunho eficaz do pós-revolução.

Gostaria de ver a autobiografia e o memorialismo mais praticados em Portugal?
Escreveram-se memórias importantes no século XIX, e antes disso, e mais recentemente houve os diários do Torga e do Vergílio Ferreira, mas é uma tradição escassa. E nas biografias o que se faz é esse rebotalho que agora aparece por aí. Ainda há dias abri uma, sobre uma rainha dos primórdios da nossa nacionalidade, e logo na primeira página a autora põe a dita a espirrar e a queixar-se de que é alérgica ao pólen das mimosas, que por acaso só chegaram a Portugal, vindas da Austrália, no século XVIII.

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