Não dormimos menos do que os caçadores-recolectores das sociedades pré-modernas

Estudo fez registos dos hábitos de sono em três sociedades actualmente existentes de caçadores-recolectores, em África e na América do Sul.

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Mohammed Salem/Reuters

Talvez possamos culpar as noitadas a ver televisão e a navegar horas a fio na Internet, as idas ao frigorífico a meio da noite, a leitura de bons livros, as preocupações com o trabalho e outras distracções da vida moderna pelo pouco tempo que passamos a dormir. No entanto, ao olhar para três sociedades de caçadores-recolectores que ainda existem actualmente, isoladas em África e na América do Sul de todas as tecnologias modernas, uma equipa de investigadores concluiu que não dormem mais do que nós.

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Talvez possamos culpar as noitadas a ver televisão e a navegar horas a fio na Internet, as idas ao frigorífico a meio da noite, a leitura de bons livros, as preocupações com o trabalho e outras distracções da vida moderna pelo pouco tempo que passamos a dormir. No entanto, ao olhar para três sociedades de caçadores-recolectores que ainda existem actualmente, isoladas em África e na América do Sul de todas as tecnologias modernas, uma equipa de investigadores concluiu que não dormem mais do que nós.

Os investigadores acompanharam 94 adultos em três sociedades de caçadores-recolectores: os Tsimané (da Bolívia), os Hadza (da Tanzânia) e os San (da Namíbia), durante um total de 1165 dias. Este é primeiro estudo dos padrões de sono de caçadores-recolectores, tendo sido publicado na revista Current Biology.

Mesmo sem electricidade e outras modernidades, eles dormiam uma média seis horas e 25 minutos por dia, o que se encaixa na média das sociedades industrializadas. “A grande conclusão não é que eles dormem menos, é que não dormem claramente mais, ao contrário que se presumia”, diz um dos autores da investigação, Jerome Siegel, professor de psiquiatria da Universidade da Califórnia em Los Angeles, Estados Unidos.

Havia a ideia, prossegue Jerome Siegel, de que as pessoas antes dormiam mais do que agora e que a vida moderna reduz o tempo passado a dormir, mas os resultados do estudo sugerem que isso é um mito. “A curta duração do sono nestas populações desafia a ideia de que essa duração foi reduzida substancialmente no ‘mundo moderno’. Isto tem implicações importantes para a ideia de que precisamos de tomar comprimidos para dormir, porque o ‘nível natural’ do tempo de sono é menor devido à disseminação do uso da electricidade, da televisão, da Internet e por aí adiante”, refere ainda Jerome Siegel, citado num comunicado do grupo editorial da revista Current Biology.

“Estes resultados desafiam muitas das crenças tradicionais sobre o que é dormir ‘normalmente’”, resume, por sua vez, o antropólogo Gandhi Yetish, da Universidade do Novo México (EUA), também da equipa.

Os Hadza e os San são caçadores-recolectores, enquanto os Tsimané são considerados caçadores-horticultores, cultivando alguns dos seus alimentos. Os seus estilos de vida são vistos como análogos das sociedades humanas antigas antes do advento da agricultura, há cerca de dez mil anos.

Os participantes no estudo usaram pequenos aparelhos no pulso para registar o tempo que passavam a dormir e acordados, tendo ainda em conta o tempo de duração da existência de luz solar. “Visitei os participantes do estudo nas suas casas todas as manhãs, para entrevistas curtas de dez minutos sobre as suas actividades antes de irem para a cama, a fadiga, os sonhos e outros assuntos relacionados com o sono”, conta Gandhi Yetish, que passou dez meses com os Tsimané e dormiu numa tenda perto deles. Os Tsimané vivem em casas construídas com a madeira da floresta tropical e os telhados são feitos de folhas entrelaçadas. Tipicamente, as famílias têm uma horta, além de também caçarem e pescarem.  

Apesar de não terem electricidade, as pessoas das três sociedades estudadas não vão para a cama com o pôr do Sol, permanecendo acordados ainda mais de três horas e levantando-se antes do nascer do Sol. Raramente dormem a sesta. A duração do tempo de sono é ainda sazonal, sendo mais de seis horas durante o Verão e cerca de sete no Inverno.

“Apesar de terem genéticas, histórias e ambientes diferentes, os três grupos têm uma organização do sono semelhante, o que sugere a existência de um padrão central para o sono humano, provavelmente característico do ‘Homo sapiens’ da era pré-moderna”, avança Jerome Siegel.

A temperatura ambiente parece ter mais a ver com a duração do sono e com a altura para ir para a cama do que com a luz solar. Nestas sociedades da era pré-moderna, explica ainda o comunicado, as pessoas vão para a cama quando a temperatura desce, dormindo na parte mais fria da noite.

Num aspecto os caçadores-recolectores são diferentes de nós: poucos têm insónias crónicas. Reproduzir aspectos do ambiente natural e a forma como estes grupos humanos se relacionam com eles, sugere a equipa de cientistas, pode ser uma maneira de tratar alguns problemas de sono da sociedade moderna, como a insónia crónica.