Os simples
Primeiro volume da colecção Ephemera da Biblioteca e Arquivo de José Pacheco Pereira pode ser tomado como um modo de espreitar vidas populares ou das classes baixas, talvez por simples voyeurismo ou, quem sabe, com uma vontade folclorista
José Pacheco Pereira, mais conhecido como historiador, jornalista e político, é também um grande coleccionador e bibliófilo. A sua biblioteca e arquivo na Marmeleira, no coração do Ribatejo, alcançaram já uma reputação que cedo se transformará numa lenda. Alguns dirão, mesmo: uma lenda digna de ser criada por um qualquer Jorge Luís Borges. Mas, aos que assim pensam, conviria responder que o mais difícil de entender no modo como Borges se referia à leitura de livros e à organização das bibliotecas era o sentido oblíquo, irónico ou mesmo de escárnio, por ele atribuído à erudita acumulação de saberes.
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José Pacheco Pereira, mais conhecido como historiador, jornalista e político, é também um grande coleccionador e bibliófilo. A sua biblioteca e arquivo na Marmeleira, no coração do Ribatejo, alcançaram já uma reputação que cedo se transformará numa lenda. Alguns dirão, mesmo: uma lenda digna de ser criada por um qualquer Jorge Luís Borges. Mas, aos que assim pensam, conviria responder que o mais difícil de entender no modo como Borges se referia à leitura de livros e à organização das bibliotecas era o sentido oblíquo, irónico ou mesmo de escárnio, por ele atribuído à erudita acumulação de saberes.
O primeiro volume da colecção Ephemera da Biblioteca e Arquivo de José Pacheco Pereira é formado pela correspondência de um par de namorados, dos anos 30 até bem entrada a Segunda Guerra. Alfredo, empregado de escritório, e Maria de Lurdes, costureira, casaram-se, em 1941, e tiveram o seu primeiro filho dois anos depois. Pelo meio, ficaram inúmeras situações dramáticas, sobretudo, de gravidezes anunciadas, de abortos, de ciúmes provocados por supostas relações do macho com outras, e de tentativas dele controlar os sentimentos dela. Mas há também que registar o lado terno, quando se tratavam por “amorzinho”, “minha pretinha” ou “meu maridinho”, ou quando se referiam às compras para o enxoval. Tudo isto se passou num raio situado entre Setúbal, onde ela vivia, mas com família em Palmela, Lisboa, onde Alfredo trabalhava, e o Funchal, onde foi trabalhar durante uns tempos.
Na transcrição paleográfica de Rita Maltez, que nos parece bastante fidedigna, Alfredo dominava a língua portuguesa melhor do que a sua amada. De qualquer modo, os erros ortográficos, os lugares comuns e as marcas da oralidade invadem a débil cultura escrita de ambos. Esta constatação é, talvez, a melhor prova do que diz a organizadora: “Alfredo e Maria de Lurdes são pessoas simples, idênticas a pessoas que todos conhecemos. Não escreveram livros, não pintaram quadros, não governaram nada a não ser (e pouco) as suas próprias vidas (sendo que Alfredo governava a vida de Lurdes), não filosofaram, não viajaram, não tinham grandes ambições e conformavam-se”.
Existirá, então, nesta publicação das cartas amorosas de dois personagens reduzidos ao estatuto do anonimato, uma tentativa de fazer a apologia dos simples e da simplicidade? Dada a ligeireza com que o assunto é tratado, parece que sim. Mais: no seu conjunto o livro pode ser tomado como um modo de espreitar vidas populares ou das classes baixas, talvez por simplesvoyeurismo ou, quem sabe, com uma vontade folclorista de vir a recuperar os valores de um povo que não estava pervertido, constituindo-se numa espécie de reservatório de sentimentos ou mesmo da pureza ingénua da nação.
Claro que os dois correspondentes atravessaram momentos dramáticos, podendo mesmo imputar-se a Alfredo dotes de manipulador ou de malandreco. Porém, bem feitas as contas é a simplicidade que vem ao de cima. Ora, esta leitura de Rita Maltez, sob a capa de uma apologia, sempre ligeira, não esconderá uma espécie de nostalgia do simples e do autêntico, presente nas cartas de dois semi-analfabetos?
É que a publicação de um documento desta natureza, suscitador de tantas questões, teria de vir acompanhada de uma interpretação ou de uma explicação, onde se proporiam nexos de causalidade ou se sugeririam alguns exercícios de contextualização. Porém, o leitor que se desiluda porque nada disto se encontra neste volume de excelente grafismo. E é pena que um testemunho documental desta natureza não seja devidamente enquadrado. E o que leva a assim proceder, mais uma vez, parece ser uma vontade de não conspurcar os valores do que é considerado autêntico e próprio dos simples. Tal como se a análise crítica de qualquer tipo de discurso pudesse afastar as pessoas de andar a espreitar as vidas exóticas dos outros, nomeadamente, quando, para efeitos do espectáculo, estes pertencem às classes baixas do presente ou do passado.
Um dos problemas que esta correspondência coloca diz respeito a uma espécie de vidas onde a política de Salazar não parece ir mais além deste ou daquele espectáculo, das idas ao cinema, e, no máximo, a uma exposição. Contudo, o apolitismo de tais vidas era acompanhado de uma enorme desigualdade entre os géneros, tal como se a Ditadura fosse reproduzida numa esfera mais íntima, na carreira de Alfredo, aspirante a bom chefe e pai de família, deixando pura e simplesmente de haver qualquer traço de resistência à sua autoridade por parte da sua namorada ou mulher.
Nada se diz também acerca de outros textos, constituídos por autobiografias, correspondências ou registos orais, capazes de oferecer padrões de comparação com o conjunto epistolar em causa, que não suscita nenhuma abordagem acerca das relações de género. Pelo contrário, estas últimas – um pesadelo para quem se calhar gosta de ser politicamente incorrecto! – são reduzidas a uma espécie de plano das frivolidades. E, no entanto, valeria a pena lembrar aqui – como se se tratasse de um exemplo de estudo a seguir – o livro publicado, há cerca de uma dúzia de anos, por J. A. David de Morais, Senhores e servas: um estudo de antropologia social no Alentejo na primeira metade do século XX (Afrontamento, 2003). Neste, o exercício de recolha documental, destinado a reconstituir vozes singulares, é acompanhado de uma importante análise acerca do modo como duas criadas alentejanas viveram e pensaram as suas relações com os senhores das casas em que serviram.
Última nota: a Ephemera, que conta já com um segundo volume onde foi reproduzida uma colecção dos diferentes símbolos do PPD – para fazer justiça a Pacheco Pereira, que foi quem coleccionou com gosto erudito livros ou papéis velhos, e para corresponder à ambição da Tinta da China, tão exigente nos seus critérios e inovadora do ponto de vista gráfico – terá de passar a adoptar padrões de edição mais exigentes. Caso contrário, a simples acumulação de livros, papéis e colecções, ou seja, essa espécie de voyeurismo dos eruditos passará a competir, apenas, com o voyeurismo dos espectadores do Big Brother.