Democracia: obra comum de partidos democráticos rivais
O PS pode optar por liderar a Oposição democrática no Parlamento.
A primeira e mais óbvia perplexidade tem a ver com as dúvidas sobre quem venceu as eleições. Parece trivial, com base nos números, que a coligação PaF obteve o primeiro lugar. Também existe a nossa tradição democrática: em 40 anos, nunca foi questionado que o partido ou coligação mais votado ganha as eleições e deve tentar formar governo no Parlamento.
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A primeira e mais óbvia perplexidade tem a ver com as dúvidas sobre quem venceu as eleições. Parece trivial, com base nos números, que a coligação PaF obteve o primeiro lugar. Também existe a nossa tradição democrática: em 40 anos, nunca foi questionado que o partido ou coligação mais votado ganha as eleições e deve tentar formar governo no Parlamento.
Mas a mais funda perplexidade prende-se com a aparente hesitação, para não dizer confusão, que parece reinar entre alguns sectores da liderança socialista. Tem sido dito que há uma maioria de esquerda no Parlamento e que o PS deveria encabeçá-la. E que, se em vez disso se aliar à coligação PaF, vai sofrer um esvaziamento para a extrema-esquerda semelhante ao que ocorreu com o Pasok na Grécia.
Talvez possa ser lembrado que o PS não tem apenas a escolha de se aliar à coligação PaF, por um lado, ou ao BE e ao PCP, por outro. Pode honrosamente fazer o que fez muitas vezes no passado, quando não ficou em primeiro lugar: optar por liderar a Oposição democrática no Parlamento, que é a sede da nossa (e de todas) as democracias.
A pergunta verdadeiramente intrigante é por que motivo esta opção não está a ser claramente defendida no PS e, em rigor, também mais largamente no país.
Um dos principais argumentos que tem sido citado à esquerda é o de que existe uma maioria de esquerda no Parlamento. Para um socialista, esse argumento devia ser chocante. Simplesmente chocante. Ele foi usado pelos inimigos de esquerda do Partido Socialista desde antes do 25 de Abril.
Foi em nome da “maioria de esquerda”, na altura designada “unidade antifascista”, que o PCP lançou a CDE antes do 25 de Abril e procurou obrigar os socialistas a integrá-la. Mário Soares resistiu e procurou manter a CEUD. A pergunta é: Porquê?
A seguir ao 25 de Abril havia um tal Manuel Serra, então muito popular, que no PS clamava pela “maioria de esquerda” com os comunistas, “contra a direita”. Mário Soares fez-lhe frente com clássica compostura. Porquê?
A pergunta mais cortante é todavia outra. Em 1985/6, Salgado Zenha candidatou-se a Presidente da República com um amplo apoio de uma suposta “maioria de esquerda”. Zenha tinha sido, com Mário Sares e Manuel Alegre, líder da resistência socialista democrática contra os comunistas no PREC. Agora aparecia como líder de uma “frente de esquerda contra a direita” (representada na altura por Freitas do Amaral).
Ambos estavam no topo das sondagens — que davam a Mário Soares apenas 8%. Mas Soares decidiu avançar com uma plataforma muito clara: uma esquerda democrática e moderna, que não se mistura com comunistas e extrema-esquerda, e que é diferente da direita, mesmo da direita democrática.
Os analistas de sondagens explicaram-lhe na época que era impossível vencer contra o candidato comum da direita (Freitas do Amaral) e o candidato comum da esquerda (Salgado Zenha). Por que motivo decidiu Soares avançar sozinho? E por que motivo conseguiu ganhar?
Receio que a resposta possa ser demasiado simples e demasiado incómoda: porque, em vez de se deixar conduzir por sondagens, Mário Soares acreditava em ideias, na força inspiradora das ideias.
Tinha vivido no exílio na Europa e observado que havia uma ideia chamada “social-democracia” ou “socialismo democrático” — que era inimiga do comunismo e, ainda assim, diferente da direita democrática. E tinha podido observar que essa ideia tinha existência real: era um dos dois alicerces da democracia pluralista (sendo a direita democrática o outro alicerce).
E observou que, quando os socialistas se não distinguem dos comunistas, tendem a desaparecer como um dos dois alicerces da democracia. E, quando não existem dois alicerces democráticos rivais, pode tender a emergir uma ditadura: ou comunista, ou do género (bastante mais moderado) da que existiu em Portugal durante 48 anos.
Por outras palavras, Soares observou o que Raymond Aron sempre defendeu: a democracia é obra comum de partidos democráticos rivais.
Jantar-Palestra Winston Churchill decorreu na passada quinta-feira no encantador Palácio da Cidadela de Cascais, sob o alto patrocínio do Presidente da República. Archie Brown, da Universidade de Oxford, elogiou Churchill sem idolatria. E recordou como o sistema parlamentar britânico e o seu colegial sistema de governo, fundado em freios e contrapesos, permitiu ao país tirar partido das virtudes de Churchill, minorando os seus defeitos — que, obviamente, ele também tinha.