Cantas como cantam os marinheiros
Na sua crónica mensal, a poeta Matilde Campilho presta uma sentida homenagem a Leonard Cohen pelos seus 81 anos e pede-lhe que aceite "um beijo deste planeta derrotado".
Há poucas semanas Leonard Cohen celebrou 81 anos de idade. Às vezes confundo o Cohen com outros tipos mas depois penso num famoso casaco de chuva azul e lembro-me logo da cara dele. Do timbre dele. Lembro-me do discurso que fez no púlpito das Astúrias em 2011, um que começa meio gago mas que logo diz assim na frente dos reis: “Ontem fiquei acordado toda a noite pensando no que iria dizer a esta assembleia. E depois de ter comido todos os chocolates e amendoins do minibar, escrevinhei algumas palavras”. Durante o discurso, vestindo terno e gravata preta, Mr. Leonard Cohen fala sobre a grande história de uma guitarra espanhola e de um rapaz suicida. Conta o princípio das canções dele, e por arrasto de algumas canções nossas. Tremi quando ele disse "a madeira nunca morre". Falava da tal guitarra, falava da poesia e da ambiguidade que nos vem às mãos quando acontece um prémio de poesia. Suspeitei que falasse da vida toda. Volto ao discurso asturiano muitas vezes, assim como volto àquele referido court de ténis em Montreal onde as pessoas iam só para ver os jovens jogadores correr de um lado para o outro. Há qualquer coisa de brilhante nos corpos dos jogadores de ténis que atravessam a cidade. Há qualquer coisa de mais brilhante ainda numa guitarra Conde.
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Há poucas semanas Leonard Cohen celebrou 81 anos de idade. Às vezes confundo o Cohen com outros tipos mas depois penso num famoso casaco de chuva azul e lembro-me logo da cara dele. Do timbre dele. Lembro-me do discurso que fez no púlpito das Astúrias em 2011, um que começa meio gago mas que logo diz assim na frente dos reis: “Ontem fiquei acordado toda a noite pensando no que iria dizer a esta assembleia. E depois de ter comido todos os chocolates e amendoins do minibar, escrevinhei algumas palavras”. Durante o discurso, vestindo terno e gravata preta, Mr. Leonard Cohen fala sobre a grande história de uma guitarra espanhola e de um rapaz suicida. Conta o princípio das canções dele, e por arrasto de algumas canções nossas. Tremi quando ele disse "a madeira nunca morre". Falava da tal guitarra, falava da poesia e da ambiguidade que nos vem às mãos quando acontece um prémio de poesia. Suspeitei que falasse da vida toda. Volto ao discurso asturiano muitas vezes, assim como volto àquele referido court de ténis em Montreal onde as pessoas iam só para ver os jovens jogadores correr de um lado para o outro. Há qualquer coisa de brilhante nos corpos dos jogadores de ténis que atravessam a cidade. Há qualquer coisa de mais brilhante ainda numa guitarra Conde.
Cohen nasceu em 34, e em 34 as histórias de fronteiras e de gente subindo às janelas de comboios como quem sobe um pé de feijão que promete a magia ainda não tinham entrado na Europa. Isto é mentira. Foi de 1939 a 1945 que nós vimos as janelas e as cabeças serem todas estilhaçadas e rebentadas. Depois disso nunca mais nos levantámos da cama sem poeira nos ombros. Eis-nos repetindo as bofetadas de novo, vezes e vezes sem conta, à beira da porta grega e da porta húngara, mesmo à beirinha da porta do coração do mundo. Somos uns brutos e esquecemo-nos constantemente do cheiro da madeira. Ignorámos o acorde secreto de David. Deixámos para trás a visão de uma mulher tomando banho no terraço ao fim do dia. Brutos completos. Esquecemos os tigres e falsificámos as montanhas, arrasámos com o sagrado, substituímos a palavra liberdade pela pontinha trémula do icebergue. Mentimos aos nossos pais e fingimos usar a camiseta da democracia enquanto cuspíamos na cara do príncipe da paixão. Quero dizer a Leonard Cohen que foi entre terramotos e brigas feias que nossa geração perdeu a chave enferrujada do Chelsea Hotel.
Apesar de nossa cegueira e de nossos gritos nos corredores do metropolitano, aproveito para dizer: oitenta e um anos de vida, Leonard, parabéns. Que saibas que foi um bocado por tua culpa que aprendi a amar Suzanne e todas as declinações dela. I travelled blind por muitos anos mas havia sempre a tua canção ao fundo. Com o tempo aprendi a gostar de laranjas tanto quanto gosto de maçãs, aprendi a descascar as flores como se descascam os frutos, aprendi que também na curva de um supermercado se acham as espigas de trigo e que as espigas de trigo podem ser boas para amar. There are Salvation Army counters everywhere, man. Ainda penso em frágeis animais e às vezes desenho as penas deles sobre o balcão de um bar. Obrigada por isso, homem. Leio as frases um bocado assustadoras do Adorno e lembro-me de ti. Vejo os corredores de mármore que sempre atravesso em meus sonhos e muitas vezes tu andas por lá. Encosto a cabeça às omoplatas de um anjo impressionante e aparece sempre o teu canto. Cohen, os seis acordes que te foram ensinados pelo suicida espanhol estão connosco até hoje. E a gratidão que tu foste revelando devagar até àquele glorioso "Popular Problems" vai entrando hora após hora em nossos automóveis, por debaixo de nossas portas, no túnel escondido de nossos corações. Nossos corações estão um bocado estilhaçados, isso é certo. Veio a morte, veio o medo, veio a guerra e o espirro terrível que antecede a guerra. Fecharam as fronteiras à democracia e fecharam as portas àquele amor que se vinha anunciando desde os anos oitenta. Seja como for ainda temos o teu tom, e de noite ainda comparamos mitologias. Leo, olha, está tudo explodindo em nossas mãos. Mas nós continuamos assobiando as Sisters of Mercy sempre que o sol se põe no mar. Happy birthday, menino. You really got us singing, e portanto aceita um beijo deste planeta derrotado.
Crónica mensal da escritora Matilde Campilho