Autores "infanto-juvenis": colaboracionismo ortográfico?
A Língua será sempre muito mais relevante do que todas as obras de todos os "Planos Comerciais de Leitura".
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Com esta pretensão Está segura
A causa que me guia Nesta empresa
Tão estranha, tão doce, Honrosa e alta.
Jurando não seguir Outra ventura,
Votando só por vós Rara firmeza,
Ou ser do vosso amor Achado em falta.»
(Luis Vaz de Camões)
No dito "segmento infanto-juvenil", crianças e jovens estão reduzidos a um "nicho de mercado", condenados à infantilização-"juvenilização", até que raros logrem livrar-se da manipulação subjacente, ou muitos a substituam por outra.
Segundo consta, é-se "jovem" até aos 30 e mesmo até aos 40 anos de idade (os "jovens agricultores"). Podendo pontualmente parecer um privilégio, redunda na segregação perversa das discriminações positivas: a menoridade implícita neste "estatuto" é alvo de uma condescendência interesseira, de um paternalismo cúpido.
Dependente da educação para o consumo que tenha ou não na família, em geral a criança mentalmente instrumentalizada pressionará os adultos para comportamentos como o da escolha da marca dos chamados "cereais de pequeno-almoço" (fantástica designação!) em função do brinquedo coleccionável que vier dentro da embalagem. O mesmo fenómeno acompanha a criança e o jovem noutras áreas.
A "juventude" não tem qualidade no ensino, não tem saídas profissionais, mas tem Secretário de Estado, tem mandatários nas campanhas eleitorais, tem canais televisivos próprios (com a correspondente publicidade), tem inúmeras indústrias e diversos serviços que lhe são especialmente destinados e, dentro dos produtos culturais, é o público-alvo de um negócio editorial muito próspero que funciona entre a dita "obrigatoriedade" dos manuais escolares e a suposta "complementaridade" das obras infanto-juvenis neles citadas. Vasco Teixeira, do Grupo Porto Editora, gabava-se em Janeiro passado: "O mercado caiu 30% com a troika, mas nós mantemos as vendas nos 150 milhões [de euros anuais]."
A dita "literatura infanto-juvenil" – embora a par com casos de excelência, naturalmente – consegue alojar toda uma grotesca falta de qualidade literária, disfarçada como um tipo de escrita para débeis mentais. É o caso de certos contos que são lidos nas bibliotecas municipais, com os olhos arregalados, num tom monocórdico entrecortado por assomos de expressividade néscia. Páginas repletas de chavões e de mesmice-para-adormecer, fraseado instantâneo a misturar com ilustrações (essas sim, têm de ser apelativas!) para fazer um livro para o PNL (Plano Nacional de Leitura). Pobres petizes... Uns adormecem, outros fazem birra, outros simplesmente pensam noutra coisa – e fazem muito bem – enquanto aquilo dura, na sala de aula ou onde for.
Fui consultar as obras de três autores no PNL ("Ler+"), em Maio passado. Nas suas listagens, o PNL recomendava: 80 livros de José Jorge Letria (apenas enquanto autor, não como tradutor, adaptador, participante em CD incluído, etc.), o qual é também o Presidente da SPA (Sociedade Portuguesa de Autores); 43 livros de Isabel Alçada (escritos a quatro ou a seis mãos, sempre com a outra "aventureira" e por vezes com algum outro "venturoso"), a qual foi também Ministra da Educação do anterior Governo, depois de três anos como "Comissária do PNL"; e 27 livros de Sophia de Mello Breyner Andresen.
Uma primeira conclusão, perante estes dados: José Jorge Letria está em risco de ser convidado para assumir a pasta da Educação, num eventual futuro desgoverno cor-de-rosa. Crato rematou o descalabro acabando com o Ensino Articulado da Música e tornando o Inglês a única Língua natural obrigatória na Escola portuguesa, mas haverá ainda pior? Orwell diria: tudo é possível.
O já reeleito Presidente da SPA tem dois amores: o monopólio editorial dos livros escolares e a Lei da Cópia Privada. (Para quem não está ao corrente, esta proposta é um atropelamento dos mais básicos direitos dos consumidores feito em nome de direitos de autor inexistentes, por incompreensivelmente se presumir a prática generalizada de actos ilícitos. Mais do que um subsídio aos autores, seria um mega-subsídio permanente à SPA e a outra associação, a AGECOP, através de um novo imposto oculto a pagar pelos cidadãos, em contra-corrente com a legislação europeia nesta matéria.)
Logo em 2010, José Jorge Letria estreou o mandato revendo os estatutos: os editores passaram a poder ser cooperadores e a tomar parte na Direcção da SPA. Antes disso, ainda como Presidente do Conselho de Administração da SPA, tinha assinado um protocolo com a APEL (Associação Portuguesa de Editores e Livreiros), representada por Vasco Teixeira, administrador do Grupo Porto Editora, estabelecendo as condições de remuneração dos autores pela utilização livre de obras literárias (ou de fragmentos delas) nos projectos editoriais escolares, em cada ano lectivo.
Em finais de 2012, houve pressões internas, e Letria – que já "acordizara" as suas obras infanto-juvenis, e apenas estas, dizendo "não aderir pessoalmente" à mudança – sondou os cooperadores da SPA quanto ao "acordo ortográfico" (AO): 145 (86%) manifestaram-se contra, e só 23 (14%) se disseram a favor. No entanto, em Abril de 2013, quando compareceu na Assembleia da República para representar a SPA junto do Grupo de Trabalho criado na Comissão Parlamentar de Educação para "acompanhar" este assunto, José Jorge Letria descartou-se assim do peso da representação: Então chamaram-me por causa disto? E eu a pensar que era para falar sobre a Lei da Cópia Privada, isso é que seria importante... Bom, quanto ao "acordo ortográfico", enfim, a maior parte das pessoas é contra, mas eu também não sei se eles são "muito contra" ou "pouco contra", e também não sei se são contra este "acordo" ou contra qualquer "acordo"... Nem vale a pena perdermos tempo com isso. Quando quiserem falar da Lei da Cópia Privada, então sim, virei com todo o gosto.
Tradução livre da comunicação com os deputados: Precisamos mesmo de dinheiro, e até temos uma Língua Portuguesa para a troca; isto é negociável, queremos é que nos tratem do outro assunto. Arranjem-nos o dinheirinho, e nós não faremos barulho só por causa disto, fiquem descansados.
Recapitulando, da listagem do PNL ("Ler+"): 80 livros de José Jorge Letria; 43 livros de Isabel Alçada, a ex-Ministra da Educação de Sócrates que introduziu o "acordo ortográfico" em todo o sistema de ensino; e 27 livros de Sophia.
Nem sempre a quantidade significa necessariamente falta de qualidade, sejamos justos. É certo que os primeiros têm em comum estarem vivos, bem vivos, e laborarem numa espécie de linha-de-montagem de "produção pedagógica"; porém os livrozecos de que a ex-Ministra é co-autora são mesmo muito maus. Destes dois autores, o número de livros é igual ao dos títulos, no PNL, ao passo que os 27 livros de Sophia referidos correspondem, na verdade, apenas a 21 títulos (edições da mesma obra em vias de esgotar, pois a exclusividade passou para o Grupo Porto Editora, sob diversas chancelas), menos de metade dos títulos de Isabel Alçada no PNL.
Choca-me o destino da boa escrita dos que não estão já entre nós, como Sophia, "acordizada" post-mortem, à revelia. Não a conheci, mas permito-me imaginar que consideraria a preservação da dignidade dos seus textos mais importante do que as honras fúnebres de Panteão Nacional.
Há dois anos, num evento de oposição ao AO que decorreu na Fábrica Braço de Prata, em Lisboa, um actor e escritor admitiu ter permitido a "acordização" de um livro para crianças: «Disseram-me que só assim o livro poderia entrar no PNL» E acrescentou, com um sorriso amarelado: «Em rigor, só me tiraram três letras.». Eu, ali mesmo ao lado, repliquei de chofre, por acto-reflexo: «Mas as letras não eram suas, eram do Português, eram das crianças. Se compreende o alcance do prejuízo para elas, isso é... colaboracionismo.» Fez-se um bruá, o senhor corou, eu fiquei abalada pelo impacto da associação de ideias que fizera de jacto. Alguém tomou a palavra para salvar a situação, fazendo divergir as atenções.
Consultando as listas do PNL, verifiquei que o tal livro, premiado, desse actor e escritor não estava lá. Provavelmente, teria sido necessário um cartão partidário, além da supressão das letras.
Fizeram-se os exames nacionais. Não se imagine que os erros que grassam na expressão escrita do Português, actualmente, na escola como na sociedade, são alheios ao caos gerado pelas ambiguidades, facultatividades, excepções e omissões do AO. Não se imagine, sobretudo, que este fenómeno é alheio à ideia de desvalor ora associada à escrita da Língua Portuguesa, em razão de todo o disparate resultante dessa tentativa de manipulação grosseira do idioma por decreto administrativo.
Contrariamente aos que escrevem para adultos, quase todos os autores "infanto-juvenis" consentiram na "acordização" das suas obras, para que fossem candidatas a integrar o comercial PNL e para que excertos delas pudessem figurar em manuais escolares, ou como parte de chorudos contratos celebrados pelas editoras com o Estado para a "atualização" do acervo das bibliotecas escolares.
(Entretanto, são destruídos, guilhotinados, livros das bibliotecas escolares que estão redigidos em Português-padrão costumeiro. Se houvesse algum interesse político pela Língua ou pela Cultura, estes poderiam, por exemplo, ser oferecidos a bibliotecas e a escolas de Angola ou de Moçambique, países que não aderiram ao AO.)
Muitíssimos autores "infanto-juvenis" venderam a Língua Portuguesa para terem estas "recomendações oficiais" e estes pagamentos; para sobreviverem, dizem. À custa do património identitário das crianças. A prostituição também alega razões de sobrevivência... mas "prostituição" é a actividade de vender o próprio corpo; não me ocorre vocábulo que se adeqúe ao acto de vender a alma colectiva. É um crime seguramente ainda não previsto nos Códigos. Eis quiçá um misto de contrafacção editorial e receptação autoral, digo eu, que não percebo de leis. Transacciona-se um bem contrafeito, dá-se uma aparente legitimidade ao negócio. A pertencer a alguém, a Língua consuetudinária – o valor patrimonial do sistema linguístico estável – pertence às crianças que estão a ser alfabetizadas, independentemente da propriedade intelectual das obras em causa.
A Língua será sempre muito mais relevante do que todas as obras de todos os "Planos Comerciais de Leitura" que quiserem inventar. "Colaboracionismo" parece-me o termo mais adequado, de facto. As palavras, todas as palavras, são extremamente importantes. Nenhuma opção, entre elas, é inocente. Como na vida, há opções que fazem toda a diferença.
Médica, escritora e activista cívica