Emigrantes registados nos cadernos eleitorais distorcem números da abstenção
Portugueses residentes no estrangeiro mantêm morada em Portugal. A abstenção é mais baixa do que parece e há razões para isso. Com a vaga de emigração nos últimos anos, ainda mais.
Tudo porque continua a haver uma discrepância significativa entre o número de cidadãos que constam dos cadernos eleitorais e o número efectivo da população residente com idade para votar. Segundo a estimativa mais recente do INE, a população residente com 17 anos ou mais – aquela que já podia votar nestas legislativas – era no ano passado de 8,6 milhões (8.659.201), inferior ao número de pessoas que constam dos cadernos eleitorais: 9,4 milhões (9.439.711). E daqui resulta um grande número de “eleitores-fantasma”, que ronda os 780 mil.
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Tudo porque continua a haver uma discrepância significativa entre o número de cidadãos que constam dos cadernos eleitorais e o número efectivo da população residente com idade para votar. Segundo a estimativa mais recente do INE, a população residente com 17 anos ou mais – aquela que já podia votar nestas legislativas – era no ano passado de 8,6 milhões (8.659.201), inferior ao número de pessoas que constam dos cadernos eleitorais: 9,4 milhões (9.439.711). E daqui resulta um grande número de “eleitores-fantasma”, que ronda os 780 mil.
A principal explicação apontada por especialistas ouvidos pelo PÚBLICO tem a ver com o número de emigrantes permanentes que constam das listas eleitorais da sua secção de voto em Portugal, embora não compareçam às urnas porque residem no estrangeiro. Com a criação do cartão de cidadão, o recenseamento eleitoral é automático através da morada portuguesa. Um factor ao qual se soma a desactualização dos cadernos eleitorais (nomeadamente o número de pessoas falecidas que ainda estão nas listas). E, no caso particular das últimas legislativas, acresce o facto de terem saído do país cerca de 395 mil pessoas entre 2011 e 2014, segundo as estimativas publicadas pelo Observatório da Emigração.
António Salvador, director-geral da empresa de estudos de mercado Intercampus (que realizou os inquéritos de opinião diários das legislativas para o PÚBLICO, TVI e TSF), sublinha que, para chegar ao número da abstenção real, há variáveis mutáveis em jogo, desde logo os fluxos de migração.
Quando abrem as urnas, já há um nível de abstenção que resulta desta discrepância, a chamada abstenção técnica. Jorge de Sá, professor do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) e director técnico do centro de sondagens da Aximage, admite que a abstenção real nas legislativas deste ano tenha rondado os 34%, que se aproxima “dos valores que encontramos na Europa”.
“A ideia de que existe uma desactualização dos cadernos não é a mais correcta. Pode haver alguma, mas as maiores discrepâncias resultam do facto de muitos emigrantes terem cartão de cidadão e, por isso, entrarem no registo como eleitores [em Portugal]”, diz o investigador. A isso, enquadra, “acresce o número de emigrantes recentes, que também não terão vindo em massa de propósito votar nas eleições, até porque para muitos foi uma saída um pouco amarga”.
Quando emigram, os portugueses podem registar-se no consulado do país de destino mas sem se recensearem lá. É isso que acontece com a larga maioria: segundo os dados mais recentes do Observatório da Emigração, em 2012, em França, havia 509 mil pessoas com nacionalidade portuguesa, mas nos cadernos eleitorais deste ano só constavam 40 mil; dos 263 mil portugueses na Suíça, apenas 9500 se recensearam; na Alemanha eram 127 mil residentes, mas apenas 14 mil inscritos para votar; dos 90 mil emigrados no Luxemburgo, apenas 1472 se recensearam. A lista de exemplos é longa.
Desleixo lá, interesse cá
A larga maioria dos emigrantes continua recenseada em Portugal por desleixo e por “interesse”, diz Jorge Miguéis, secretário-geral adjunto da Administração Eleitoral (AE) – para poderem caçar quando vêm de férias, por questões de património imobiliário. E porque tanto a inscrição no consulado como no recenseamento não são obrigatórios. Depois, dos poucos que estão lá recenseados, ainda menos votam. A CNE e a Secretaria de Estado das Comunidades têm feito campanhas de sensibilização mas de pouco valem. Só no Brasil tem surtido efeito, talvez porque a recente emigração é de portugueses com mais qualificação académica.
Residuais nas contas são as situações de pessoas hospitalizadas que, por limitações temporais ou de procedimento, não conseguem fazer o voto antecipado, ou de cidadãos presos que acabam por também não o fazer antecipadamente. O impacto é pouco significativo – de “umas décimas” – diz o director técnico da Aximage, Jorge de Sá, autor de Quem se abstém (Campo da Comunicação, 2009). Este ano houve um aumento dos pedidos de voto antecipado nas prisões, confirma Jorge Miguéis, que o atribui ao “factor Sócrates”. Apesar dos milhares de folhetos enviados para as prisões, há ainda uma grande fatia dos 14 mil presos que pensam, erradamente, que não têm direito de voto.
Ainda não há dados do voto antecipado em hospitais e prisões, de desportistas, embarcados, militares de prevenção ou deslocados porque eles são recolhidos pelas câmaras municipais. A AE está a coligi-los, assim como aos votos no estrangeiro, cujos resultados serão libertados até dia 14 – os dez dias após as eleições, com manda a lei. Este ano houve queixas de que os boletins de voto não chegaram todos – no Brasil, por exemplo havia greve dos correios. São vicissitudes normais, desvaloriza Jorge Miguéis. Ao todo foram impressos 11,7 milhões de boletins de voto.
A última grande limpeza dos cadernos eleitorais foi em 2008, quando foi criado o cartão de cidadão. O responsável eleitoral afirma que o peso de eleitores já falecidos nos cadernos é “residual” porque as freguesias perderam o poder sobre os cadernos – “não há truques” -, que estão centralizados na Administração Eleitoral. Esta até questiona, todos os anos, os portugueses com pelo menos 105 anos.
Um dia depois das legislativas, Pedro Magalhães, investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e especialista em comportamento eleitoral, vincava no seu blogue Margens de Erro que “é altamente provável que a participação ‘real’ (votantes sobre população com idade de voto residente), tenha aumentado, tendo em conta a emigração dos últimos anos. Mas mesmo esse deverá ser um aumento modesto”.
António Salvador, da Intercampus, sublinha que “estes níveis distorcidos da abstenção favorecem a abstenção futura dos eleitores, porque minimizam o acto eleitoral”. “Quando estamos a comparar números artificialmente superiores, está-se a contribuir para que a abstenção seja considerado um acto legítimo”, lamenta António Salvador.
Olhando apenas para o valor oficial da abstenção, que passou de 41,9% nas legislativas de 2011 para 43% na eleição de domingo que deu a vitória à coligação entre o PSD e o CDS, José Manuel Leite Viegas, docente de Ciência Política no ISCTE-IUL, frisa que “alguns factores já apontavam” para o aumento.
“Um dos factores que intervém na direcção do voto é o juízo sobre o Governo anterior e os partidos que o apoiam. Mas as análises eleitorais também costumam dizer que, normalmente, não há uma passagem directa (daqueles que têm uma identificação com um partido) para outro partido do lado oposto. Isto é, [essas pessoas] retraem-se na abstenção. Globalmente, isso foi compensado para a mobilização para o voto. Apesar de ter crescido a abstenção – o primeiro factor continua permanente –, a verdade é que em grande parte terá sido compensado pela mobilização para o voto para os partidos à esquerda”, supõe José Manuel Leite Viegas.
Tecnologia não chega
Em 2005, a Unidade de Missão Inovação e Conhecimento (UMIC) liderada por Diogo Vasconcelos testou o voto por internet, mas isso levanta vários problemas. Não garante a confidencialidade, não garante que é o próprio eleitor a votar nem impede que seja a mesma pessoa a votar por toda a família, a que se somam problemas de segurança informática no percurso entre o equipamento informático do cidadão e o servidor de apuramento, enumera Jorge Miguéis. Que acrescenta não conhecer esta modalidade de voto em lado algum do mundo. “Vulgarizar o direito de voto ao ponto de as pessoas votarem sentada no sofá acaba com o sentido cívico da participação. Tem que ser uma vontade existente no cidadão e não uma obrigação”, defende o responsável que é contra o voto obrigatório.
Tem havido também experiências de voto electrónico presencial em mesas de voto no litoral e no interior. Mas a tecnologia tem um custo: cada máquina de voto custa pelo menos 2500 euros e torna-se rapidamente obsoleta – e existem 11.800 assembleias de voto. Experiências noutros países como Bélgica e Holanda mostram que os sistemas de voto electrónico nunca aumentaram a participação mais do que 2 a 3%. “É uma questão de vontade e participação cidadã”, vinca Jorge Miguéis.
José Manuel Leite Viegas subscreve: “Todas as iniciativas de incentivo são louvável. Agora, não se pense que se chega a altíssimas taxas de participação simplesmente com esses mecanismos. Os mecanismos políticos hão-de ser sempre predominantes. E esses não se resolvem com o aspecto legislativo. No fim de contas, a consciência que o próprio [cidadão] tem de que o seu voto vai mudar qualquer coisa é determinante para a mobilização. E este problema é que é decisivo”.