Há vida no arquivo

A colecção tem o tempo da vida de Pacheco Pereira. Política, sindicalismo, história, literatura, ciência, religião, cultura. Nada é rejeitado à partida naquele que é um dos mais completos e originais espólios sobre a História de Portugal nos últimos 200 anos.

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Diz ela: “Alfredo mandas-me dizer que daquim a pouco já sabes falar francez.

Que rabiada tenho eu depois estares a falar, uma ligua que eu não compriendo, nam para traz nem para a frente, podes depois estares, a falar mal de mim que eu não te comprienda fazes muito bem a aprenderes de tudo, se eu estivesse no teu lugar também faria o mesmo no caso que podesse. Mandas-me perguntar se eu já sei Bordar muito agora tenho nove lições, a professora está muito contente comigo, diz que não sou das piores que tem menos enteligencia, vamos a outro assunto.”

Diz ele: Desculpa eu ter demorado um pouco nas minhas notícias. Tencionava escrever-te na 2 feira á noite quando viesse da lição mas os meus colegas de pensão foram-me esperar para me convidarem para irmos ao cinema, eu disse-lhes que tinha que fazer, e então eles ficaram aborrecidos, mas para não lhes fazer a desfeita lá resolvi ir também, foram dois filmes muito bons ‘O pão nosso de cada dia’ e ‘As mil mentiras’, também já havia alguns dias que não ia ao cinema.”

Ela está em Setúbal e ele, pela altura desses escritos, está em Lisboa. Namoram por carta e ao longo dos anos, mesmo já casados, continuam a relacionar-se muito através de correspondência. Ela trata-o sobretudo por meu “querido amorzinho”, ele quase sempre por “minha querida Lurdinhas”. O humor do momento e a fase da relação determinam o modo mais ou menos carinhoso dos nomes que atribuem um ao outro nas cartas que se escrevem entre 1934 e 1943. “São mais de 600 cartas que foram encontradas num armazém. Seriam lixo se eu não as tivesse recolhido”, diz Pacheco Pereira, que sublinha o interesse daquela correspondência mantida entre um casal para perceber muito do quotidiano do país. Foi feita uma selecção, preservados os nomes verdadeiros de pessoas que poderiam ser ainda reconhecíveis, mantido o tom e os erros de português e publicadas num volume a que foi dado o título Amorzinho. Sai em simultâneo com outro livro, Autocolantes do PPD. Os dois marcam o arranque de uma nova colecção da Tinta-da-China feita a partir do espólio de Pacheco Pereira e baptizada “Ephemera”, o nome do blogue que disponibiliza parte do arquivo do historiador, ex-deputado, comentador da SIC, colunista do PÚBLICO e da Sábado.

A escolha de dois títulos tão diferentes para iniciar esta colecção pretende alertar para a diversidade do espólio de que ela se irá alimentar. “Há aqui de tudo, as coisas institucionais e aquilo que normalmente os arquivos institucionais não querem. Recolho tudo o que tenha que ver com a vida dos portugueses nos últimos 200 anos, principalmente na sua vertente política, sindical, cultural, religiosa. Há, por exemplo, coisas interessantes sobre as primeiras peregrinações a Fátima. Não era suposto que cartas como estas estivessem nesta colecção. Estão porque, à partida, não rejeito nada”, refere Pacheco Pereira sobre o seu modo de gerir um espólio que se tornou tão vasto quanto imprevisível nos conteúdos e que cresce como um organismo vivo pela casa da Marmeleira, uma aldeia no concelho de Rio Maior, para onde se mudou há cerca de 15 anos. Foi ali que encontrou um espaço “a preço comportável” para guardar uma colecção que começou desde que se lembra “de existir”: “O meu pai já tinha um número considerável de livros e publicações. Eu continuei.”

Actualmente, e numa linha recta imaginária, são cinco quilómetros de prateleira para guardar cerca de 200 mil livros e o correspondente às cerca de 13 mil pastas divididas em 8800 categorias que compõem o arquivo do blogue Ephemera. É o núcleo, a que se acrescenta a parte museológica composta por objectos relacionados com a actividade política e sindical: cartazes, guarda-chuvas, pins, esferográficas, chapéus, panfletos, isqueiros. Há ainda uma colecção de música e de filmes. “É um arquivo privado que depende muito de ofertas. Há entrada contínua de materiais. Todas as semanas a estante cresce um metro e meio”, continua Pacheco Pereira, 66 anos, sobre o que chama “a minha vida”, que já ultrapassou em muito a casa inicial e se alargou a um armazém, uma antiga garagem e a um edifício que já foi escola, posto de GNR e Junta de Freguesia logo a seguir ao 25 de Abril. É o mais recente acrescento ao que começa a ser um intrincado encadear de pátios e corredores, escadas e pequenos jardins que ligam salas repletas de livros, jornais, dossiers, caixas e caixotes numa ordem controlada onde se notam as chegadas mais recentes. “Isto é uma máquina de produção”, refere sobre o sistema que montou e lhe facilita o trabalho que gere em absoluto. “Não entra aqui nada que não passe por mim. Tenho uma gestão autoritária deste espaço”, ri , referindo, no entanto. uma espécie de rede de voluntários, cerca de 150 em todo o país, que recolhem material que ele trata, digitaliza e arruma. 

Passa pouco das três da tarde. O sino da igreja é uma marca temporal permanente. O céu está carregado, mas avistam-se quilómetros a partir da espécie de promontório em que está assente a casa, num dos pontos mais altos da aldeia. “É uma terra com tradição republicana”, comenta, enquanto faz o percurso entre o coreto, no largo principal, e a porta de entrada para o lugar onde escolheu viver desde que deixou o Porto.

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É 5 de Outubro, seria um feriado celebrado por ali, mas é também o dia seguinte às eleições legislativas. Vai chegar novo material. “Hoje estamos a recolher o que as sedes de campanha estão a deitar fora”, e o tempo destas frases é o que demora a chegar a um núcleo de casas brancas com portas e janelas vermelhas onde Pacheco Pereira passa grande parte do seu tempo. Na sala principal da casa, forrada com os livros que quer por perto — entre eles, raridades como uma edição original de Descartes —, estão, sobre uma mesa junto ao sofá, as mais recentes entradas. “É a colheita do último mês e meio”, conta, “um grande e importante arquivo, clássico, tradicional, da correspondência do Henrique Galvão quando esteve na Venezuela, toda a fase preparatória do assalto ao Santa Maria”.

Debaixo, retira uma pasta. “São os papéis de um dos fundadores da Pide, um militar salazarista, e foram-me oferecidos pelo neto. Junto, veio documentação muito interessante sobre o momento inicial da Pide, sobre as relações entre a polícia portuguesa e a polícia italiana e polaca. Não esperava encontrar isso aqui, tem a ver com a tal imprevisibilidade”, comenta. Sobre a mesa está ainda um envelope com materiais da última campanha eleitoral e uma T-shirt. Abre-a, nela pode ler-se Mostra de Edições Subversivas. “É de um evento anarquista.”

A colecção de Pacheco Pereira é conhecida. Sobre ela muito tem sido escrito. Sabe-se da riqueza e diversidade do arquivo, há muitos investigadores que o procuram para documentar investigação — de Portugal, mas também do resto da Europa, Estados Unidos ou Brasil —, há milhares de visitas diárias e regulares ao Ephemera. É o lado mais visível do espólio que surpreende pelo que se poderia chamar “faceta coca-bichinhos” e que irá reflectir-se nos próximos livros a publicar na Tinta-da-China. “Ninguém faz este tipo de recolha, pelo menos em Portugal não fazem e, na Europa, acho que só o British Museum. Há muita coisa que se perde para sempre. Está aqui material que sobrou das últimas manifestações. Se quiser fazer uma história da crise e das reacções à crise, não é difícil perceber que só há coisas aqui. Outro exemplo: calculo que nas últimas autárquicas tenham sido produzidos no país mais de cem mil espécies diferentes de artefactos. Isto contabiliza os panfletos das freguesias, os outdoors, os cartazes, os brindes. Consegui com os voluntários recolher quase 35 mil. Quando há eleições, há uma procura, as pessoas vêm ver o que estava nesses programas.”

A biblioteca de Pacheco Pereira é apontada como de referência em relação à história recente do país. “Sim, é um arquivo diferente, colecciona objectos, mas contém arquivos específicos que mudaram a história de Portugal”, nota. Exemplos? “O de Sá Carneiro, que é um arquivo grande, com documentação fundamental que muda muitos aspectos da história portuguesa. O Sá Carneiro não o guardou no partido, escondeu-o em casa da Conceição Monteiro [secretária particular de Francisco Sá Carneiro] e tem tudo o que ele considerava relevante na sua vida política desde antes do 25 de Abril. Por aí pode-se saber que houve uma tentativa para que o Spínola concorresse à Presidência da República antes do 25 de Abril; pode-se ver como eram as relações com os EUA; decisões importantes da AD, as cunhas para os deputados. Dá uma dimensão muito importante sobre a origem do PPD, com a primeira carta que alguém mandou de Trancoso… Permite fazer um retrato social da génese de um partido novo. O mesmo tipo de materiais existe em relação a muitas organizações de extrema-esquerda. Praticamente todos os partidos portugueses têm aqui grandes arquivos. Muitos são oferecidos, como o do MES e o de Sá Carneiro.” Compra ocasionalmente, em Portugal e fora, sobretudo para completar colecções existentes, como a da extrema-direita. “Pode encontrar aqui tanto o pin da Wolkswagen original, como documentação sobre os fascistas condenados à morte que fugiram da Roménia para Espanha. E há muito material clandestino nos seus próprios países, como jornais nazis da Alemanha. Há também uma colecção maçónica. Essas colecções, de um modo geral, são mantidas integralmente. No caso desta colecção da extrema-direita, havia centenas de títulos de periódicos. Foram digitalizados e entraram no arquivo geral de periódicos. Podem ser consulados no blogue por ordem alfabética.”

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Patrícia Martins

Garante que não se perde no que pode parecer uma vertigem de informação quando tratada por uma única pessoa. “Sei de cor onde está cada livro”, diz enquanto atravessa um corredor estreito, preenchido de um lado e do outro com lombadas até ao tecto. Passa pela sala de ciências, com uma colecção de Química que iniciou quando foi aluno de ciências, mais especificamente de Astrofísica. Está lá, por exemplo, o primeiro estudo sobre radioactividade, de Ernest Rutherford, de 1913. Folheia-o. Chega-se a uma a mesa onde falta continuar a dividir documentação. Fecha-se a porta, percorre-se mais um pátio. Outra sala. “Aqui estão 25 mil entradas”, diz numa sala em penumbra, temperatura e humidade controladas com a ajuda de um desumidificador. “Na organização do arquivo, copio o modelo indicado no jornal O Jornal, pela Maria João Múrias. Foi aí que vi pela primeira vez esta forma de organização e é o exemplo dela que eu sigo. Quando leio um artigo, marco uma palavra-chave, é metido numa pasta e colocado aqui por ordem alfabética.” Consegue ler-se “KJB”, “Eleições”, “Júdice”… 

É um método que o próprio testa enquanto investigador e consumidor das bases de dados que ele mesmo gere. A gestão de todo o arquivo começou com fichas, substituiu-as pela informática pela facilidade com que se estrutura a informação. “A Pide usava um método arcaico de investigação. Mandava um agente — mão-de-obra barata — copiar 50 processos. Depois de copiados, havia uma nota anexada. Mais nada. Eu, usando materiais da Pide, tratando-os em computador, descobri imensas coisas que eles poderiam ter descoberto se tratassem a informação. O computador é um grande agregador e muito útil com a utilização de bases de dados modernas, relacionais. Eu não conseguia fazer a biografia do Cunhal se não fosse isso. Em cada volume lido com milhares de dados diferentes, muitos de fontes directas, uso intensivamente bases de dados que construo há muitos anos. A partir de certa altura, deixo de saber o que lá está, mas ao trabalhar com elas descubro o que não sabia que estava.”

Terminou agora o quarto volume da biografia de Álvaro Cunhal, que está a publicar com a Temas & Debates. Deverá sair antes do Natal e refere-se aos oito anos entre a fuga de Peniche até à queda de Salazar. “Termina em Paris quando Jorge Sampaio sai de uma reunião com o Cunhal e com outras pessoas. Sampaio não sabia onde estava. O PC transportou-o em carros com janelas fechadas. Quando sai do carro, compra o Le Monde e vê a notícia: Salazar tinha caído da cadeira.” Pacheco Pereira faz a síntese. “É interessante, porque o Cunhal nessa reunião já devia saber da notícia. Depois é o momento dramático que se sabe, o início do Marcelismo, que é uma diferença muito substancial do ponto de vista histórico.”

No grosso desses anos, entre 1960 e 68, Cunhal está fora de Portugal. “É um retrato do Cunhal como dirigente comunista internacional.” Na construção do livro, conta que as fontes foram um problema. “No PCP, permanecem fechadas. É possível reconstituir os factos porque os outros partidos comunistas com que ele tinha relações estão abertos. A data de saída dele de Portugal é sempre omissa nos papéis. Sabe-se que em Setembro está em Moscovo. Pude datar porque escreve de Paris uma carta ao Partido Comunista Francês queixando-se de que não tinha sido recebido pelo Maurice Thorez [secretário-geral do PCF até 1964] e pelo Jacques Duclos [que organizou a resistência do PCF ao nazismo durante a II Guerra Mundial]. É tudo feito de fragmentos que estão nas bases de dados que vou construindo à medida que os documentos vão entrando. Isto é uma espécie de sistema Taylor, é uma cadeia de produção.”

Parte do que começa a ser agora publicado vem desta máquina. As cartas de amor que compõem o volume Amorzinho tinham um valor por si mesmas, para entender costumes, relações sociais e pessoais. Os autocolantes do PSD pretendem ser uma obra de referência. “O objectivo é usar alguns destes fundos que podem ser publicados em livro e ser estudados pela sua qualidade gráfica, por serem uma raridade ou mesmo únicos”, salienta Pacheco Pereira. “É o primeiro catálogo de autocolantes que existe em Portugal e a ideia era que fosse feito como um catálogo de selos. Isso significa numerá-los, o que vai permitir aos coleccionadores perceber o que falta. Permite estudar o grafismo ou o significado político das palavras de ordem”, adianta, referindo que o seu espólio deve conter cerca de 20 mil autocolantes diferentes.

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Ainda este ano haverá um terceiro título: “Uma colecção de fotografias estenopeicas feitas pelo António Campos Leal que captam o efeito da luz a passar sobre os livros e foram pensadas para este Ano Internacional da Luz.” Para 2016, planeia publicar um catálogo com a propaganda anti-Frelimo nos últimos anos da guerra colonial. “Tem não só cartazes como panfletos em várias línguas, inclusive árabe”, salienta, numa pausa que pretende ser capaz de traduzir as possibilidades deste arquivo.

Também no próximo ano, pode haver novidades em relação ao arquivo de Vítor Crespo, o ex-presidente da Assembleia da República e ex-ministro da Educação. Todo o espólio, incluindo mobília, está na Marmeleira. Há ainda a ideia de fazer uma história oral do mais recente edifício que foi comprado por Pacheco Pereira para a biblioteca e que acabou este ano de ser recuperado. Pode haver mais correspondência amorosa. Há mais duas colecções por tratar. E está previsto um volume que pode surpreender, “uma série de fotografias tiradas por uma espécie de mestre-de-cerimónias do S. Carlos, que recebia os artistas, ia buscá-los ao avião, levava-os a visitar Lisboa e fotografava-os. Há fotos desde o Stravinsky à Maria Callas, de toda uma elite que visitou o S. Carlos nos anos 50 e 60. Este volume combina o legado de outra pessoa, um melómano, também fiel ao S. Carlos, que tomava notas durante os espectáculos. ‘Dizia coisas como: houve uma fífia da cantora não sei quantas no terceiro acorde; as pessoas tossiram muito.’ Quando se juntam as duas coisas, temos um livro muito interessante sobre o ambiente musical nesses anos.”

A conversa acaba como começou, com Maria de Lurdes e Alfredo. “Só a partir dali é possível partir para um retrato muito abrangente do Portugal de Salazar. Basta querer seguir as pistas.” É o coleccionador que fala. Poderia começar uma colecção por aí, seguir para a política, os movimentos clandestinos, Cunhal… Ter tudo outra vez. “Já viu, teria ido para o lixo!”