O apocalipse pode ser cor-de-rosa
Miet Warlop formou-se em artes visuais mas não estava muito interessada em fazer coisas que ficassem paradas numa galeria. Mystery Magnet, que abre o Festival Internacional de Marionetas do Porto, é aquilo que acontece sempre que sobe a um palco: tudo, até ao fim (e não estamos a exagerar).
Não há melhor maneira de resumir o que esta artista belga (n. 1978) anda a fazer desde que se formou na Academia Real de Belas-Artes de Gand com sete quadros-vivo que dispôs numa sala como se fossem mesas de bilhar num salão de jogos – sete quadros-vivos com que ganhou um prémio não de artes plásticas mas de teatro, e com que portanto encontrou uma saída para as imagens às vezes muito pós-apocalípticas que vai coleccionando na cabeça até ser altura de lhes dar uso prático (pô-las numa galeria era uma hipótese, mas concluiu que “as artes visuais são demasiado estáticas”). “É verdade, é isso que eu quero: fazer cócegas às pessoas. Para que riam muito, e ao mesmo tempo queiram parar de rir porque às tantas as dores de barriga se tornam insuportáveis. Não porque eu esteja obcecada com o lado negro das coisas – nas minhas peças há tanto a procura desse lado negro como uma certa fúria de viver. Simplesmente acho que quem nega esse lado negro – na vida, no teatro, nas artes visuais – tem de ser muito estúpido”, argumenta a propósito de Mystery Magnet, o espectáculo com que abre hoje e amanhã, no Grande Auditório do Teatro Municipal Rivoli, o Festival Internacional de Marionetas do Porto.
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Não há melhor maneira de resumir o que esta artista belga (n. 1978) anda a fazer desde que se formou na Academia Real de Belas-Artes de Gand com sete quadros-vivo que dispôs numa sala como se fossem mesas de bilhar num salão de jogos – sete quadros-vivos com que ganhou um prémio não de artes plásticas mas de teatro, e com que portanto encontrou uma saída para as imagens às vezes muito pós-apocalípticas que vai coleccionando na cabeça até ser altura de lhes dar uso prático (pô-las numa galeria era uma hipótese, mas concluiu que “as artes visuais são demasiado estáticas”). “É verdade, é isso que eu quero: fazer cócegas às pessoas. Para que riam muito, e ao mesmo tempo queiram parar de rir porque às tantas as dores de barriga se tornam insuportáveis. Não porque eu esteja obcecada com o lado negro das coisas – nas minhas peças há tanto a procura desse lado negro como uma certa fúria de viver. Simplesmente acho que quem nega esse lado negro – na vida, no teatro, nas artes visuais – tem de ser muito estúpido”, argumenta a propósito de Mystery Magnet, o espectáculo com que abre hoje e amanhã, no Grande Auditório do Teatro Municipal Rivoli, o Festival Internacional de Marionetas do Porto.
Mystery Magnet não nega – pelo contrário, alimenta, e bastante alarvemente – esse lado negro. Aquilo que começa por ser um palco vazio com um rapaz muito gordo ao fundo, encostado a uma parede branca, transforma-se numa escalada imparável em direcção à catástrofe, a uma catástrofe de que dificilmente um rapaz muito gordo sairá vivo: tudo aqui explode (ou implode), tudo se suja, tudo se parte, e sem efeitos especiais. Haverá mesmo uma chuva de dardos, haverá mesmo um tubarão à solta, haverá mesmo personagens (performers de carne e osso ou adereços com vida própria que Miet Warlop trata como esculturas animadas) atropeladas por um carro, agrafadas ao cenário, empaladas na parede que agora já não é branca, porque entretanto correu muita tinta (ou muita espuma, ou muita plasticina).
Haverá desastres em cadeia, sim, e não é por crueldade. Miet Warlop acredita em fazer em cima do palco tudo o que não é suposto fazer em cima do palco (incluindo artes visuais) porque é nessa energia da incredulidade que os espectadores libertam uma adrenalina qualquer, certamente a adrenalina que interessa à artista belga. “O facto de estarmos mesmo a atirar baldes de tinta, de estarmos mesmo a partir a parede – de nada disto ser falso –, impõe uma energia especial. Acho que no fim de contas o poder de um espectáculo depende mais de até onde estamos dispostos a levar as imagens do que das imagens propriamente ditas. Podíamos simplificar tudo, claro, e no final não teríamos de limpar tanto, nem de reconstruir tanto, mas queremos mesmo ir até ao fim. Porque só nesse lugar apanhamos o público desprevenido – nunca ninguém acredita que vamos realmente destruir o palco. Não se encaixa no que está permitido, no que alguém considerou que é o melhor para todos.”
O caos de uma cabeça
Tratar o palco como um lugar de risco, onde tudo pode acontecer, é parte do processo de Miet Warlop para libertar as suas visões da paralisia das artes visuais sem deixar que a sala de teatro as torne demasiado densas, ou demasiado narrativas (“Há uma estrutura na construção de uma performance que é muito previsível; decidi concentrar-me em violar as regras, em evitar as imagens perfeitas”). A outra parte é o que vem antes: deixar que certas imagens se formem na sua cabeça e depois encontrar maneira de as transformar em animais de palco. “Faço um espectáculo de dois em dois anos – no ano e meio que tenho de intervalo, além de tentar digerir o que fiz, colecciono materiais e experimento ideias, na minha cabeça ou já no espaço de trabalho. Depois de ter todos os materiais básicos dispostos no chão, começam a aparecer combinações, e transições entre combinações. Resumindo: para mim, o palco é só o lugar onde junto tudo no fim. É só um chão – um chão onde podes fazer absolutamente tudo o que quiseres.”
No caso de Mystery Magnet, as imagens vieram sobretudo dos materiais que a artista belga escolheu trabalhar: a tinta, que aqui usou como um marcador de todas as acções das personagens (se alguém chegar mais tarde e quiser souber o que aconteceu ao longo da peça, é só seguir os rastos). O humor suicidariamente físico, como nas comédias splapstick, é coisa que ela foi buscar menos ao cinema (é grande fã de Buster Keaton, mas garante que Mystery Magnet não tem a ver com isso) e mais a toda uma linhagem de desenhos-animados malignos geração pós-Ren & Stimpy; desenhos animados “em que vemos personagens fofinhas a fazerem coisas absolutamente horríveis”. Ainda que o rapaz gordo que está ali não seja propriamente a vítima a quem Miet Warlop decidiu fazer bullying no recreio: “É uma metáfora. Se calhar até de mim. Acho que houve uma altura em que eu consumia muitas coisas – comida, imagens, todo o tipo de coisas. Por isso quis deixá-lo ali sozinho, o rapaz que consumiu o mundo inteiro. É preciso fazê-lo enlouquecer.”
Enlouqueçamos com ele, como ele: homens que só existem só da cintura para baixo, raparigas enforcadas em trevos de quatro folhas, mulheres que usam (mas literalmente) rabos-de-cavalo, um coro de manequins com máscaras de gás, um tubarão que se quisermos suspender a descrença (porque aqui tudo está ostensivamente à vista, “para que os espectadores saibam como é feita a magia”) diremos que é telecomandado. É como se Miet Warlop nos quisesse dizer que o palco é apenas isso: a imagem caótica de tudo o que está numa cabeça (todo o barulho, toda a tralha). “O que é que veríamos se fizéssemos explodir uma cabeça? Haveria de certeza beleza, mas também haveria dor; haveria de certeza fantasia, mas também haveria lixo. A destruição que eu trago para os meus espectáculos tem mais a ver com isso: com a luta pessoal que é preciso travar, dia após dia, contra o lado negro – mesmo quando estás estupidamente feliz.”
É assim Mystery Magnet: um lugar onde mesmo as coisas mais horríveis – como uma certa forma de apocalipse – podem ser cor-de-rosa. Não sendo uma pessoa maníaco-positiva, Miet Warlop até disfarça.