Inquietude, porquê? Filipe Raposo sabe
Gravado durante dois anos passados em Estocolmo, Inquiétude mostra-nos o pianista Filipe Raposo a abraçar mais história e mais mundo. Álbum em quarteto, álbum em viagem. Apresentação hoje no São Luiz, em Lisboa.
Falamos, afinal de Filipe Raposo, cuja discografia contempla um First Falls (2011) em formato trio, o A Hundred Silent Ways (2013) em piano solo e, agora, este Inquiétude gravado em quarteto durante uma estadia de dois anos em Estocolmo. Falamos, continuemos, de um músico de formação clássica que se apaixonou pelo jazz, de alguém que faz da sua demanda musical a criação de pontes entre vários universos (a erudita, o jazz, a tradicional). Um homem curioso e aberto à descoberta que tanto podemos encontrar a junto a Vitorino, Janita Salomé ou José Mário Branco, como de Amélia Muge ou Camané. Que num dia pode descobrir-se entre músicos marroquinos, espanhóis e portugueses para dar som à poesia de Al Mutamid (foi o director musical do óptimo Al-Mutamid – Rei Poeta do Al Andalus) e, no seguinte, descobrir um parceiro musical para a vida numa jam-session informal (foi um encontro assim que deu origem a Inquiétude). Pelo meio, felicíssimo, junta num mesmo movimento duas das suas maiores paixões, a música, claro, e o cinema, e cria ao vivo a banda-sonora de filmes mudos na Cinemateca.
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Falamos, afinal de Filipe Raposo, cuja discografia contempla um First Falls (2011) em formato trio, o A Hundred Silent Ways (2013) em piano solo e, agora, este Inquiétude gravado em quarteto durante uma estadia de dois anos em Estocolmo. Falamos, continuemos, de um músico de formação clássica que se apaixonou pelo jazz, de alguém que faz da sua demanda musical a criação de pontes entre vários universos (a erudita, o jazz, a tradicional). Um homem curioso e aberto à descoberta que tanto podemos encontrar a junto a Vitorino, Janita Salomé ou José Mário Branco, como de Amélia Muge ou Camané. Que num dia pode descobrir-se entre músicos marroquinos, espanhóis e portugueses para dar som à poesia de Al Mutamid (foi o director musical do óptimo Al-Mutamid – Rei Poeta do Al Andalus) e, no seguinte, descobrir um parceiro musical para a vida numa jam-session informal (foi um encontro assim que deu origem a Inquiétude). Pelo meio, felicíssimo, junta num mesmo movimento duas das suas maiores paixões, a música, claro, e o cinema, e cria ao vivo a banda-sonora de filmes mudos na Cinemateca.
Inquiétude será apresentado hoje, sexta-feira, em Lisboa, no Teatro São Luiz (21h, bilhetes entre os 12 e os 15 euros), depois de ontem ter sido levado ao Festival Multidisciplinar em Viseu. É um álbum peculiar em mais que um sentido. Nasceu de uma tese de mestrado, a que Filipe Raposo elaborou ao longo de dois anos no Royal College of Music de Estocolmo, e é um disco em que o ouvimos explorar novos terrenos: o pianista, liderando um quarteto reunido na capital sueca, a acolher e a dar protagonismo à guitarra, algo inédito no seu trabalho, e a mergulhar mais profundamente numa tradição, a americana, que até então, apenas aflorara. “Há uma influência directa e uma procura minha dessa influência norte-americana”, explica. “Há uma exploração do que são as influências primordiais, desde Barry Harris, um pianista pedagogo que marca uma série de pianistas, a pianistas do jazz tradicional, do bebop, do hardbop, para perceber como posso trazê-los para a minha linguagem, para as minhas composições”. Mas Inquiétude é mais que isso.
Cabem aqui versões, como a belíssima Moda do entrudo, tradicional da Beira Baixa, levada em piano solo até próximo da terna majestosidade de Debussy, ou como a fervilhante Army of me, original de Björk, que sinaliza a relação com a música electrónica estreitada durante a passagem por Estocolmo. Ouve-se The man I love, de Gershwin, interpretada com um amor comovente pela melodia original, e mostra-se música como fluxo contínuo de reinterpretações (representadas pelo Pulcinella que Stravinski resgatou de Pergolesi e no Interplay de Bill Evans). Acima de tudo, ficamos com a nítida percepção de que existem três traves-mestras na criatividade de Filipe Raposo: curiosidade, sensibilidade e generosidade. A primeiro leva-o a estar constantemente em procura de novos estímulos e de mais mundo (e, em Inquiétude, viaja habilmente, por exemplo, entre memórias bebop ou o jazz de fusão da década de 1970). A segunda, traduz-se na gentileza do seu toque e na elegância dos arranjos. A terceira é patente, por exemplo, na forma como, em várias ocasiões, cede o protagonismo à guitarra de Andy Yeo, inadvertida responsável pelo disco que temos agora em mãos.
Uma saudável angústia
Filipe Raposo viajou até Estocolmo por duas razões. É ali que dá aulas Ove Lundin, professor de Espion Svensson, líder do Espion Svensson Trio, músico que muito admira. Tão ou mais importante, o facto de “o ambiente académico ser totalmente diferente daquilo a que estamos habituados no sul, onde o tutor é uma espécie de controlador”, refere. “Na Suécia funciona precisamente ao contrário. O aluno tem total liberdade para fazer o que quer e o professor está lá para ouvir as suas ideias”. Os anos do mestrado foram então encarados “como uma longa residência”.
Entre “o branco do inverno escandinavo, com a neve e o frio, contraste com o ocre do sul, com o calor que está presente na cultura mediterrânica” – e Filipe Raposo é sensível e inspira-se nestes contrastes -, que, na primeira semana de estadia em Estocolmo, conheceu Andy Yeo numa jam session informal. O encontro com o guitarrista “espoletou uma série de consequências que estão na composição”. Ao ouvir a guitarra de Yeo, que actuará no São Luiz, tal como, de resto, os restantes elementos que gravaram Inquiétude (Samuel Löfdahl, contrabaixo, Karl-Henrik Ousbäck, bateria), virou-se para o Invisible Cinema (2008) de Aaron Parks e começou a seguir com atenção Kurt Rosenwinkel, figuras da guitarra jazz actual, e, no silêncio do ambiente académico em que passava os dias, deixou as novas composições fluir.
Inquiétude é uma viagem, como o é sempre, de resto, a música de Filipe Raposo, veículo para que se revele o seu mundo, amplo e aberto. É uma história antiga: “Aos 14 anos entrei no Conservatório de Lisboa, que na altura tinha escola de cinema, de teatro, de dança - a figura de João César Monteiro era comum naqueles corredores. Era um fervilhar de informação e a contaminação acontecia. Uma vez que ponhamos o pé naquela piscina, a da arte, dificilmente não seremos contaminados”. O título do novo disco nasce, bem a propósito, de um poema da artista franco-americana Louise Bourgeois. “I stay on the top of my inquiétude”, leu Filipe Raposo. “Foi a síntese do que foram estes dois anos. A inquietude de chegar ao fim de um trabalho que nunca está fechado. A saudável angústia que fica e que é extremamente importante no processo criativo. A necessidade de procurar”.
Dia após dia, um processo contínuo. Um constante começar de novo, desbravando mais e mais. Com uma constante. “O momento em que me sento ao piano pode ser angustiante, tal como o momento em que o pintor tem o pincel na mão e se prepara para começar a pintar. Esse é o momento em que acontece ou não acontece. Quantas e quantas páginas de música deitei fora… Aqui reside essa inquietude. Será que isto vai correr bem?”. Temos o disco. “Inquiétude” aconteceu. Correu bem.