Cavaco quer Presidente a indicar juízes para o Constitucional
Presidente dá sugestões para revisão da Constituição. Ministra da Justiça ouviu várias críticas na abertura do ano judicial.
“A atribuição ao Presidente da República da faculdade de designar alguns juízes do Tribunal Constitucional poderia reforçar a percepção de independência que os portugueses têm deste órgão”, alegou Cavaco Silva, que participou pela última vez nesta cerimónia solene na qualidade de Presidente.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
“A atribuição ao Presidente da República da faculdade de designar alguns juízes do Tribunal Constitucional poderia reforçar a percepção de independência que os portugueses têm deste órgão”, alegou Cavaco Silva, que participou pela última vez nesta cerimónia solene na qualidade de Presidente.
A forma de escolha dos juízes mantém-se inalterada desde 1976, altura de que data, aliás, a Constituição da República, que incluiu a criação desse órgão. O Tribunal Constitucional é actualmente composto por 13 juízes. Dez são eleitos pela Assembleia da República, por maioria qualificada de dois terços dos deputados presentes. Os restantes três juízes são cooptados pelos dez eleitos, por maioria qualificada. Seis dos membros do Tribunal Constitucional têm de ser obrigatoriamente juízes dos restantes tribunais e os restantes sete têm de ser juristas. O presidente e o vice-presidente são eleitos pelos restantes magistrados deste órgão, não sendo o mandato de nove anos dos juízes renovável.
Reconhecendo que este tribunal se tornou “um pilar da democracia portuguesa”, o Presidente da República recordou como a forma de designação dos seus juízes é debatida desde a sua criação, em 1982: “Logo na altura diversas vozes, entre as quais as de prestigiados juristas, defenderam um modelo alternativo, de modo a que a sua composição não fosse reservada quase em exclusivo à Assembleia da República”.
Outra sugestão de Cavaco para uma futura revisão da lei fundamental passa pelo alargamento do prazo dado ao Presidente da República para requerer a fiscalização preventiva da constitucionalidade dos diplomas, uma vez que os oito dias de que dispõe neste momento lhe parecem manifestamente insuficientes. Por fim, Cavaco pensa que o processo de nomeação do governador do Banco de Portugal “deveria, porventura”, ser consagrado na Constituição, tal como sucede com os titulares dos mais altos cargos do Estado. Feita através de uma lei menor, como sucede agora, “pode implicar uma perda de estabilidade no exercício do cargo”, requisito “essencial para a sua independência e autonomia”.
“Até para o reforço da imagem de independência do Banco de Portugal deverá ponderar-se se a nomeação não deveria ser feita pelo Presidente da República, sob proposta do Governo e eventualmente após audição parlamentar”, observou, num discurso que, apesar de tudo, desiludiu vários dos magistrados presentes.
“Sabe a requentado”, comentava um dos altos dignatários presentes. “Tanto podia ter dito o que disse na abertura do ano judicial como nas comemorações do 5 de Outubro, caso lá tivesse ido”, observava outro. “Foi perfeitamente desajustado”, corroborou o presidente do Sindicato de Funcionários Judiciais, Fernando Jorge.
A privatização da Justiça
Inesperado mesmo foi mesmo o discurso do anfitrião da cerimónia, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça. Perante o Presidente e a ministra da Justiça, Henriques Gaspar falou da subtracção dos grandes interesses económico-financeiros aos tribunais comuns e do consequente enfraquecimento do Estado de direito. O magistrado criticou a forma como os litígios relacionados com a concorrência, as comunicações ou a energia são resolvidos cada vez com maior frequência recorrendo aos chamados tribunais arbitrais, onde figuras nomeadas por cada uma das partes em confronto fazem as vezes de juízes, e a outras formas extra-judiciais de resolução de conflitos. “Para além da ambiguidade da desjudicialização (…) somos confrontados de várias fontes por insistente indução ideológica à fuga do contencioso para formas de justiça privada”, disse o presidente do Supremo. “Não pode constituir função de Estado promover a escolha de formas privadas de justiça. E nem sempre são compreendidos os critérios e a tendência para a instituição de tribunais arbitrais (…)”, defendeu. A privatização da justiça tem um fito, salientou: “Realizar a utopia neoliberal de dispensar o juiz, ficando os tribunais da República numa função residual”. Uma função que se vê, assim, “limitada à dimensão criminal de controlo social, à decisão sobre — cada vez menos — direitos não transaccionáveis (…), ao contencioso nascido de manifestações de desesperança sentida nos estratos mais frágeis da sociedade.” A desigualdade de armas entre os que têm meios para comprar uma justiça alternativa e aqueles que não os possuem progride assim de forma quase imperceptível: “Assistimos a rupturas silenciosas, que são alterações radicais, reveladas na criação subreptícia de instâncias de jurisdição material fora dos tribunais”.
Nestas circunstâncias, acrescentou Henriques Gaspar, “os riscos da perda de identidade e de fragmentação da justiça estão muito presentes”. Para avisar logo de seguida: “Pressente-se, em sensação larvar, a anestesia que esconde a erosão e mesmo a automutilação de direitos; e vão ficando, suavemente, manifestações de enfraquecimento do Estado de direito.”
Na intervenção que fez minutos depois a ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, enumerou a obra que deixa no final deste mandato, que não pretende renovar.
Estimou que as medidas que tomou tenham reduzido as pendências de processos nos tribunais judiciais em cerca de 6% e não se coibiu de mencionar os seus esforços para promover a resolução de certos litígios fora dos tribunais comuns – mas mal respondeu às críticas, que, de resto, não partiram só do presidente do Supremo, limitando-se a referir que a lógica que presidiu ao sistema de recuperação de empresas por via extrajudicial não foi a de tirar aos tribunais as competências que lhes pertencem.
Se a justiça fosse uma pessoa, estaria hoje a ultrapassar uma depressão catatónica. As palavras são da bastonária dos advogados, Elina Fraga, uma das vozes mais agrestes da cerimónia. “Temos tribunais que funcionam em contentores com centenas de milhares de processos amontoados, enquanto se encerraram outros, a poucos quilómetros de distância, com condições de excelência, num acto irreflectido e de pura obstinação”, acusou. Já a procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, preferiu fazer incidir os seus reparos na nova legislação que tem vindo a ser produzida não só para lançar a reorganização dos tribunais mas também em matéria de terrorismo, violência doméstica e abusos sexuais contra menores. Joana Marques Vidal salientou que a efectiva aplicação destes diplomas legais exige investimentos quer ao nível dos recursos humanos quer de recursos financeiros e materiais.
“São diplomas que teriam merecido um mais aprofundado debate público e uma melhor qualidade legística”, observou a procuradora-geral da República, que se queixou ainda , e uma vez mais, da grave carência de funcionários judiciais e de magistrados. Reivindicando o reforço dos meios de investigação criminal, Joana Marques Vidal não quis deixar sem resposta as acusações que têm sido alvo os procuradores encarregues de processos mediáticos, como o do ex-primeiro-ministro José Sócrates. “É com enorme perplexidade que nos confrontamos com a opinião daqueles que afirmam que o Ministério Público é uma instituição sem controlo democrático, que não responde perante ninguém”, indignou-se. “A autonomia do Ministério Público não se configura como um privilégio”, explicou. É antes a principal garantia de independência dos magistrados face aos restantes poderes - incluindo o político.