Memória de Petit
Nunca alcançaremos inteiramente o que levará alguém a esticar um cabo de aço entre as as Torres Gémeas a 440 metros de altura, e a atravessá-lo. The Walk, de Robert Zemeckis, que estreia quinta-feira, tenta fazê-lo. Aqui limitamo-nos a passear com ele em Lisboa: Philippe Petit.
Na verdade, aquela figura atarracada e curva, de olhar abatido sob um boné de pala, pouco se assemelhava ao homem vestido de negro que, em Agosto de 1974, riscara os céus de Manhattan pleno de energia e com o destemor dos loucos. No carro para o hotel, conversa de circunstância: o cansaço do voo, a diferença do fuso horário, a chuva que ameaçava Lisboa. A voz suave e delicada, que recusou a língua materna e preferiu falar em inglês, animou-se quando passámos no Campo Pequeno. Recordei-lhe que, na juventude, também ele fora mozo de espadas, entre mil e um outros ofícios. Todas as biografias mencionam as atribulações da sua carreira escolar. O próprio vangloria-se de ter sido expulso de cinco estabelecimentos de ensino até chegar à idade adulta. Depois, deu-se ao mundo, e a uma infinidade de interesses: desenho, escultura, tipografia e impressão, carpintaria, teatro, equitação, esgrima, estudo de línguas estrangeiras, incluindo o russo. Para ganhar a vida, fazia espectáculos de rua junto às luzes dos grandes cafés de Paris, com a polícia sempre no seu encalço. Ocupara um minúsculo apartamento não longe de Notre Dame, que ainda hoje mantém, pejado de recordações e mistérios. Mas é noutra igreja – a catedral de St. John the Divine, em Nova Iorque – que desde há muitos anos se fixou, com os seus segredos. Aí conserva um gigantesco arquivo pessoal. O funâmbulo é artista-residente de St. John the Divine, e é também lá que repousam as cinzas da sua única filha, Cordia-Gypsia, que morreu prematuramente com nove anos de idade, vítima de um aneurisma cerebral.
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Na verdade, aquela figura atarracada e curva, de olhar abatido sob um boné de pala, pouco se assemelhava ao homem vestido de negro que, em Agosto de 1974, riscara os céus de Manhattan pleno de energia e com o destemor dos loucos. No carro para o hotel, conversa de circunstância: o cansaço do voo, a diferença do fuso horário, a chuva que ameaçava Lisboa. A voz suave e delicada, que recusou a língua materna e preferiu falar em inglês, animou-se quando passámos no Campo Pequeno. Recordei-lhe que, na juventude, também ele fora mozo de espadas, entre mil e um outros ofícios. Todas as biografias mencionam as atribulações da sua carreira escolar. O próprio vangloria-se de ter sido expulso de cinco estabelecimentos de ensino até chegar à idade adulta. Depois, deu-se ao mundo, e a uma infinidade de interesses: desenho, escultura, tipografia e impressão, carpintaria, teatro, equitação, esgrima, estudo de línguas estrangeiras, incluindo o russo. Para ganhar a vida, fazia espectáculos de rua junto às luzes dos grandes cafés de Paris, com a polícia sempre no seu encalço. Ocupara um minúsculo apartamento não longe de Notre Dame, que ainda hoje mantém, pejado de recordações e mistérios. Mas é noutra igreja – a catedral de St. John the Divine, em Nova Iorque – que desde há muitos anos se fixou, com os seus segredos. Aí conserva um gigantesco arquivo pessoal. O funâmbulo é artista-residente de St. John the Divine, e é também lá que repousam as cinzas da sua única filha, Cordia-Gypsia, que morreu prematuramente com nove anos de idade, vítima de um aneurisma cerebral.
Philippe Petit veio a Lisboa este ano para o lançamento na Feira do Livro da revista XXI, editada pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. Nunca estivera em Portugal, salvo breve passagem pela Madeira, de que recordava sobretudo os vinhos. Transportava consigo uma bagagem sumária e – suspeitámos nós, erradamente – a intenção de cumprir apenas os serviços mínimos contemplados no contrato: na tarde desse dia, um conjunto de entrevistas; depois, o jantar da praxe com um grupo restrito; na tarde seguinte, a apresentação na Feira e, a seu pedido, o trivial passeio pelas belezas turísticas de Lisboa e Sintra.
Instalado no hotel, quis almoçar no quarto, uma salada ligeira. Mas desceu à hora marcada para as entrevistas, pontualíssimo. Apresentou-nos logo um papel com dezenas de anotações. Vários pedidos – ou, melhor dizendo, instruções precisas e inabaláveis – sobre como tudo se iria desenrolar. Aos poucos, voltava a ser o homem que em 1971 atravessara as torres da catedral de Notre Dame, sob o olhar impotente da polícia. Segundo ele, o gesto não mereceu a devida cobertura da imprensa francesa, datando daí o seu afastamento em relação ao país natal, que trata com amargura e desprezo. Em 1973, repetiria a façanha das travessias clandestinas a grande altitude, ao percorrer a Sydney Harbour Bridge. A intervenção precipitada das autoridades australianas por pouco não levara à queda do funambulista. Em actuações como aquela, a queda só tem um resultado: a morte, inescapável. "A Morte – a Morte de que eu te falo – não é a que vai seguir-se à tua queda, mas a que precede no arame a tua aparição. Antes de o escalares é que morres", escreveu Genet em Funambule, o ensaio que dedicou ao seu amante, o funambulista argelino Abdallah Bentaga. Aí reside uma boa parte do fascínio exercido pelos que ousam caminhar nas alturas sobre um cabo de aço, apenas com o auxílio de uma vara – e de um ego maior que o medo. Por mais que pensemos nisto, nunca conseguiremos alcançar inteiramente o que levará alguém a preparar durante seis anos uma travessia clandestina entre as Torres Gémeas. E a esticar um cabo de aço lá em cima, a 440 metros de altura. E depois percorrê-lo, numa distância de 50 metros, para trás e para diante, durante 40 minutos. Às tantas, começou a chuviscar. Uma gaivota aproximou-se dele e descreveu vários círculos, espantada pela sua presença ali, entre nuvens e ventos poderosos, ventos que sopravam com uma força tal que fazia vibrar todo o World Trade Center. Acenou à pequena multidão longínqua e deitou-se no cabo, a contemplar o céu, ou a grandeza da sua pessoa. No gozo de um momento efémero que, ao menor deslize, seria o último. Fatalmente o último.
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Num hotel de Lisboa, cumpriu com profissionalismo o ritual das entrevistas à imprensa. Depois da travessia das Torres, e tendo recusado contratos milionários para fazer actuações comerciais, caiu num relativo esquecimento. Passou uma temporada no circo, experiência que detestou – e em que teve o mais grave acidente da sua carreira. O seu primeiro livro foi rejeitado por 18 editoras. Muito mais tarde, contou com detalhe o assalto ao Trade Center, uma combinação certeira de planeamento milimétrico e abertura ao improviso que James Marsh retratou no documentário Man on Wire, galardoado com um Óscar em 2009.
Petit é implacável para os que, em seu entender, o atraiçoaram na preparação do golpe de Manhattan, desistindo à última hora por receio de serem acusados de cumplicidade num acto suicida. O seu rancor vai ao ponto de apagar os rostos dos "traidores" nas fotografias daquela época, quando um punhado de fiéis, recrutados quase ao acaso, o seguiu com uma devoção que raiava o misticismo. Ainda hoje, e apesar de terem seguido caminhos distintos, os seus grandes apoiantes recordam le coup com lágrimas nos olhos. Mas só Petit conta a história da façanha. Não existem outros relatos da aventura de Manhattan, à excepção de uma obra ilustrada para crianças, publicada no rescaldo dos ataques do 11 de Setembro.
Em Lisboa, aos poucos, o funâmbulo revelava-se um cavalheiro de enorme cortesia, um charmeur envolvente, que falava baixinho, mas odiava ser limitado nos seus movimentos. Quando nos demos conta, já conhecia todos os meandros do hotel, já se escapara para uma ida furtiva às Amoreiras, já iludira todos os esquemas previamente acertados. Aparecia de súbito com um sorriso desarmante, rasgado num rosto glabro, de pele alvíssima. "Carisma", "força interior" ou "magnetismo", que na maioria das vezes parecem chavões de auto-ajuda, no caso de Petit tornam-se realidades tangíveis, indiscutivelmente presentes.
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Na descida do Parque Eduardo VII, interessou-se por alguns livros, sobretudo os que tinham mapas, outra das suas paixões. Ficou encantado quando lhe ofereci As Três Vidas, de João Tordo, cuja capa tem a imagem de uma das suas actuações; de imediato, acrescentou: "não me pagaram os direitos…". Os "direitos de imagem" são mais do que uma obsessão de vaidade; representam um modo de vida para quem, em boa medida, vive do passado. Por muito que se recuse a admiti-lo, Philippe Petit ficou aprisionado no alto das Torres Gémeas aos 24 anos de idade.
Feita a primeira visita à Feira, regressou ao hotel, preparando-se para o acto seguinte. O jantar, memorável e exquis, durou horas, com o funambulista a discorrer sobre vinhos e gastronomia ou a descrever o seu trabalho na rodagem do filme de Zemeckis. Pusera como condição ser ele a treinar o protagonista, Gordon-Leavitt, mas não se mostrava muito entusiasmado com o resultado final – que, aliás, ainda não conhecia na íntegra. Uma sombra de melancolia atravessou-lhe o rosto, talvez porque tivesse achado que deveria ser ele a desempenhar o papel principal em The Walk. Ou talvez porque os artifícios do filme, em 3-D e com uma tonalidade próxima dos videojogos, estejam nos antípodas da sua visão do mundo. Passadista, avesso às tecnologias, dizendo que preferia ter vivido na Idade Média ou na Renascença, orgulha-se de ter construído com as suas mãos, e com ferramentas da época, a réplica de um celeiro do século XVIII que lhe serve de local de treino no seu refúgio nas Catskills. No entanto, a sua maior reserva perante o filme foi certamente esta: Petit tem uma necessidade absoluta, quase tirânica, de hegemonia e controlo. Situações ou pessoas, tudo deve estar sob o seu domínio. The Walk, uma superprodução hollywoodesca, escapou-lhe das mãos, o que visivelmente o incomodava.
No final da noite, com o restaurante vazio, surpreendeu-nos com truques de prestidigitador. Revelou-se um conversador nato, desfiando os nomes dos chefs que conhecia, do mesmo modo que habitualmente se ufana do convívio íntimo com celebridades como Paul Auster, Sting, Debra Winger ou Werner Herzog. Ensinou-nos a ultrapassar as filas nas bilheteiras dos cinemas e museus, usando uma técnica ardilosa que aprendera em Moscovo, um dos períodos mais obscuros da sua juventude. Acusou o toque quando lhe falei do projecto do Grand Canyon. Entretanto, outros tinham já atravessado o mítico desfiladeiro. Agora, Petit menosprezava o feito, confidenciando que nunca fora uma das suas prioridades. Muito mais importante é, dizia-me, a travessia que ainda tenciona fazer na Ilha da Páscoa.
Na tarde do dia seguinte, falou na Feira do Livro para um auditório de afortunados. Fez sobressair os seus dotes de performer, seduzindo o público como um grande profissional de palestras e conferências, habituado a subjugar plateias pelo mundo fora. Respondeu a todas as perguntas que António José Teixeira e eu lhe fizemos mas voava por cima delas. Nunca o ouvi falar de forma tão extensa e pungente da morte da sua filha, e das palavras que ambos trocaram no instante derradeiro. Depois, revelou o novo projecto que tinha em mente: subir às ameias da Torre de Belém num cabo esticado a partir do solo. Na manhã desse dia, estivera junto ao Tejo, a fazer o levantamento do local. Já escolhera inclusivamente o pinheiro manso onde iria fixar uma das extremidades do cabo. Acabada a apresentação da revista, deu autógrafos, deixou-se fotografar vezes sem conta, desceu o Parque até ao relvado.
De Lisboa queria ver os biombos namban do Museu de Arte Antiga, pois num deles observara, há muitos anos, a representação de um marinheiro português a caminhar nas cordas de uma caravela. Também procurou com grande afã mocassins de couro, pois não os encontra na América ou em França e é com eles que faz as suas travessias, guardando-os como relíquias. Sabe exactamente quais usou para percorrer o arco da Torre Eiffel em 1989, no bicentenário da Revolução ou, dois anos antes, o átrio do Grand Central Terminal, em NY, numa caminhada rápida, feita entre a chegada e a partida de dois comboios. Dizendo-se apolítico, Petit transitou sem problemas dos «crimes artísticos» clandestinos, em que avultava a marca da transgressão antiautoritária, para a participação em cerimónias comemorativas e celebrações oficiais. Uma das suas actuações revestiu-se de especial simbolismo: A Bridge for Peace percorreu em 1987 um cabo esticado entre os bairros desavindos da cidade de Jerusalém.
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Na manhã da despedida, fui buscá-lo muito cedo ao hotel. No caminho para o aeroporto, falou incessantemente da travessia na Torre de Belém. Mostrou-me as suas anotações frenéticas, os gatafunhos que indicavam a árvore onde tencionava fixar o cabo para uma caminhada difícil, oblíqua, igual à que em 1994 fizera em Frankfurt, perante uma multidão de 500 mil pessoas em delírio. Combinámos a entrega dos discos que pedira, Amália e Madredeus. Em troca, enviou-me Trois Coups, o seu primeiro livro, inacessível, pois Philippe comprou todos os exemplares existentes. "To António – who knows too much about me", escreveu na dedicatória. Nos mails que ocasionalmente trocamos, continua a falar da escalada à Torre de Belém.
Chegámos ao aeroporto. Na porta de embarque, um abraço caloroso, promessas de reencontro. Fiquei a observá-lo até desaparecer de vista. Caminhava apressadamente. Depois, esfumou-se.