Manuel Mozos entrega-se a João Bénard da Costa
Mozos entrega-se a João Bénard, às suas palavras, à sua visão da vida e do cinema.
Assim era Ruínas, o seu filme sobre um Portugal delapidado e abandonado; e assim é esta sua evocação de João Bénard da Costa, conduzida pelas palavras dele, por vezes mesmo (graças à memória arquivística) ditas por ele, como se o convertesse, por sua vez, num daqueles “protagonistas ausentes” de que Bénard tanto gostava (e tanto gostava que esse – “protagonistas ausentes” – foi o título e o mote de um célebre ciclo que organizou na Cinemateca). Outros Amarão as Coisas que eu Amei é um filme sobre João Bénard da Costa, encontrado nesse cruzamento entre a sua ausência física e a sua presença espiritual; mas é ainda mais, um filme sobre as palavras de João Bénard da Costa, autor de todo o texto que no filme se ouve ser lido. Subjectivo? Não, pelo contrário, tremendamente objectivo: é o feito maior de Mozos, centrar o filme nessa matéria, sólida e palpável (visto que está impressa e tudo), que são as palavras de João Bénard da Costa, evitando as armadilhas da memória e da evocação. É por isso que a ausência se pode transformar em presença, num pequeno milagre cinematográfico que não deixa de ser, a seu modo, uma rima para aquele grande milagre cinematográfico de que João Bénard tanto gostava, o filme de Carl Dreyer que em português se chamou, justamente, A Palavra.
Será escusado dizer que não se trata de um filme que empregue aquele modelo, corrente e didáctico, do documentário informativo e explicativo. Não há depoimentos, não há enquadramentos externos a essa matéria que está no coração do filme. Há, isso sim, um espantoso trabalho de montagem – montagem de documentos fotográficos, de imagens que se fazem “documento” (os planos no que se presume ter sido o escritório caseiro de Bénard), de excertos de filmes (do Johnny Guitar aos filmes, por exemplo de Manoel de Oliveira, em que Bénard foi actor, e que aparecem quase sempre filmados na moviola, como que a sublinhar também uma questão de “materialidade”), de lugares caros à memória de vida de João Bénard (a Arrábida, onde o filme começa e onde depois acaba, entre outros). Mas tudo isso é, dir-se-ia, precedido de outro espantoso trabalho de montagem: a selecção e “colagem” de fragmentos dos muitos textos que João Bénard da Costa deixou gravados (as suas intervenções na televisão) ou escritos (nas crónicas para o jornal ou nos artigos que redigiu para a Cinemateca). É essa selecção textual, e as suas pertinência e acuidade, que permitem ver Outros Amarão as Coisas que eu Amei como um percurso, conduzido na primeira pessoa, por uma vida e por um pensamento. E tudo se engalfinha, claro, porque em Bénard tudo puxava por tudo e tudo se transformava na mesma face – e o amor pelos filmes, pela pintura, pelas palavras, pelas pessoas, não era diferente da memória que se tinha desse amor por todas essas coisas (que “outros amarão”). Na primeira frase do filme, dita sobre um belo plano geral do mar da Arrábida, ouve-se dizer que “toda a vida é feita disto – o mundo, a morte, o amor, o desejo” e que “todo este filme é feito disto”. Bénard não se referia ao filme de Mozos, o fragmento vem duma série de programas que, nos anos 2000, fez para a RTP. Mas ao colocar a frase no princípio do seu filme, Mozos sabe bem o que faz: entregar-se a João Bénard, às suas palavras, à sua visão da vida e do cinema. E é tudo isso que passa, admiravelmente, neste belíssimo filme.
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Assim era Ruínas, o seu filme sobre um Portugal delapidado e abandonado; e assim é esta sua evocação de João Bénard da Costa, conduzida pelas palavras dele, por vezes mesmo (graças à memória arquivística) ditas por ele, como se o convertesse, por sua vez, num daqueles “protagonistas ausentes” de que Bénard tanto gostava (e tanto gostava que esse – “protagonistas ausentes” – foi o título e o mote de um célebre ciclo que organizou na Cinemateca). Outros Amarão as Coisas que eu Amei é um filme sobre João Bénard da Costa, encontrado nesse cruzamento entre a sua ausência física e a sua presença espiritual; mas é ainda mais, um filme sobre as palavras de João Bénard da Costa, autor de todo o texto que no filme se ouve ser lido. Subjectivo? Não, pelo contrário, tremendamente objectivo: é o feito maior de Mozos, centrar o filme nessa matéria, sólida e palpável (visto que está impressa e tudo), que são as palavras de João Bénard da Costa, evitando as armadilhas da memória e da evocação. É por isso que a ausência se pode transformar em presença, num pequeno milagre cinematográfico que não deixa de ser, a seu modo, uma rima para aquele grande milagre cinematográfico de que João Bénard tanto gostava, o filme de Carl Dreyer que em português se chamou, justamente, A Palavra.
Será escusado dizer que não se trata de um filme que empregue aquele modelo, corrente e didáctico, do documentário informativo e explicativo. Não há depoimentos, não há enquadramentos externos a essa matéria que está no coração do filme. Há, isso sim, um espantoso trabalho de montagem – montagem de documentos fotográficos, de imagens que se fazem “documento” (os planos no que se presume ter sido o escritório caseiro de Bénard), de excertos de filmes (do Johnny Guitar aos filmes, por exemplo de Manoel de Oliveira, em que Bénard foi actor, e que aparecem quase sempre filmados na moviola, como que a sublinhar também uma questão de “materialidade”), de lugares caros à memória de vida de João Bénard (a Arrábida, onde o filme começa e onde depois acaba, entre outros). Mas tudo isso é, dir-se-ia, precedido de outro espantoso trabalho de montagem: a selecção e “colagem” de fragmentos dos muitos textos que João Bénard da Costa deixou gravados (as suas intervenções na televisão) ou escritos (nas crónicas para o jornal ou nos artigos que redigiu para a Cinemateca). É essa selecção textual, e as suas pertinência e acuidade, que permitem ver Outros Amarão as Coisas que eu Amei como um percurso, conduzido na primeira pessoa, por uma vida e por um pensamento. E tudo se engalfinha, claro, porque em Bénard tudo puxava por tudo e tudo se transformava na mesma face – e o amor pelos filmes, pela pintura, pelas palavras, pelas pessoas, não era diferente da memória que se tinha desse amor por todas essas coisas (que “outros amarão”). Na primeira frase do filme, dita sobre um belo plano geral do mar da Arrábida, ouve-se dizer que “toda a vida é feita disto – o mundo, a morte, o amor, o desejo” e que “todo este filme é feito disto”. Bénard não se referia ao filme de Mozos, o fragmento vem duma série de programas que, nos anos 2000, fez para a RTP. Mas ao colocar a frase no princípio do seu filme, Mozos sabe bem o que faz: entregar-se a João Bénard, às suas palavras, à sua visão da vida e do cinema. E é tudo isso que passa, admiravelmente, neste belíssimo filme.