Sexualidade na deficiência: como se mudam as mentalidades?

A Internet ocupa um papel relevante entre as pessoas com diversidade funcional, uma população que desafia as convenções culturais no acto sexual, valorizando outras zonas erógenas. O que se pode fazer para mudar a aceitação da sociedade?

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A Internet assume-se, para alguma desta população, como uma “forma alternativa de contornar um sistema silenciador”, reconhece Ana Cristina Santos, que o concluiu no estudo Intimidade e Deficiência — Cidadania Sexual e Reprodutiva de Mulheres Deficientes em Portugal. Muitas das entrevistadas desta investigação encontravam em redes sociais ou sites eventuais parceiros. “Em situações de mobilidade reduzida ou de restrição imposta — no hospital, nalgum período de internamento prolongado ou por imposições familiares — a Internet era fundamental”, sublinha a investigadora.

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A Internet assume-se, para alguma desta população, como uma “forma alternativa de contornar um sistema silenciador”, reconhece Ana Cristina Santos, que o concluiu no estudo Intimidade e Deficiência — Cidadania Sexual e Reprodutiva de Mulheres Deficientes em Portugal. Muitas das entrevistadas desta investigação encontravam em redes sociais ou sites eventuais parceiros. “Em situações de mobilidade reduzida ou de restrição imposta — no hospital, nalgum período de internamento prolongado ou por imposições familiares — a Internet era fundamental”, sublinha a investigadora.

Actualmente, Lúcia Fisteus Marques está solteira, mas foi precisamente pela Internet, num “chat” de conversação, que começou a falar com um rapaz, sem qualquer tipo de limitação, com quem viria a namorar durante alguns anos. "Para testar disse logo ao rapazinho que era deficiente. Por incrível que pareça não fugiu.” Muitas conversas param a partir desse momento, por isso há quem esconda a sua incapacidade. “Não o dizem porque têm na cabeça que a outra pessoa não vai querer nada. Porque, por exemplo, se a família não o aceita, o que farão os outros?”, questiona a jovem de 29 anos com paralisia cerebral, acrescentando que se tratam de “situações que levam a um desespero e a uma fragilidade emocional grande”.

Por outro lado, na falta de contacto físico, muitos refugiam-se na Internet para viver a sua intimidade, seja para sexo virtual, pornografia ou masturbação (quando tal é possível). Foi, aliás, no universo digital que João Lomar, de 42 anos, também com paralisia cerebral, aprendeu muita coisa. Sobre sexo. Costuma ir a “chats” procurar mulheres para conversar: “Gosto de o fazer, tenho prazer naquilo.” Às vezes, as conversas aquecem; e quando assim é, masturba-se: “Não é vergonha nenhuma, é uma coisa normal.” De quando em quando diz que tem deficiência: há quem continue a conversa, há quem fuja. Certo é que nos encontros presenciais que marcou, ninguém apareceu. Está longe de ser o cenário ideal, mas… “No meu caso é bom porque não tenho mais nada.”

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A deficiência é só uma característica, diz Lúcia. Como a cor da pele ou os piercings Bruno Lisita

Um novo mapa das zonas erógenas 

Também Ana Garrett se depara e deparou com muitas referências ao meio online, quer na sua actividade como psicóloga clínica no Hospital de Vila Franca de Xira, quer na sua carreira académica enquanto investigadora do ISCTE e, antes, em 2011, enquanto bolseira de doutoramento da FCT. “Sim há muitos encontros online, mas também há muito o ‘fazer de conta’ que são o que não são. Sobretudo os jovens, infelizmente. Sentem que é a única maneira de alguém gostar deles, de alguém se interessar por eles. Porque ali ninguém os precisa de ver em pé.” É neste universo digital que se escondem muitos das pessoas com deficiência com orientações sexuais não normativas, universo a que Ana Garrett se quer dedicar numa próxima investigação. “Existem muitos, atrás de uma tela de um computador, de dia e de noite, em profundo silêncio para com o mundo exterior.” Um deles — ainda que bem loquaz — é Bruno (nome fictício).

Em 2011, no âmbito do doutoramento feito na Universidade Fernando Pessoa, Ana Garrett desenhou um modelo de reabilitação da sexualidade em pessoas com alterações sensitivas, o Mo-Re-Sex (ouvir som à esquerda). Dirigido a todas as pessoas com deficiência, este programa (em pdf), que continua a ser aplicado em universidades, hospitais e instituições particulares de segurança social, permite aos participantes ter acesso a um mapa personalizado das suas zonas erógenas, de forma a usufruírem a fundo da sua sexualidade, “desfocalizando as limitações e aproveitando as potencialidades”.  

Socializar para a diferença

Porque se há zonas do corpo que não têm sensibilidade, há outras que são hipersensíveis ("o que também pode ser extremamente incomodativo”, avisa a investigadora). “É preciso explorar tudo isto e mapear”, explica Ana Garrett. Para uns, uma carícia numa cicatriz pode ser altamente excitante. Para outros, os sentidos são um mundo a explorar. “Há quem prefira ouvir, ver. Há muitos casos em que já não há sensibilidade peniana ou vaginal, mas a simples observação [do acto] é extremamente erógena. Isto é fabuloso e temos de pegar nisto e aproveitar.” É o caso do supracitado Bruno, que sofreu uma lesão medular depois de um acidente de viação: “Eu costumo dizer que os meus genitais são as minhas orelhas e o meu pescoço (...) Não tenho o chamado orgasmo, não tenho ejaculação. No entanto, tenho uma parte que normalmente as pessoas não trabalham tão bem com ela... a minha cabeça.”

Daniela Lopes fala do outro lado da Internet

Serve o aviso para o mundo em geral: há vida sexual para além do coito. “Como as pessoas com deficiência não são capazes de fazer amor de uma forma ‘simples’ ou numa posição convencional, foram impelidas para experimentar e desfrutar de uma vida sexual mais interessante”, escrevia, já em 1996, o sociólogo Tom Shakespeare no livro “The Sexual Politics of Disability: Untold Desires”. Estas pessoas fogem à “excessiva concentração nos genitais e na penetração”, tão característica da sociedade hetero-normativa em que vivemos, conclui também Ana Cristina Santos. “Há uma obsessão do sexo penetrativo, uma lineariedade na forma como o sexo se deve processar. E estas mulheres [o centro da investigação Intimidade e Deficiência] desafiam-na. Demonstram, na forma como vivem a sua sexualidade, que estas questões são no fundo culturais.”

Os pais de adolescentes com paralisia cerebral não querem falar sobre a sua sexualidade. Até que algo acontece, conta Daniela

Como se mudam as mentalidades?

João não esconde o pessimismo. Está “cansado da teoria” porque, na prática, tudo se mantém inalterável. “Nunca nenhuma mulher ‘normal’ me pediu para tocar nela. Isto não muda, a mentalidade não muda.”

— Achas que algum dia vais ter uma relação estável?

— Com quem? — responde, demolidor.

O que é preciso fazer então para que “isto” mude? Para que a sexualidade na deficiência deixe de ser um tabu? Um dos principais obstáculos é, apontam as investigadoras, o sistema biomédico actual, que de tão concentrado na performance física se esquece de outras dimensões. "Entende-se que a sexualidade na deficiência não é uma problemática prioritária. Prioritário é que andem, falem porque isso é que dá nas vistas”, considera Daniela Lopes, terapeuta ocupacional na Associação do Porto de Paralisia Cerebral. “A reabilitação é fundamental e salva vidas”, reconhece Ana Cristina Santos, “mas não conta a história toda”. Há que mudar a visão. “Neste momento o modelo dominante da deficiência é um modelo biomédico que considera a deficiência como um problema individual”, explica a investigadora. Ou seja, a intervenção é feita ao nível de um indivíduo que “tem um problema” e que tem de “aprender a viver em sociedade”, a adaptar-se. Mas a deficiência é sim “um problema colectivo”. “Esquece-se totalmente o lado A disto: apostar numa formação social e cultural que permita a todas as pessoas valorizar a diferença”. 

Ana Garrett explica o programa Mo-Re-Sex

Ao contrário dos restantes profissionais de saúde, geralmente “muito receptivos”, os médicos, ressalva a terapeuta ocupacional Daniela Lopes, “não estão totalmente direccionados para trabalhar todas as problemáticas”. “Olhar para alguém que não comunica verbalmente e explicar como toma a pílula, que métodos contraceptivos existem, quais são as soluções que tem. Isto não é ágil e devia ser.”

Por isso, se os médicos não falam de sexo, há que pô-los a falar de sexo, exorta Ana Garrett: “Os próprios deficientes não devem ter vergonha de abordar os profissionais de saúde sobre este assunto. Não esperem que sejam eles a fazê-lo porque há muitos colegas meus que não falam sobre isso. Porque não se sentem preparados, não conseguem lidar bem com os seus próprios fantasmas, consideram-no um tabu. E porque não percebem que o padrão do ser humano engloba a sexualidade como comer e beber.”

Depois, é certo que, a partir da maioridade, “não é importante envolver a família quando se está a falar de cidadania íntima ou do direito individual de as pessoas viverem a sua sexualidade”, assegura Ana Cristina Santos. Acontece é que por cá muitas pessoas com deficiência — inclusive com incapacidade motora, o foco desta reportagem — vivem em meio familiar por diversas razões: falta de autonomia física, incapacidade económica e devido à “inexistência de um movimento de vida independente sustentado”.

Nem sempre os familiares adoptam as melhores práticas para promover uma sexualidade saudável. Porque, por exemplo, se tornam hiperprotectores por recearem abusos; ou porque lhes reconhecem uma “sexualidade invisível”. Nesses casos, poderiam ser promovidas acções de sensibilização dentro das famílias, mas também entre pessoas com deficiência e nas escolas. “É preciso vencer a utopia que existe educação sexual. Não existe. (…) Educar implica mudar alguma coisa”, critica Daniela Lopes. A existência de assistentes sexuais é um outro aspecto defendido pelas entrevistadas.

No fundo, há que “mudar mentalidades” — aquilo em que João Lomar já não parece acreditar e que Lúcia estima só acontecer daqui a uns 50 anos. “Parece um cliché — e é — mas é muito complexo e demora séculos”, reconhece Garrett. “A sexualidade tem de ser vista como um direito e uma componente saudável. E a partir daí esse direito não pode estar ameaçado pela circunstância de alguém ser ‘deficientizado’ ou não. É inegociável.”, conclui Ana Cristina Santos.

“'Deficientizado'” e não “deficiente” — eis a terminologia que a investigadora defende. Porque o que “inabilita ou desabilita as pessoas é um sistema social, cultural, que, por regra, não acolhe a diversidade como uma mais-valia”. Ou seja, é a própria sociedade que “deficientiza” as pessoas. “É”, indica, por sua vez, Ana Garrett, “olhar para as potencialidades da pessoa com deficiência em vez de estar constantemente a apontar as limitações”.  

“É só uma característica”, repete Lúcia. É esse o conselho que deixa, não aos portadores de incapacidade, mas a todas as outras pessoas. “Que comecem a olhar para a deficiência como uma característica. Como se vê a cor da pele ou os piercings. É só uma característica.”