Slavonia, o paquete inglês que naufragou com as Flores à vista

Mais de cem anos após o acidente, o Governo dos Açores criou no local um parque arqueológico subaquático, o quarto no arquipélago. Objectivo é criar uma rede para atrair ainda mais mergulhadores aos tesouros do mar açoriano.

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Diz-se que renomear navios dá azar e a história do Royal Mail Ship (RMS) Slavonia confirma-o. O navio lançado à água em 1902 foi inicialmente baptizado Yamuna e pertenceu à British Indian Steam Navigation, tendo transportado correio, carga e passageiros entre Inglaterra e Índia. Cinco meses após a viagem inaugural foi vendido à Cunard, que o remodelou e lhe mudou o nome, adoptando o topónimo de uma das regiões de onde partiam mais emigrantes europeus com destino aos EUA, a Eslavónia, na Croácia.

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Diz-se que renomear navios dá azar e a história do Royal Mail Ship (RMS) Slavonia confirma-o. O navio lançado à água em 1902 foi inicialmente baptizado Yamuna e pertenceu à British Indian Steam Navigation, tendo transportado correio, carga e passageiros entre Inglaterra e Índia. Cinco meses após a viagem inaugural foi vendido à Cunard, que o remodelou e lhe mudou o nome, adoptando o topónimo de uma das regiões de onde partiam mais emigrantes europeus com destino aos EUA, a Eslavónia, na Croácia.

“E foi assim  que, juntamente com um seu congénere, o Pannonia, o transatlântico Slavonia passou a transportar, à ida, emigrantes europeus em busca do sonho americano e à volta os passageiros endinheirados de Nova Iorque para Liverpool”, descreve o arqueólogo subaquático Alexandre Monteiro, num documento sobre a história do naufrágio ocorrido ao largo da ilha das Flores, em 1909.

No início do século XX, a Cunard Steamship Company disputava o monopólio das rotas europeias e norte-americanas com a White Star Line. Os paquetes distinguiam-se pelos nomes: todos os da White Star tinham nomes acabados em “ic” — como Britannic e Titanic — e os da Cunard terminavam em “ia”. O naufrágio do Titanic, três anos depois do Slavonia, condenou a proprietária à quase falência e em 1934 a Cunard comprou a rival. Nascia assim a Cunard White Star Line, dona do Queen Mary e dos Queen Elizabeth, que ainda hoje cruzam os oceanos.

Nevoeiro fatal
Numa das viagens do Slavonia, que viria a ser a última, o paquete partiu de Nova Iorque a 3 de Junho, uma quinta-feira, rumo a Trieste, no nordeste de Itália. Segundo Alexandre Monteiro, o cruzeiro levava 178 tripulantes e 597 passageiros, dos quais perto de cem viajavam em primeira classe. Foi destes que partiu a ideia de pedir ao comandante que fizesse um pequeno desvio na rota (estava previsto que passassem a 160 quilómetros a norte da ilha do Corvo), para que pudessem apreciar melhor as paisagens açorianas.

Estavam há seis dias em alto mar, faltavam dez para o destino. O comandante, Arthur Dunning, com três décadas de experiência (tinha pedido a reforma em Nova Iorque, antes de partir), fez-lhes a vontade: decidiu navegar pelo sul da ilha das Flores, passando a cerca de seis milhas náuticas de terra, e só depois seguir a viagem prevista.

Mas quando o navio se aproximou da ilha havia um nevoeiro cerrado e a forte corrente marítima desviou o paquete da rota. Nem o Farol das Lajes das Flores ajudou — apesar de praticamente concluído ainda lhe faltavam máquinas e a lanterna. Às 2h30 da madrugada de 10 de Junho cumpriu-se o desejo dos passageiros de ver terra mas nada pôde travar o acidente — o RMS Slavonia embateu nos rochedos da Baixa Rasa e galgou a costa do Lajedo. Com a água a invadir os porões do barco mas ainda com a popa emersa e as varandas iluminadas, o telegrafista teve tempo para fazer história: foi o primeiro a transmitir, em código Morse, sinais de SOS.

O pedido de socorro foi captado pelo paquete germânico Prinzess Irene e pelo navio Batavia, que se encontravam perto e acorreram ao local, ajudando os tripulantes a desembarcar e, no dia seguinte, a continuar a viagem. O acidente abalou a pacatez da ilha, imersa na escuridão àquelas horas da noite (a luz eléctrica só chegou a Lajes das Flores na década de 1930), mas a população fez o que pôde para ajudar ao resgate. O esforço foi reconhecido pelo Papa Pio X que, em sinal de gratidão, ofereceu um cálice de prata à Igreja Matriz.

Ao amanhecer, a água chegou às caldeiras do Slavonia e às 8h o fogo apagou-se nas fornalhas. O navio, com mais de dez mil toneladas e 160 metros de comprimento, afundou, tornando-se uma das perto de mil embarcações que naufragaram ao largo dos Açores, desde o século XVI, assinaladas na Carta Arqueológica. “O comandante Dunning abalado pelo naufrágio e pelas circunstâncias caricatas em que este tinha ocorrido, tentou suicidar-se várias vezes, no que foi impedido pelo telegrafista”, conta Alexandre Monteiro.

Memórias espalhadas
Os destroços do Slavonia repousam agora a 15 metros de profundidade. “Pouco resta de reconhecível”, descreve o arqueólogo, que já em 1999 tinha proposto a criação de reservas, naquele e noutros locais onde se registaram naufrágios, para regular o acesso e promover o turismo subaquático. Só em Julho deste ano é que o Governo Regional anunciou a criação do Parque Arqueológico Subaquático do Slavonia, oficializada com a publicação do decreto em Diário da República, nesta terça-feira.

No parque vai continuar a ser permitida a prática de mergulho amador e será proibida a pesca, a ancoragem de embarcações ou bóias, e a realização de trabalhos de investigação científica sem autorização da tutela. Além disso, a recolha de materiais apenas é possível no âmbito de trabalhos arqueológicos devidamente licenciados.

Mas o que há ainda para ver do paquete inglês? Estão lá ainda as seis caldeiras do vapor, restos dos cabeços de amarração e dos guindastes, uma âncora e pouco mais. Os objectos mais valiosos — uma mala de correio, loiças, talheres de prata, quadros ou mobílias, e até bolachas, latas de café, conservas e cobertores de lã — foram recolhidos pela população. “Muitas coisas estão ainda nas casas das pessoas e no Museu das Flores”, conta o presidente da Câmara de Lajes das Flores, Luís Maciel, explicando que por isso mesmo existe na ilha “uma certa mística” associada a este naufrágio.

A Cunard ainda tentou salvar o navio do afundamento, enviando um rebocador e mergulhadores. “Foram recuperadas mesas, cadeiras, velames, cordas e lingotes de cobre, no valor de 1800 contos [9000 euros] e óleo no valor de 24 contos [120 euros]”, lê-se no documento assinado por Alexandre Monteiro. “A carga de café, o restante cobre e três automóveis que vinham no porão foram engolidos pelo mar das Flores. Os prejuízos cifraram-se, na época, em cerca de 15 mil contos [75 mil euros].”

Com a criação do parque do Slavonia e com mais um que aguarda aprovação — para a zona onde está afundado o vapor espanhol Canarias, ao largo de Santa Maria —, o arquipélago fica com cinco parques arqueológicos subaquáticos. No ano passado foi criado um parque no local onde se afundou, em 1901, o navio francês Caroline, junto à ilha do Pico. Este juntou-se aos parques da Baía de Angra do Heroísmo (ilha Terceira), no local onde em 1878 naufragou o Lidador, e do Dori, em São Miguel.

Segundo o director regional da Cultura, Nuno Lopes, o Governo dos Açores “está a trabalhar para estabelecer um roteiro ou uma rota que é composta por cinco parques arqueológicos e diferentes [espaços de] naufrágios que são acessíveis” aos mergulhadores, promovendo assim este turismo.