O naufrágio de Ulisses
Ironicamente, que seja este drama que agora vivemos com os refugiados, a oportunidade para nos tornarmos mais humanos, mais europeus.
“Ai de mim, a que terra chego de novo?
Serão eles homens violentos, selvagens e injustos?
Ou serão dados à hospitalidade e tementes aos deuses?”
Homero, Odisseia, canto VI (tradução e adaptação de Frederico Lourenço)
A denominação de “clássico” é vulgarmente usada sem que percebamos exatamente o que a palavra significa. Diz-se clássico quando nos referimos a alguma coisa que é atemporal, como que eternamente válida, modelo que define normas; o clássico é desejado, imitado, recriado e reinterpretado.
Era neste sentido que há uns anos Italo Calvino nos interpelava: Porque ler os Clássicos? E a pergunta diz respeito a mais que uma cultura antiga, a uma literatura ou Belles Letres exteriores a nós. A validade e a necessidade de regressar e de ler os clássicos reside na radiografia de nós mesmos que fazemos a cada linha e a cada pensamento.
Talvez poucas vezes, como hoje, seja tão necessário regressar às raízes e às origens para perceber essências e delimitar as margens até onde nos queremos mover e sair do lugar de conforto.
Também poucas vezes, como hoje, me foi dado compreender o alcance de um dos mais festejados clássicos da nossa cultura, especialmente um dos seus episódios mais significativos: a chegada de Ulisses à ilha dos Feaces, sendo aí acolhido. As similitudes com os dias de hoje são gritantes.
Diz-nos a Odisseia de Homero que depois de largos anos num cativeiro na gruta de Circe, Ulisses enceta uma longa e atribulada fuga que o conduziria a casa, lançando-se nas águas do Mediterrâneo. Náufrago, como tanta gente que ontem e hoje enceta fugas nesse mar interior, Ulisses vai dar a uma praia, inconsciente, como morto. Já é o único sobrevivente do seu frágil bote, de toda uma turba que se lançou ao mar depois da terrível guerra nas praias de Tróia.
Sem o saber, qual moribundo, o príncipe de Ítaca dera à costa do reino dos Feaces. Será a filha do rei a recolher o náufrago e a indicar a Ulisses como agir para ser bem acolhido. Nausícaa, de seu nome, oferece ajuda sem nada pedir em troca.
E é aqui que se dá "Europa". Ulisses é acolhido, é alimentado, é lavado e vestido, e só depois se pergunta quem é e de onde vem. É isto a hospitalidade e o humanismo que há quase 3.000 anos marcava a narrativa de Homero na frase que coloco como epígrafe, resultado do medo do herói, e que se materializava na salvação que ele, afinal, iria encontrar pelas mãos e pelos atos de quem nem lhe perguntara o nome antes de o alimentar. É este o nosso ADN cultural.
Com o passar dos séculos, dos milénios, sempre o ato de dar alimento e guarida marcou a nossa forma de estar perante a definição de humano. Essa visão fraternal tem sido transversal a religiões e a geografias neste vasto Mediterrâneo.
Muitas mortandades temos feito, e com eficácia cada vez mais comprovada. Mas muita generosidade temos também conseguido fazer em ambientes brutalmente hostis. É verdade que nos últimos anos, fruto de um abandono absurdo dos mais básicos valores europeus, especialmente dos de fraternidade e de solidariedade, muito de pouca atenção e cuidado se tem dado ao nosso semelhante, ao nosso vizinho, ao mais desfavorecido entre os nossos concidadãos.
Mas que não seja esse o argumento para recusar abrigo e alimento a quem nos demanda em busca do que não encontra, o mínimo e básico de sobrevivência e de dignidade. Que se reencontre a identidade da partilha, da mesa, da festa, recuperando também dentro da nossa sociedade o apoio aos mais desfavorecidos.
Tal como com Ulisses, somos uma sociedade naufragada, com pouco de utopia em nós, recusando abrigo aos sem-abrigo que temos junto das nossas paredes. Mas ao contrário de Ulisses, somos também nós a praia onde damos à costa, sejamos Sírios desesperados a fugir da guerra que nós, Europa, possibilitámos e fomentámos, ou sejamos europeus de direito “burocrático” mas pouco cívico.
Ironicamente, que seja este drama que agora vivemos com os refugiados, a oportunidade que não aproveitámos com a crise financeira para nos tornarmos mais humanos, mais europeus.
Director da área de Ciência das Religiões e do Inst. de Estudos Islâmicos Al-Muhaibid da Un. Lusófona
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“Ai de mim, a que terra chego de novo?
Serão eles homens violentos, selvagens e injustos?
Ou serão dados à hospitalidade e tementes aos deuses?”
Homero, Odisseia, canto VI (tradução e adaptação de Frederico Lourenço)
A denominação de “clássico” é vulgarmente usada sem que percebamos exatamente o que a palavra significa. Diz-se clássico quando nos referimos a alguma coisa que é atemporal, como que eternamente válida, modelo que define normas; o clássico é desejado, imitado, recriado e reinterpretado.
Era neste sentido que há uns anos Italo Calvino nos interpelava: Porque ler os Clássicos? E a pergunta diz respeito a mais que uma cultura antiga, a uma literatura ou Belles Letres exteriores a nós. A validade e a necessidade de regressar e de ler os clássicos reside na radiografia de nós mesmos que fazemos a cada linha e a cada pensamento.
Talvez poucas vezes, como hoje, seja tão necessário regressar às raízes e às origens para perceber essências e delimitar as margens até onde nos queremos mover e sair do lugar de conforto.
Também poucas vezes, como hoje, me foi dado compreender o alcance de um dos mais festejados clássicos da nossa cultura, especialmente um dos seus episódios mais significativos: a chegada de Ulisses à ilha dos Feaces, sendo aí acolhido. As similitudes com os dias de hoje são gritantes.
Diz-nos a Odisseia de Homero que depois de largos anos num cativeiro na gruta de Circe, Ulisses enceta uma longa e atribulada fuga que o conduziria a casa, lançando-se nas águas do Mediterrâneo. Náufrago, como tanta gente que ontem e hoje enceta fugas nesse mar interior, Ulisses vai dar a uma praia, inconsciente, como morto. Já é o único sobrevivente do seu frágil bote, de toda uma turba que se lançou ao mar depois da terrível guerra nas praias de Tróia.
Sem o saber, qual moribundo, o príncipe de Ítaca dera à costa do reino dos Feaces. Será a filha do rei a recolher o náufrago e a indicar a Ulisses como agir para ser bem acolhido. Nausícaa, de seu nome, oferece ajuda sem nada pedir em troca.
E é aqui que se dá "Europa". Ulisses é acolhido, é alimentado, é lavado e vestido, e só depois se pergunta quem é e de onde vem. É isto a hospitalidade e o humanismo que há quase 3.000 anos marcava a narrativa de Homero na frase que coloco como epígrafe, resultado do medo do herói, e que se materializava na salvação que ele, afinal, iria encontrar pelas mãos e pelos atos de quem nem lhe perguntara o nome antes de o alimentar. É este o nosso ADN cultural.
Com o passar dos séculos, dos milénios, sempre o ato de dar alimento e guarida marcou a nossa forma de estar perante a definição de humano. Essa visão fraternal tem sido transversal a religiões e a geografias neste vasto Mediterrâneo.
Muitas mortandades temos feito, e com eficácia cada vez mais comprovada. Mas muita generosidade temos também conseguido fazer em ambientes brutalmente hostis. É verdade que nos últimos anos, fruto de um abandono absurdo dos mais básicos valores europeus, especialmente dos de fraternidade e de solidariedade, muito de pouca atenção e cuidado se tem dado ao nosso semelhante, ao nosso vizinho, ao mais desfavorecido entre os nossos concidadãos.
Mas que não seja esse o argumento para recusar abrigo e alimento a quem nos demanda em busca do que não encontra, o mínimo e básico de sobrevivência e de dignidade. Que se reencontre a identidade da partilha, da mesa, da festa, recuperando também dentro da nossa sociedade o apoio aos mais desfavorecidos.
Tal como com Ulisses, somos uma sociedade naufragada, com pouco de utopia em nós, recusando abrigo aos sem-abrigo que temos junto das nossas paredes. Mas ao contrário de Ulisses, somos também nós a praia onde damos à costa, sejamos Sírios desesperados a fugir da guerra que nós, Europa, possibilitámos e fomentámos, ou sejamos europeus de direito “burocrático” mas pouco cívico.
Ironicamente, que seja este drama que agora vivemos com os refugiados, a oportunidade que não aproveitámos com a crise financeira para nos tornarmos mais humanos, mais europeus.
Director da área de Ciência das Religiões e do Inst. de Estudos Islâmicos Al-Muhaibid da Un. Lusófona