No quarto de Santo António

Estávamos no século XII e o homem que viria a ser Santo António era apenas uma criança e chamava-se Fernando. Brincaria aqui, neste espaço que é hoje uma cripta debaixo da igreja com o seu nome?

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Há uma força extraordinária na ideia de que “foi aqui que aconteceu”. Por isso, segui várias dezenas de pessoas que entravam na igreja de Santo António, em Lisboa, e guiei-me pelos sinais que, em muitas línguas, indicam o caminho para a cripta.

Foi por aqui, por este corredor estreito, que o Papa João Paulo II passou em 1982, quando veio rezar ao local onde, supostamente, terá nascido Fernando de Bulhões, o homem que ficou conhecido como Santo António, o santo de Lisboa (e de Pádua, onde morreu). E eu, lisboeta de sempre, nunca tinha descido ao quarto de Santo António.

Que João Paulo II aqui esteve não há dúvidas. E, como ele, milhares de pessoas que, atraídas pela ideia de que “foi aqui” que Santo António nasceu, ajoelham-se em oração — tal como as senhoras espanholas que descem comigo.

O espaço é pequeno. À nossa esquerda, protegido por uma grade em ferro trabalhado, está um discreto altar com a imagem do santo com o Menino ao colo, para onde algumas pessoas conseguiram lançar moedas. Por uma pequena janela entra luz. Não é fácil o exercício de imaginar aqui um quarto e o santo, nessa altura ainda a responder pelo nome de Fernando, entretido a brincar enquanto ao lado, na cozinha, a mãe o chamava para o jantar.

Aparentemente, as espanholas devotas não se entregam aos mesmos pensamentos que eu. E, de facto, são inúteis. Não sei, sequer, como era uma casa em Lisboa no início do século XII e a verdade é que há muitas coisas que desconhecemos sobre a vida, e sobretudo os primeiros anos, de Santo António. Há até dúvidas quanto à data exacta do nascimento: a mais citada é 15 de Agosto de 1195, mas admite-se também que possa ter sido uns anos antes, em 1191.

Terá nascido, então, numa casa perto da Sé de Lisboa. O local, Igreja e Real Casa de Santo António (inicialmente apenas uma capela, cuja administração foi entregue à autarquia pelo Papa em 1433), é, desde há muito tempo, propriedade da Câmara de Lisboa e foi, entre o século XIV e o XVIII, a Casa Consistorial, onde se reunia o Senado e onde estava instalada a caixa-forte para guardar os cofres com as reservas da Câmara e da Fazenda Pública.

A igreja onde me encontro foi construída sobre esse local onde se supõe que viveria a família. Mas também sobre esta há dúvidas. Não existem documentos que comprovem que os pais fossem, como mais tarde (a partir do século XIV) se estabeleceu, Martim ou Martinho de Bulhões e Maria Teresa Taveira. Daí que, sobre o filho, a única certeza que parece existir é que tinha como primeiro nome Fernando.

O que é curioso é a descrição física do santo, que leio num dos textos disponíveis no Museu de Santo António, ao lado da igreja. Diz-se aí que, segundo as primeiras descrições feitas para o processo de canonização (que ocorreu muito rapidamente, um ano após a sua morte, em Pádua, com apenas 36 anos), seria “de baixa estatura, pele escura e corpulento”.

Muito diferente, portanto, da imagem de um homem de rosto imberbe, de menino, e feições delicadas que surge nas estátuas e nas outras representações que me rodeiam nas salas do museu (incluindo as que decoram embalagens de farinha, de bolachas, notas de 20 escudos, etc.).

Curiosamente, em 2014, investigadores ligados ao Museu Antropológico da Universidade de Pádua tentaram reconstituir o que seria o rosto de Santo António a partir do crânio, que foi preservado. O resultado é um homem de rosto simpático, mas de feições mais largas e rudes e, sobretudo, com barba rija e sobrancelhas fortes.

Mas acredito que mesmo que agora se passasse a usar esta imagem, mais terrena e mais latina, isso não afectaria em nada a sua imensa popularidade. É difícil encontrar um santo que seja tratado com tanta alegria e familiaridade como este. E é curioso, porque se lermos o que se sabe da sua vida percebemos que era, acima de tudo, um Doutor da Igreja, estudioso, excepcionalmente culto e um cativante orador. O que ficou, contudo, foi um santo casamenteiro e brincalhão, que quebra as bilhas às raparigas e ao qual se chega até a roubar o Menino quando não faz o que lhe pedimos.

Pouco importa, por isso, se esta cripta está de facto no local onde foi o quarto de Santo António. Está porque queremos que esteja — e, afinal, foram os muitos “5 milreizinhos” recolhidos nos tronos do santo que ajudaram a reerguer esta igreja depois do terramoto de 1755, quando tudo ruiu e restaram apenas duas coisas: o altar-mor e a imagem de Santo António.