Eles desenham os filmes e jogos que devoramos mas nós não sabemos

As suas indústrias são milionárias, a sua força é planetária. Os grandes nomes que criam, nos bastidores, as figuras ou ambientes de alguns dos filmes e jogos mais vistos e vendidos do mundo vieram a Tróia.

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MIguel Madeira

Éramos só dois num sofá e de repente estávamos no centro de uma multidão. Iain McCaig é um flautista de Hamelin das artes visuais e do cinema, um ilustrador e concept artist com dedo em alguns dos maiores projectos de Hollywood das últimas décadas: ele fala num recanto nas traseiras do centro de congressos de Tróia e eles não param de chegar, atraídos pela melodia das suas histórias e pelo encantamento dos seus conselhos. Dezenas de jovens artistas cercam a entrevista em curso para logo a seguir caírem sobre este ídolo dos bastidores e falarem com ele sobre os seus trabalhos. Duas horas depois, ele ainda lá estava, a sós com a sua multidão. Foi um pequeno acontecimento.

A distância entre mestres conferencistas e os artistas que os vieram ouvir nas palestras, demonstrações ao vivo ou workshops, é porosa no Trojan Horse was an Unicorn (THU). “Informal” é uma das palavras que vem à cabeça e se uma nuvem houvesse para condensar as palavras e os títulos que pairam sobre o THU, ela pingaria “artistas”, “digital”, “jogos”, “cinema”, “trabalho”. E teria as cores dos currículos que povoaram Tróia na terceira semana de Setembro — Guardiões da Galáxia, Os Vingadores, Pixar, Disney, Guerra das Estrelas, o jogo Magic: The Gathering — ou das T-shirts sortidas de Guerra dos Tronos, dos tablets, lápis e estiradores dos jovens artistas.

Os cerca de 800 participantes do evento, que vieram de todo o mundo mas sobretudo da Alemanha, EUA, Polónia e Inglaterra, passam cinco dias a ouvir, a desenhar, a esculpir ou a apresentar e discutir projectos com artistas da dimensão e currículo de McCaig, que desenhou desde uma capa de um álbum dos Jethro Tull a um dos vilões mais reconhecíveis de Guerra das Estrelas — Darth Maul — e a mulher de um dos maiores vilões do cinema, Padme Amidala. Trabalhou com James Cameron, Coppola ou Spielberg.

Iain McCaig, que dá então por si numa longa e imprevista sessão de análise de portfólios e dicas de aprimoramento do traço pessoal num átrio anónimo, não tem o luxo do apelido — de ser conhecido para o grande público sem mais palavras, como um Spielberg ou um Scorsese. Mas é uma superestrela na sua galáxia de artistas visuais, mais ou menos digitais, mais ligados aos jogos ou ao cinema, à ilustração. Ilustrou livros, expôs em grandes museus, fez a arte conceptual na base dos ambientes de blockbusters. Ao THU, a esta espécie de festival de fim de Verão para as artes e efeitos visuais, vêm os que desenham o cinema e os jogos que todos vêem, mas cujo contributo a massa dos espectadores e jogadores não conhece.

Pedimos a McCaig para nos deixar entrar no seu método de trabalho. “Nunca há uma página em branco”, frisa, com o discurso simultaneamente introspectivo e pedagógico de um artista que há muito dá aulas. “Normalmente sou chamado para os projectos de outras pessoas antes de haver sequer um guião ou algo remotamente ligado à história. Tudo o que há é um conceito ou uma ideia.” Dá-nos como exemplo o seu trabalho mais recente, um filme da Disney que se estreia em 2016 e que retoma as aventuras de um certo menino perdido na selva. O realizador “Jon Favreau disse: ‘Vamos fazer de novo O Livro da Selva.’ E eu respondi: ‘Iupi, foi o primeiro filme que vi no cinema. Vamos a isso’. E ele disse: ‘Boa. Ainda não temos um guião.’” E assim pode começar o trabalho de um concept artist — “mergulhamos e oferecemos coisas que ajudam quem está a escrever a história a moldá-la. Volto ao [autor do livro original, Rudyard] Kipling, e ao filme da Disney [de 1967], e releio, e revejo, e vivo naquele mundo, torno-me no Mogli outra vez”. Para pintar, “lembro-me de quão maravilhoso o urso Balu pode ser — e tento imaginar, se ele não fosse uma personagem animada, mas sim real, como seria Balu? Desenhamos as coisas a partir do interior. Balu pode ser um urso qualquer. É o espírito do Balu, a centelha no seu olho” que importa, enuncia, para se lançar numa mímica de braços e pernas desajeitados para pantomimar o urso bonacheirão. E se já há um guião, que seja ele o ponto de partida para o que vai pintar. “Esse é o processo: entrar na história, vivê-la, respirá-la, transformarmo-nos na personagem e então… simplesmente desenhar. Desenhar como sonhamos.”

Os convidados do THU, uma organização portuguesa que este ano custou cerca de 600 mil euros a montar, são autores cujos trabalhos se tornaram vocábulos visuais dessa língua comum, desse esperanto planetário que é a cultura popular. Shane Mahan, que está no piso de cima do centro de congressos a esculpir um busto do monstro de Frankenstein com o emblemático rosto de Boris Karloff, tem uma carreira dessas. Desenhou o rosto metálico do Exterminador Implacável, criou atmosferas de filmes como Big Fish de Tim Burton, construiu com as mãos o T-Rex de Parque Jurássico. Já Craig Mullins, o homem que dignificou a expressão “pintura digital”, como comentaram os seus espectadores nas duas palestras que deu em Tróia, foi responsável pela compra de mais de um terço dos bilhetes, que custam entre 400 e 500 euros, para o THU. Pintou as paisagens digitais do terceiro Matrix, de Forrest Gump ou de jogos como Halo e Final Fantasy.

“Isto? É Natal”, diz Iain McCaig à Revista 2 no final da tal entrevista que acabou com plateia, apontando para os rostos expectantes que o rodeiam. “Cada um deles é um presente que tenho a alegria de abrir. Eles acham que me estão a pedir conselhos e em vez disso eu estou a obter histórias maravilhosas, partilham comigo peças de arte incríveis. Saio daqui carregado [de energia], mal posso esperar para desenhar. É difícil dormir à noite porque chego ao quarto tão entusiasmado”, exclama, generoso nas palavras e nos gestos, lançando braços compridos para todo o lado. “A arte é um evento colaborativo.”

O THU ocupa o centro de congressos e o centro de espectáculos de Tróia, com extensões para o hotel vizinho onde se servem pizzas com os nomes dos artistas mais conhecidos — come-se uma Zimmermann ao lado do artista francês Loic Zimmermann que trabalhou nos efeitos visuais ou no aspecto das personagens da Marvel em Os Vingadores: Era de Ultron ou em Harry Potter e o Príncipe Misterioso, além de ter sido o concept artist de True Grit — Indomável, dos irmãos Coen, ou de O Livro de Eli.

Como numa galeria, em que as paredes e o ambiente não falam e só a arte tem a palavra, os edifícios brancos e cinzentos de Tróia viram as suas salas assépticas encher-se de talentos na terceira semana de Setembro. Há sempre alguém, algures, a desenhar, num estirador portátil e lápis de carvão a roçagar a folha, ou de tablet e caneta digital a deslizar no ecrã. Ao lado de uma cerveja ou num intervalo, folheiam-se portfólios. “O que é que estás a fazer actualmente?”; “Estou só como freelance”, ouve-se à passagem por grupos de cabeças inclinadas sobre páginas desenhadas.

O primeiro dia foi dedicado em grande parte ao recrutamento, com uma sigilosa Disney presente, que não quis falar sobre os resultados da sua prospecção, e com outras empresas de jogos ou efeitos visuais à procura de novos talentos em Tróia. Houve dezenas de contactos feitos, há trabalhos em perspectiva. A média de idades dos participantes, este ano, é de 29 anos, sempre a subir desde os 21 anos da primeira edição e os 25 de 2014. Este ano eram sobretudo “3D artists, concept artists e animadores”, explica o fundador e produtor do THU, o omnipresente André Lourenço, que chama os espectadores para mais uma conferência, apresenta outra, dá entrevistas ou recebe high fives de participantes que lhe agradecem pelo evento.

Nesta edição “não há artistas de efeitos visuais, desapareceram” apesar de haver mestres premiados na área como Shane Mahan — o perfil dos participantes intriga o organizador. A cada ano o público do THU vem “tornar Tróia um bocadinho mais estranha”, brinca o belga Dimitri Devos.

Devos tem 26 anos e descreve-se como “character artist freelance” — desenha personagens para jogos. Veio em 2014 e pouco depois começou a trabalhar na área. “Deixei de jogar os jogos porque queria fazer os jogos. Era viciado em World of Warcraft. ‘Sabem que mais? Não lhes vou pagar mais e vou fazer artwork para que eles tenham de me pagar’.”

Para ele, um dos pontos altos desta edição foi estar à conversa exactamente com Mahan enquanto ele esculpia o seu monstro em barro na Galeria. “Sempre adorei monstros do cinema. Via mais os behind the scenes dos filmes do que os filmes”, diz Devos. O artista de efeitos especiais conta como se tinha montado no T-Rex de Parque Jurássico no final da rodagem do filme de 1993, mas só depois de vencido o medo inicial. “Quando o vi a funcionar pela primeira vez, foi aterrorizante. Os teus sentidos só dizem ‘Foge!’ Eu sei que é falso, fui eu que o fiz. Mas mesmo assim...”, sussurrava Mahan, risonho, na tarde de quinta-feira na sala onde os artistas trabalhavam ao vivo.

Durante todo o dia e grande parte das noites há actividades THU — há modelos a posar para o pintor Jeremy Mann e para a ilustradora Karla Ortiz, Shane Mahan esculpe; noutras salas, há três conferências em simultâneo que começam a cada hora e meia com nomes como Robh Ruppel, o animador de filmes (Mulan, Os Robinsons) e jogos (desenhou mundos para Ravenloft ou Planescape) ou com o rock ’n’ roll de Alex Alvarez, que desenhou criaturas para Prometheus, de Riddley Scott, e fundou a importantíssima escola de efeitos visuais Gnomon. À noite há “art battles” com equipas lideradas por alguns dos “cavaleiros” — os conferencistas — e trocam-se “histórias de guerra” das trincheiras da indústria.

Esta é decididamente uma conferência do fim dos créditos dos filmes e dos videojogos. É um encontro de pessoas cujas cerimónias de prémios decorrem dias antes das grandes cerimónias de prémios — são os nomeados ou vencedores de Óscares ou Emmy (para os jogos há, entre outros, os DICE, os “óscares dos jogos”) das chamadas categorias técnicas.

Scott Ross conhece bem esses palcos. É um dos mais importantes e respeitados nomes da produção e dos efeitos visuais em Hollywood das últimas décadas. Com James Cameron e um dos pioneiros dos efeitos visuais, Stan Winston, fundou a Digital Domain, uma das maiores produtoras digitais de cinema e publicidade que fez os efeitos visuais premiados do segundo filme mais visto de sempre, Titanic. Geriu a Industrial Light and Magic de George Lucas e hoje é o embaixador do THU, “o segundo rosto do evento”, segundo André Lourenço, aquele cujos contactos trazem as estrelas a Tróia.

“Estava numa demanda, nos últimos cinco anos, de tentar sensibilizar [o sector] para o que a indústria dos efeitos visuais precisava de fazer para ser sustentável”, explica à Revista 2. Por “já não estar a trabalhar na indústria, já podia dizer o que queria. Ocupei a posição de porta-voz das coisas que não podem ser ditas”, postula o norte-americano. Foi contactado por André Lourenço antes da primeira edição do cavalo de Tróia que afinal é um unicórnio numa altura em que este trabalhava no projecto com mais dois sócios e com um orçamento de “100 e poucos mil euros”, lembra-se o português. Lourenço, cujo percurso passa por marcos confessos como “aos 27 anos já tinha falido duas empresas” de design e branding e “fui o mais jovem dirigente da I Liga” no seu amado Vitória de Setúbal, queria “perceber como é que se criava uma marca mundial”. Tinha o gosto pela área e com dois sócios criou o THU, através da empresa Yellow Mammoth, que gere a marca — em breve “será constituída uma empresa sem fins lucrativos” porque “todo o dinheiro que entra no evento fica no evento”. Vive o terceiro e último ano de apoio do QREN, parte do seu orçamento vem da vendas de bilhetes, de patrocínios estrangeiros ligados sobretudo à tecnologia e de muito pouca ajuda portuguesa, queixam-se Lourenço e Ross. Um ano tenta pagar o seguinte e em 2015 ainda não era certo se cumpriria o grande objectivo — ficar a zeros.

“Portugal, acorda! Vão perder este evento, que em três anos se tornou o número um do mundo”, diz Ross sobre os planos de passar o THU para outro país — qual ainda não revelam, apesar de terem já “propostas interessantes”. As autarquias e o Turismo não têm grande abertura e dão apoios que a organização considera irrisórios. “Em Portugal há falta de visão”, diz André Lourenço, queixando-se da falta de qualidade das escolas da área, dos apoios públicos ao cinema que vão para “as pessoas erradas”, da perda do potencial que poderia associar o país a uma indústria tão valiosa.

Até 2017, o sector do entretenimento e dos media valerá 2,1 biliões de dólares, segundo a consultora PricewaterhouseCoopers. Este ano, o sector mundial dos jogos valerá 91,95 mil milhões de dólares, engrossados pelo factor smart phones — a revista Fortune escrevia em Janeiro, citando a consultora Newzoo, especializada nesta área, que até ao final de 2015 as receitas geradas pelos jogos para telemóvel (os números previstos rondam os 30,3 mil milhões de dólares em todo o mundo) vão ultrapassar o dinheiro ganho com jogos de consola. Os seus principais consumidores estão na Ásia, 830 milhões, e na Europa, Médio Oriente e África, onde moram cerca de 570 milhões de jogadores.

E no entanto, numa indústria em expansão, “há problemas”, diz Scott Ross. Os seus calções e casaco descontraído laranja no “paraíso” que é Tróia não o afastam deles. Não quer desencorajar “cerca de 80% das pessoas aqui” — “novatos, não queremos esmagar a sua esperança”. Mas eles são os primeiros a falar nisso. O THU também está a servir de caixa de ressonância das preocupações dos artistas.

Na conferência do artista digital Craig Mullins, numa manhã de sexta-feira com o estuário do Sado a cintilar lá fora, lá estavam eles, mais homens que mulheres, a perguntar ou a desabafar. “Como se evita queimar o fusível?”; “trabalhamos tantas horas, é difícil não ficar desencorajado”; “não há procura em Portugal, como se pode mudar isso?”.

Scott Ross confirma, e dispara: “Há uma série de homens e mulheres que criam arte e imagética fantástica, trabalham muitas, muitas horas, não lhes pagam o suficiente, não são reconhecidos, Hollywood e a indústria do cinema trata-os como cidadãos de segunda, os seus créditos vêm no fim dos filmes, fazem troça deles nos Óscares. Simplesmente não são levados tão a sério como os designers de produção, os montadores, os directores de fotografia ou os actores.” Explicações? “Em parte é porque é algo relativamente novo e outra parte é que é uma actividade muito técnica. E é difícil para os poderes instituídos perceberem o que eles fazem” — o que pode em parte explicar o relativo obscurantismo público em torno do THU e dos seus convidados estelares nestes seus três anos, que só se dissipou parcialmente nesta edição, em que o evento ameaça e garante estar decidido a deixar Portugal. Mas, ressalva Ross, “se olharmos para os 20 maiores filmes de todos os tempos, todos são filmes de efeitos visuais”.

Tudo acontece numa nova paisagem em que, como diz Iain McCaig rodeado dos seus aprendizes de feiticeiro, “posso pegar nestas pessoas e fazemos um filme tão bom como qualquer outro, com efeitos especiais que facilmente serão como os de Guerra das Estrelas, e com coisas que compramos na loja da esquina”. Os meios para contar histórias democratizaram-se, “há cada vez mais pessoas a aprender sem ter de passar pelo sistema”, acrescenta McCaig, e, como completa Mullins na sua conferência, “antes tínhamos de perceber de computadores e de ter 10 mil dólares para ter memória RAM. Agora não há barreiras para fazer arte digital, toda a gente tem acesso ao software e ao hardware”. O mercado “está extremamente lotado” e isso fez cair o valor do trabalho — “os preços estão provavelmente a um terço do que estavam no mundo freelance em 2005”.

Ross acrescenta à receita a falta de “perspectiva financeira das pessoas que são donas das empresas — não fazem dinheiro. É a coisa mais doida que Sandra Bullock tenha ganho 68 milhões de dólares com Gravidade e que as pessoas que fizeram 85% do filme tenham perdido dinheiro”. Ou que, um exemplo amplamente citado por jovens e veteranos no evento, a empresa de efeitos visuais Rhythm & Hues tenha recebido um Óscar em 2013 pelo seu trabalho de luxo em A Vida de Pi, de Ang Lee, duas semanas depois de ter falido.

Eventos como este “ajudam”, diz o milionário norte-americano, a perceber o valor destas artes, mas também o seu estado. Craig Mullins sentiu da sua plateia de colegas que “estão a ser-lhes pedidas tarefas cada vez mais pequenas. Que sejam engrenagens mais pequenas numa máquina maior”. Agora, “os créditos no final de um filme duram 20 minutos — há milhares e milhares de pessoas [a trabalhar]. O público é bastante sofisticado e exige-o” — os filmes, séries ou jogos “já não se safam com 3D baratos”. Tem-se sempre de superar o que foi feito antes e cria-se um “sistema de obsolescência”, diz, e uma especialização microscópica para o servir, menos recompensadora para os artistas. “A pipeline digital tornou-se muito parecida com a pipeline industrial.” Ainda assim, o entusiasmo de uma ovação de pé despediu-se do californiano.

O rosto de Boris Karloff está rodeado de bolinhas de barro. Passaram-se quase 24 horas desde a nossa última visita ao cabelo loiro de Shane Mahan e ao seu monstro de Frankenstein. Esculpe à entrada da Galeria, onde mais à frente uma modelo posa nua, adornada apenas por correias de pele preta. Do lado oposto da sala, Kim Jung Gi continua a desenhar um astronauta que se desfaz em voo. O sul-coreano de traço detalhadíssimo é um outro gerador de frenesim no THU.

Na véspera, os fãs esperaram longamente numa fila no átrio por autógrafos especiais — na compra do seu livro, tinham direito a um desenho único, feito no momento, a troco de 30 euros. Na recepção do centro de congressos nasceram gueixas turquesa e outras figuras mágicas. Na Galeria, oferece um desses livros ilustrados a Jeremy Mann, mas, surpresa, é o próprio pintor de São Francisco que está retratado no desenho-autógrafo. Não partilham uma língua que não seja a do desenho, mas Mann acrescentou-lhe a dos gestos para agradecer. Com uma meia-de-leite na mão, Mann ajoelha-se para contemplar o presente.

As pessoas que por ali circulam vão mudando, mas Shane Mahan vê uma coisa em comum nelas — está “espantado pelo facto de alguns dos artistas mais jovens nunca terem tocado em barro, ou esculpido. Acho que é problemático”. Uma questão geracional, sim, diz o artista que toda vida trabalhou com o tacto e que acha a escultura digital “agradável”, mas sem “satisfação sensorial”. Conversamos sobre os filmes que acabou de terminar (O Livro da Selva, X-Men: Apocalypse) e sobre uma carreira em que criou o rosto do Penguin de Danny DeVito para Batman Regressa (1992), coordenou os efeitos das várias criaturas de Aliens (1986), trabalhou no quarto Indiana Jones (2008) ou no fato do Homem de Ferro de Robert Downey Jr. “Tem tudo sido colectivamente divertido.”  Mas o mais importante é a história, diz: “se é interessante, é mais excitante trabalhar nos efeitos. São oito meses da nossa vida a viver essa história e quando os filmes acabam estamos [meio perdidos]… ah, nem toda a gente é um vampiro’”, mimetiza, rindo-se.

Reencontramos Julia Metzger, a jovem artista de videojogos alemã que fora a primeira a chegar junto de Iain McCaig para o longo fim de tarde de conversas com “um dos artistas mais famosos do mundo”. Tinha-se sentado quando ainda só havia uma entrevista a decorrer e, horas depois, já estava descalça em cima de um sofá para espreitar o que dizia Iain McCaig sobre o poder da história — a sua palestra oficial no THU foi sobre “O sentido da vida”, que para ele, repetiu a Metzger e aos seus colegas, é cada um de nós — e a nossa história. “A ferramenta para comunicar com o mundo é a história. É a nossa ligação ao resto da humanidade.”

A loira alemã de vestido florido não tem dúvidas: poder falar (e ouvir) com McCaig “foi uma das coisas mais espantosas que aconteceu” neste seu segundo ano de THU. “No ano passado tive muito feedback técnico e este ano muito mais ao nível pessoal, como levar a nossa personalidade para as imagens, como encontrar o que nos torna únicos. É uma das minhas preocupações, como encontrar a minha voz na arte. Estou muito mais próxima agora das respostas.”

Os participantes tendem a voltar porque é um “evento diferente, só focado na arte e criatividade”, como diz o alemão Sven Liebling, director criativo da empresa de jogos Social Point, que veio recrutar e está convencido de que “poderia contratar toda a gente” pelo talento que observou. Mas “não sei se não paro um ano para ver as várias propostas em cima da mesa”, diz André Lourenço sobre a saída do THU de Portugal e sobre a “estrutura muito grande” que tem o evento. É definitiva, a saída? “Nunca digo nunca, mas é muito difícil sem apoio nem reconhecimento.”

Talvez no seu último ano em Tróia, o público do THU é decididamente um misto de fã e de profissional. Karla Ortiz autografa as cartas do jogo Magic que desenhou, há gritos de felicidade juvenil quando Paul Briggs, artista e coordenador da Disney (Frozen, Big Hero 6), mostra de surpresa um excerto inédito de Zootrópolis, o aguardado filme de animação que se estreia em Março de 2016, e há cenas como a que a ilustradora Patrícia Furtado, de 38 anos, nos descreve: “A live demo do Kim Jung Gi parecia uma igreja, tudo calado a observá-lo a desenhar. Foi daqueles momentos que nos transcendem um bocadinho, quase comoventes”, diz uma das profissionais que perfaz os 13% de portugueses no evento.

De Tróia leva, como os outros jovens artistas, uma cabeça a fervilhar. Olhos límpidos, corações cheios que não podem perder a oportunidade de estar com membros “da tribo”, como descreve a ilustradora de livros infantis. “Não condizemos com as pessoas com trabalhos normais das 9h às 17h. Há pessoas que jogam e falam sobre os jogos mas raramente há pessoas interessadas em como os jogos ou os filmes são feitos e aqui pode falar-se disso horas a fio”, acrescenta Dimitri.

O belga conhece bem os empregos convencionais e o seu mundo sem a arte. “Apanhava lixo num carro do lixo, fui repositor numa loja, trabalhei numa fábrica, entregava comida congelada. Comecei a desenhar há quatro anos porque nunca tinha percebido que se podia fazer isto como um emprego de facto.” Agora assina como Dimi Devos e é um artista. Quando viu pela primeira vez uma personagem que criou para um jogo (a mais conhecida é um guerreiro alado em League of Legends) ser animada, foi “como ser miúdo e ver um espectáculo de marionetas pela primeira vez, mas muito mais poderoso. Tenho 26 anos e se alguma coisa nos consegue fazer isso… é a coisa mais espantosa de sempre”.
 

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A ilustração India, de Craig Mullins
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Shane Mahan a esculpir o monstro de Frankenstein. Ficou espantado por alguns dos artistas mais jovens nunca terem tocado em barro. "Acho que é problemático"
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Shane Mahan desenhou o rosto metálico do Exterminador Implacável, criou atmosferas de filmes como Big Fish de Tim Burton, construiu com as mãos o T-Rex de Parque Jurássico
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Karla Ortiz pinta ao vivo no THU, onde o público discute arte, trabalho e desenha um pouco por toda a parte