Uma breve história da morte
A Mala Voadora acredita que é possível criar mesmo a partir da ideia de fim. Festival, o novo espectáculo da companhia, é o teatro a meter-se no buraco da ficção científica.
Por muito especulativa que pareça, esta conversa tem uma base científica, garante a Mala Voadora. Na sua mais recente criação, que se estreia este sábado na Fábrica ASA, em Guimarães, e depois segue para o Centro Cultural de Belém, em Lisboa (2 a 8 de Outubro), a companhia parte da obra de um neurocientista norte-americano para uma reflexão sobre o que acontece depois do fim. É uma breve história da morte – ou daquilo que a vida pode ser depois dela.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Por muito especulativa que pareça, esta conversa tem uma base científica, garante a Mala Voadora. Na sua mais recente criação, que se estreia este sábado na Fábrica ASA, em Guimarães, e depois segue para o Centro Cultural de Belém, em Lisboa (2 a 8 de Outubro), a companhia parte da obra de um neurocientista norte-americano para uma reflexão sobre o que acontece depois do fim. É uma breve história da morte – ou daquilo que a vida pode ser depois dela.
A peça foi escrita pelo director da Mala Voadora, Jorge Andrade, a partir de Sum (do latim Cogito ergo sum, a frase mil vezes citada de René Descartes), um livro lançado em 2009 por David Eagleman. A obra original é composta por 40 contos sobre a vida depois da morte, entre os quais Uma breve história dos interruptores da morte, publicada pela revista científica Nature. Nessa e nas outras pequenas histórias de Sum, o escritor-cientista especula sobre possibilidades de prolongar a vida depois da morte, partindo de investigações que estão realmente em curso um pouco por todo o mundo, como a clonagem ou a hipótese de digitalizar a informação contida num cérebro.
O livro de Eagleman chegou às mãos do director da Mala Voadora no ano passado, em Inglaterra, durante a fase inicial de criação de The Paradise Project (co-produção com a companhia britânica Third Angel, uma espécie de alma-gémea da companhia de Jorge Andrade e José Capela). “O que me cativou foi a ideia de que, mesmo a partir da morte, do fim, consegue-se especular e criar”, explica. O espectáculo é, por isso, “uma espécie de festival de ideias” sobre a morte.
Jorge Andrade assume também que a entrada num universo de ficção-científica lhe permitiu introduzir um contraste entre as possibilidades da técnica e a ideia de Deus, que, enquanto crente não-praticante, tinha também interesse em problematizar. “Isto passa-se numa altura hipotética em que Deus morreu, os homens esqueceram-se dele, e agora está para ali, como uma chávena”, explica. Um tempo em que, quanto mais o homem domina a criação, mais se afasta da ideia de um criador.
Brainstorming
Festival encerra uma trilogia sobre a ideia de paraíso que a companhia inaugurou, em 2013, com Paraíso 1, e que prosseguiu em The Paradise Project (2014). Porém, desta feita, o paraíso que aqui se debate é aquele que poderemos eventualmente encontrar depois da morte. Não corresponde exactamente à ideia de Céu da religião católica, mas a um espaço onde haverá uma vida após a vida. As possibilidades são ficcionadas, mas parecem emergir de uma base científica. De resto, a nova produção da companhia abre a porta para o espectáculo seguinte, que está já a ser preparado, em que a ideia de ficção-científica estará ainda mais presente: a Mala Voadora quer debruçar-se agora sobre os universos paralelos.
Mas como se transpõe um universo de ficção-científica para o teatro? O cinema colonizou o imaginário colectivo com uma ideia de ficção-científica assente em recursos, sobretudo tecnológicos, a que o teatro não consegue aceder. “Metemo-nos num buraco”, começa por ironizar Jorge Andrade. Mas a resposta não está muito longe daquilo que o teatro sempre faz: “Temos de desenvolver uma linguagem que comunique com o público essa especulação sobre o futuro. Essa ideia não pode passar por recursos que são próprios do cinema. Portanto, é o texto que nos vai dar essa possibilidade."
O espectáculo que este sábado encerra o programa de comemorações do décimo aniversário do Centro Cultural Vila Flor constrói-se à volta de um dispositivo que propõe a morte como tema de um brainstorm numa empresa. Quatro funcionários discutem a viabilidade de transformar a vida depois da morte num negócio, mas a discussão rapidamente foge do campo corporativo para se fixar nas especulações filosóficas sobre o que pode acontecer depois de morrermos. Por mais que tentem escapar da ideia da morte, acabam sempre absorvidos por ela.
Apesar de a morte ser um tema inescapável, o texto assume, não raras vezes, um tom humorístico, sarcástico. Essa intenção tem, aliás, continuidade na cenografia de José Capela, que remete para o mundo corporativo mas com um toque irónico evidente. Há computadores, secretárias e cadeiras reais, mas é um telão a ocupar o espaço posterior da cena, como que a lembrar que tudo ali não passa de uma fachada. O ambiente é algo kitsch, inspirado nos catálogos de lojas de móveis, com os preços pendurados em todos os objectos em cena a acentuarem essa ideia: “Está tudo à venda. Nós já vendemos uma vida depois da morte, porque já não há mais nada para vender."