A racionalidade económica e o problema dos refugiados
Usar a racionalidade económica para o problema dos refugiados tem de ser convincente, não apenas na aparência da ideia, mas na sua substância.
No preâmbulo da Convenção de Genebra de 1951 há uma referência explícita àqueles que “receando, com razão serem perseguidos em virtude da sua raça, religião, nacionalidade”. Os critérios económicos estão naturalmente excluídos, pois a ideia é permitir o acolhimento de pessoas por razões humanitárias independentemente do seu valor económico, empresarial ou demográfico. Para os Estados signatários da Convenção, isso implica uma atitude não discriminatória face à nacionalidade, à etnia, à religião, etc., recebendo os refugiados enquanto persistirem as razões do asilo. Se para o Estado que efectuam o acolhimento, individual ou de pequenos grupos — o que era a ideia original subjacente a este regime de protecção internacional —, o problema dos custos não é relevante, já para fluxos de massa este adquire outros contornos. Seja por razões financeiras, de segurança, culturais, de preconceitos, ou outras, constata-se hoje uma resistência significativa de vários Estados — e de parte da população, especialmente no Centro e Leste da Europa —, a receber números de refugiados com alguma dimensão no seu território.
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No preâmbulo da Convenção de Genebra de 1951 há uma referência explícita àqueles que “receando, com razão serem perseguidos em virtude da sua raça, religião, nacionalidade”. Os critérios económicos estão naturalmente excluídos, pois a ideia é permitir o acolhimento de pessoas por razões humanitárias independentemente do seu valor económico, empresarial ou demográfico. Para os Estados signatários da Convenção, isso implica uma atitude não discriminatória face à nacionalidade, à etnia, à religião, etc., recebendo os refugiados enquanto persistirem as razões do asilo. Se para o Estado que efectuam o acolhimento, individual ou de pequenos grupos — o que era a ideia original subjacente a este regime de protecção internacional —, o problema dos custos não é relevante, já para fluxos de massa este adquire outros contornos. Seja por razões financeiras, de segurança, culturais, de preconceitos, ou outras, constata-se hoje uma resistência significativa de vários Estados — e de parte da população, especialmente no Centro e Leste da Europa —, a receber números de refugiados com alguma dimensão no seu território.
A reunião extraordinária do Conselho da União Europeia de 22/09/2015 mostrou bem as divisões na aprovação de um sistema obrigatório para recolocação de 120.000 refugiados. A decisão enfrentou a oposição frontal da Hungria, República Checa, Roménia e Eslováquia e resistências, em graus variados, de outros Estados-membros. (Ver BBC, 22/09/2015 “Migrant crisis: Opponents furious over new EU quotas”). De forma algo inédita, foram feitas declarações públicas de líderes europeus sugerindo o não acatamento dessa decisão do Conselho: o PM da Eslováquia disse “preferir romper com a medida do que aceitar o diktat da maioria”, numa alusão ao papel da Alemanha nessa imposição. A Europa do ressentimento criada pela crise do Euro, alastra agora com a crise dos refugiados.
2. Em paralelo com estas profundas divisões e antagonismos políticos, várias vozes têm procurado dar uma racionalidade económica e demográfica ao problema dos refugiados. O seu intuito é demonstrar as vantagens económicas desse acolhimento aos europeus renitentes. Vejamos alguns exemplos recentes e os seus argumentos concretos. O vice-governador do BCE, Vítor Constâncio, numa entrevista divulgada pela Reuters, afirmou existir um “problema grave porque durante anos a Europa tem cometido uma espécie de suicídio demográfico colectivo”. Fez também notar que “para alterar a tendência demográfica, promover os nascimentos não é suficiente. Tem de ser feito através da imigração. Se não for, estamos a criar uma grande dificuldade ao crescimento e ao Estado social das futuras gerações”, acrescentou este. (in Diário Económico 16/09/2015).
O mesmo assunto foi objecto de análise pelo economista Luís Aguiar-Conraria. Em entrevista ao semanário Sol, e respondendo à pergunta se o regresso dos jovens que emigraram seria suficiente para a economia crescer mais, afirmou o seguinte: “Não. Mesmo que todos regressem, continuaremos a ter poucos jovens. [...] Temos de ter mais imigração. De um ponto de vista estritamente egoísta, todos estes refugiados a baterem-nos à porta são uma excelente oportunidade. Portugal teria muito mais a ganhar do que a Alemanha com a vinda de alguns milhares de refugiados. Mas não, a Alemanha é que vai aproveitar a oportunidade. É dos casos em que sermos solidários é compatível com sermos egoístas. É uma pena se não aproveitamos” (in Sol, 18/09/2015, pp. 66-67).
Mas as vantagens económicas e demográficas não são apenas focadas por economistas. Numa análise política sobre a questão dos refugiados e das divisões europeias para lidar com o problema, Teresa de Sousa escrevia (“Regressam as fronteiras” in Público 20/09/2015): “ a demografia é uma das maiores ameaças à Europa, se quer continuar a contar no mundo. Combater a fraca natalidade tem dado resultados muito escassos. Integrar imigrantes dará resultados muito mais depressa. É o que pensam os empresários alemães. […] A integração de gente de fora é a melhor saída para o crescimento económico e a sustentabilidade do Estado social. Os serviços públicos podem estar sob imensa pressão, mas os imigrantes (e refugiados) vêm para trabalhar porque querem uma oportunidade na vida, o que significa que vão contribuir para o financiamento do welfare.”
Ainda sobre esta questão Maria de Belém Roseira (“Refugiados, e agora?” in Expresso 19/09/2015, p. 35) ecoou similar ideia: “Portugal deveria aproveitar esta oportunidade para assumir uma posição firme e clara: a de que é um país solidário e humanista, e consequentemente, colaborará activamente no esforço requerido; a de que a crise dos refugiados que, depois de acolhidos, vão precisar de integração seria uma óptima oportunidade para dar passos claros na reindustrialização da Europa que crie ofertas de trabalho para todos os que dele necessitem.”
3. Tal como se exige a todos os bons argumentos, usar a racionalidade económica para o problema dos refugiados tem de ser convincente, não apenas na aparência da ideia, mas na sua substância. Em sociedades democráticas — e num assunto delicadíssimo como é este, o qual envolve a vida de pessoas e os Direitos Humanos e tem impacto relevante nas sociedades de acolhimento —, deverá conseguir a adesão da opinião pública. Contribui esta forma de argumentação para o fazer? Provavelmente não. Primeiro, não faz uma adequada destrinça entre o problema dos refugiados, um problema intrinsecamente humanitário e de legalidade internacional, do problema dos migrantes económicos, quando o seu enquadramento conceptual e legal é diferente. A Convenção de Genebra de 1951 e o seu Protocolo Adicional de 1967 só se aplicam aos refugiados, tal como definidos no Direito Internacional. Depois, porque deixa ainda mais em aberto questões fundamentais que preocupam todos os europeus, o que acaba por alimentar, ainda que involuntariamente, maiores receios da população. Isto, num contexto de crise financeira e económica ainda não ultrapassado. O caso do desemprego, em especial do desemprego jovem — um problema grave e sobejamente conhecido, o qual está nas prioridades europeias e dos governos nacionais —, é bem exemplificativo das fragilidades da racionalidade económica aplicada aos refugiados. Na sua mais recente informação sobre as estatísticas de desemprego, o Eurostat faz notar que "as taxas de desemprego dos jovens são geralmente muito mais elevadas, mesmo o dobro ou mais que o dobro do que as taxas de desemprego do resto da população.” Acrescenta também que a crise económica atingiu duramente os jovens e que as altas taxas de desemprego “reflectem as dificuldades enfrentadas pelos jovens em encontrar emprego." (Eurostat, “Unemployment Statistics”, 15/07/2015). No último trimestre de 2014 os valores eram ainda extraordinariamente elevados, especialmente nas economias mais afectadas pela crise financeira e económica: Espanha 51,7%; Grécia 51,1%; Croácia 46,3%; Itália 42,0%; Chipre 33,9%; Portugal 33,3%; França 24,6%. (No outro extremo situou-se a Alemanha, com apenas 3,9% de desemprego entre os mais novos).
4. Olhando para estes dados uma primeira questão vem, de imediato, à mente. Se, estando os países da União Europeia em crise demográfica, ou seja, com reduzida população jovem, o seu mercado de trabalho — com a excepção da Alemanha e de escassos outros Estados da União —, não conseguem absorver essa população, como poderão absorver a massa da população jovem de refugiados, menos qualificada e com complexas questões de integração, que vão desde a língua até à subtileza dos múltiplos entraves culturais? Este problema, sem solução conhecida, levanta uma segunda questão, que é a seguinte: não terá mais impacto na sustentabilidade do Estado social reduzir o desemprego dos jovens autóctones, bem como do resto população que continua a enfrentar esse flagelo? Um desempregado que volta ao mercado de trabalho tem um duplo efeito positivo: reduz as estatísticas de desemprego e reduz os custos sociais (subsídio de desemprego e outras prestações sociais). Importa lembrar: as taxas de desemprego continuam muito elevadas, à excepção dos já referidos casos da Alemanha e de outras economias do Norte da Europa, como a Suécia. (Note-se que, mesmo nesses casos, não é líquido que sejam essas as necessidades do mercado de trabalho e demográficas, pois são economias que assentam em mão-de-obra muito qualificada e na inovação tecnológica e empresarial.)
Os dados do Eurostat relativos a Julho de 2015 não deixam dúvidas quanto à persistência da realidade do desemprego na generalidade da população: Grécia, 25,0%; Espanha 22,2%; Chipre 16,3%; Croácia 15,1%; Portugal 12,1%; Itália; 12%, França 10,4%. Por último, também não se percebe de que forma os refugiados poderiam ajudar à reindustralização europeia quando, pelas próprias dificuldades dos países de origem – Síria, Afeganistão, Iraque, Eritreia, etc. — têm menos qualificações profissionais e vão ter naturais dificuldades de adaptação em países muito distantes culturalmente. A não ser que a ideia seja recriar uma reindustralização assente em baixos salários, usando e abusando de uma mão-de-obra barata e em estado de premente necessidade. Mas isso — que certamente não está nas intenções dos que, com genuínas preocupações humanistas e solidárias, recorrem à racionalidade económica para persuadir —, significará colocar uma pressão constante para a descida os salários e regalias sociais sobre os já mais pobres. No pior cenário, arrisca-se até a abrir caminho a um capitalismo sem escrúpulos sociais e éticos o qual, sob o argumento neoliberal de aumentar a competitividade da economia, fará lembrar as miseráveis condições do proletariado no passado europeu.