À espera dos bárbaros
Afinal, “deste lado de cá” parece que os valores e as sociedades não têm a consistência apregoada.
A Europa, que sempre olhou para este fenómeno numa lógica securitária, a única política concertada que desenvolveu foi a edificação de um espaço fechado sobre si próprio, qual condomínio privado, a que chamou Schengen, cujas fronteiras externas são intensamente policiadas pela agência Frontex. Em locais críticos essas fronteiras são reforçadas com muros, o que acontece em Ceuta e Melilla, na fronteira entre a Grécia e a Turquia, e agora na Hungria (poderiam ser referidos muros de outras geografias como o que separa os Estados Unidos do México, ou muros com outras funcionalidades como o da Cisjordânia, ou o que separa a Coreia do Norte da Coreia do Sul). Muros que mais parecem reminiscências contemporâneas da antiga Muralha da China, edificada a partir de II a.C. para precaver invasões de tribos hostis, ou do Muro de Adriano, construído no século II d.C. na Britânia, que marcava o limite do império romano para além do qual se encontravam os bárbaros.
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A Europa, que sempre olhou para este fenómeno numa lógica securitária, a única política concertada que desenvolveu foi a edificação de um espaço fechado sobre si próprio, qual condomínio privado, a que chamou Schengen, cujas fronteiras externas são intensamente policiadas pela agência Frontex. Em locais críticos essas fronteiras são reforçadas com muros, o que acontece em Ceuta e Melilla, na fronteira entre a Grécia e a Turquia, e agora na Hungria (poderiam ser referidos muros de outras geografias como o que separa os Estados Unidos do México, ou muros com outras funcionalidades como o da Cisjordânia, ou o que separa a Coreia do Norte da Coreia do Sul). Muros que mais parecem reminiscências contemporâneas da antiga Muralha da China, edificada a partir de II a.C. para precaver invasões de tribos hostis, ou do Muro de Adriano, construído no século II d.C. na Britânia, que marcava o limite do império romano para além do qual se encontravam os bárbaros.
Todas estas fronteiras são linhas abissais, erguidas por quem está “deste lado” para impedir a entrada dos que estão “do outro lado”. Como diz Boaventura de Sousa Santos, estas linhas radicais concebem a realidade social em dois universos distintos. “Deste lado” está a ordem, o controle, a estabilidade, a racionalidade, a liberdade e a democracia; “do outro lado” nada existe, há apenas um espaço de abandono, caótico, violento e irracional. Por isso estas fronteiras são linhas de medo, que para além de separarem, impedem incursões “do lado de lá” para “o lado de cá”. O Mediterrâneo, uma imensa fronteira líquida, foi nos últimos anos exemplo do caráter hermético dessas linhas, naufragando as pretensões dos que a queriam ultrapassar. Os que conseguiram transpor essa fronteira abissal e chegaram à Europa adquiriram a estranha consistência da opacidade, convertidos em ilegais pelos ditames da autoridade.
No entanto, aqueles que “do lado de lá” embarcam as suas vidas precárias em viagens surrealistas estão a abrir brechas nas linhas de fronteira. Primeiro foram os sucessivos naufrágios que afogaram milhares de seres humanos ao largo da costa líbia. Depois as chegadas massivas à pequena ilha de Lampedusa, e agora a entrada ininterrupta de pessoas pela fronteira da Grécia, com passagem pela Hungria a caminho da Alemanha. A novidade está aqui: na violação da fronteira pelos condenados à inexistência; na sua inevitável presença no espaço europeu; e pela reivindicação da sua humanidade confrontando teorias, políticas e preconceitos que se lhe impõe.
Entre a disponibilidade para aceitar a chegada destas pessoas e a recusa em as receber, revelam-se as contradições da Europa. Quando perante uma crise humanitária como a atual, os líderes decidem adiar em semanas uma solução de acolhimento, estão à espera de quê? As vidas não se podem suspender como as decisões. A urgência da situação requer ações decididas e rápidas, senão as mesmas deixam de ser necessárias.
Tudo isto me faz lembrar de dois textos, ambos com o mesmo título, “Á espera dos bárbaros”. O primeiro é um poema de 1911 do grego Konstantínos Kaváfis, o segundo é um romance de 1980 do sul-africano J.M. Coetzee. Este último narra a história do que se passou num posto fronteiriço de um certo império, quando começaram a correr notícias de que os bárbaros o iriam invadir. Mas os bárbaros nunca chegaram e a vida dentro do forte degradou-se revelando a miséria humana do império. Também na Europa, perante a notícia da chegada de tantas pessoas vindas “do lado de lá” da linha abissal, surgem inquietações, questões e tensões que colocam em causa o império. Não são apenas os Estados a preocuparem-se, mas também os cidadãos comuns que acham que a sua vida vai ser canibalizada pela presença dessas pessoas. Afinal, “deste lado de cá” parece que os valores e as sociedades não têm a consistência apregoada.
A ausência de decisões dos líderes europeus, por outro lado, faz lembrar o poema de Kaváfis. “Dentro do Senado, tanta inacção? Se não estão legislando, que fazem lá dentro os senadores? É que os Bárbaros chegam hoje. Que leis haviam de fazer agora os senadores?” No poema os Bárbaros não apareceram. “Umas pessoas que chegaram da fronteira dizem que não há lá sinal de Bárbaros. E agora, que vai ser de nós sem os Bárbaros? Essa gente era uma espécie de solução”. Na realidade estas pessoas chegaram. E agora, que vai ser de nós? Afinal essa gente é uma espécie de solução. Sociólogo, Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
O autor escreve segundo as regras do novo Acordo Ortográfico