O conciliador

Há quatro anos, António Costa e Catarina Martins não eram líderes partidários. Passos Coelho prometia não cortar salários. Paulo Portas foi a votos sozinho. Jerónimo de Sousa viajou a Havana e encontrou-se com Raúl Castro. Quarto artigo da série "Quatro anos que mudaram a vida deles (e a nossa)."

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No subsolo da Baixa pombalina, próximo do Arco da Rua Augusta, há um espólio arqueológico que conta a história de Lisboa dos últimos 2500 anos. Junto a uma intervenção naquele núcleo histórico, visível acima do solo, na Rua do Ouro, um homem pegou num saco e foi-se embora sem demoras. O gesto causou suspeitas a um transeunte que por ali passava, à hora de almoço. Inquiriu um trabalhador da obra sobre o alegado furto, mas a resposta foi vaga. Chamou um agente da polícia municipal e pediu-lhe que fosse atrás do suspeito. Horas depois, o telefone toca. Era o comandante da Polícia Municipal. O homem tinha sido detido, sim, mas era funcionário da Câmara Municipal de Lisboa (CML) e estava a recolher objectos para levar para o Museu da Cidade. Deste lado da linha, o então presidente da CML pôs as mãos na cabeça. O delator tinha sido o próprio António Costa. Mais tarde, recebeu uma carta do funcionário a dizer que tinha um grande orgulho no cuidado que o presidente mostrava ter sobre os vestígios arqueológicos da cidade. “Fiquei envergonhadíssimo”, conta o líder do PS à Revista 2.

Nem sempre esta inclinação de António Costa para inspector camarário resultou em embaraço para o próprio. Muitas vezes, pelo contrário, deu origem a chamadas de atenção para os seus colaboradores. À noite, depois do jantar, era comum que começassem a chegar sms aos telemóveis do chefe de gabinete do presidente, de directores municipais e de assessores. As mensagens alertavam para buracos na estrada, candeeiros com luzes apagadas, semáforos por arranjar, espaços verdes por tratar. Algumas chegavam até com fotografia do local. Já se adivinhava: o presidente da câmara fazia um dos seus percursos pela cidade, a pé ou de bicicleta, um dos prazeres que deixou de ter ao trocar a governação da autarquia pela liderança do PS. “Adoro andar a pé. Das coisas que mais me custam são as horas infindáveis a viajar de carro de um lado para o outro.” Deixou Lisboa e mudou-se para Sintra quando se tornou candidato à liderança do PS.

No tempo em que esteve à frente da CML — que quase consumiu os últimos quatro anos do agora candidato a primeiro-ministro —, António Costa deu outros exemplos de um autarca que “gosta de pôr a mão na massa”, como diz um seu colaborador. Foi o caso das polémicas alterações de trânsito introduzidas na rotunda do Marquês de Pombal, em Setembro de 2012, com um pretexto ambiental. Na primeira manhã em que a rotunda se dividiu em dois círculos, Costa pôde assistir, no centro de controlo de tráfego da CML, ao caos de circulação automóvel naquela zona. À hora de ponta, foi aconselhando os técnicos sobre os tempos de funcionamento dos semáforos na zona. Percebeu que boa parte do problema estava na deficiente sinalização e passou o dia a trabalhar para que novos sinais fossem afixados antes da manhã do dia seguinte.

Esse trabalho de proximidade teve, porventura, o seu expoente máximo quando, em Abril de 2011, António Costa mudou temporariamente o seu gabinete para o então degradado Largo do Intendente. Era só por um ano, ficou três. O projecto, que aliou a requalificação urbana à regeneração social, deu uma vida nova ao bairro de má fama. Instalado no prédio da antiga Fábrica Viúva Lamego, era comum António Costa sair do gabinete e perguntar aos moradores se os horários mais curtos impostos aos bares estavam a ser cumpridos.

A partir do Largo do Intendente, o então presidente da câmara pôde acompanhar de perto a requalificação do bairro da Mouraria. Este trabalho cruza-se com o fado, uma paixão que cresceu nos últimos anos, desde que se tornou impulsionador da candidatura a Património Cultural Imaterial da Humanidade. Em Novembro de 2011, fez parte da comitiva portuguesa que se deslocou a Bali, na Indonésia, para receber a distinção da UNESCO. No palco, em jeito de homenagem, encostou o seu iPhone ao microfone da sala e deixou que a voz de Amália se ouvisse em Estranha forma de vida.

Nos últimos anos, tornou-se amigo de fadistas, foi conquistado pela Rádio Amália e hoje em dia raramente perde um concerto de fado, mesmo quando percorre o país nas digressões políticas.

Enquanto presidente da câmara, não falhou as festas populares das noites de Santo António, mas teve de pôr à prova a sua capacidade de negociar quando uma greve na recolha de lixo ameaçou estragar o arraial de 2014. Depois de falhadas as conversações entre o vice-presidente e os sindicatos dos trabalhadores municipais, foi o próprio que tomou a iniciativa de se sentar à mesa das negociações. Cedeu nas reivindicações laborais e travou a greve marcada para vários dias.

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“Os compromissos são sempre necessários por uma razão: é que as maiorias não duram para sempre”

Apoiantes mas também adversários elogiam-lhe a capacidade para fazer compromissos. “É um negociador habilíssimo, resolveu dossiers que estavam na câmara bloqueados há anos”, afirma Helena Roseta, eleita vereadora pelo movimento Cidadãos por Lisboa, e que aceitou um entendimento com Costa em 2009. Tornou-se presidente da Assembleia Municipal em 2013 e está em terceiro lugar nas listas do PS por Lisboa para as legislativas. Foi uma das pessoas de quem mais se aproximou nos últimos anos.

Exemplo simbólico de um acordo conseguido com um campo político adversário foi o memorando de entendimento fechado com o então ministro Adjunto Miguel Relvas, sobre os terrenos do Aeroporto de Lisboa. O contencioso durava há 23 anos e acabou em 2012 depois de longas conversações com o ministro. Pelo lado do Governo era preciso também que este problema se resolvesse para poder avançar com a privatização da ANA. Entre outros pontos do acordo, o Governo assumiu o pagamento de 286 milhões de dívida bancária de médio e longo prazo da CML em troca da totalidade do perímetro dos terrenos aeroportuários, o que permitiu a Costa anunciar uma redução da dívida do município em 43%. Mais um ponto que, mais tarde, haveria de servir como trunfo ao candidato a primeiro-ministro no combate a Passos Coelho, líder do Governo que se orgulha de ter posto as contas do país em ordem. No frente-a-frente televisivo entre os dois candidatos, essa operação veio à conversa: Costa lembrou a redução da dívida da CML, Passos recordou que isso foi conseguido com dinheiro do Governo.

Outro dos diferendos municipais que se arrastava nos tribunais era o do caso Bragaparques. Em Janeiro de 2014, António Costa fechou um acordo com a empresa de Braga que permitiu à CML reaver os terrenos da Feira Popular e do Parque Mayer, pagando desde logo 101,7 milhões de euros, salvo encargos futuros e com a condição de alguns dos diferendos serem remetidos para o Tribunal Arbitral. O entendimento teve o voto a favor do PSD.

Foi também com uma estratégica aliança com os sociais-democratas de Lisboa que Costa conseguiu concretizar uma das reformas de que mais se orgulha: a descentralização de competências da CML e a redução do número de freguesias. A reorganização levou-lhe anos a preparar, mas foi estabelecida com base em trabalho de proximidade com os autarcas das próprias freguesias. Essa preocupação em construir pontes e de não impor um desenho feito a régua e esquadro valeu-lhe uma contestação mais suave por parte dos autarcas e de trabalhadores. “Esta reforma não foi uma reforma filha da troika”, disse numa reunião camarária, em Dezembro de 2013, em claro contraste com a contestada reorganização de freguesias em todo o país executada por Miguel Relvas, em resultado do memorando de entendimento.

O próprio António Costa reconhece que os acordos mais importantes que conseguiu em Lisboa foram estabelecidos quando já dispunha de maioria absoluta. “Os compromissos são sempre necessários por uma razão: é que as maiorias não duram para sempre”, observa. E esse é um “erro” que aponta ao (primeiro) governo de Sócrates, por “não ter usado a maioria absoluta como forma de obter compromissos mais alargados”. Um discurso que manteve com coerência antes e depois da detenção do ex-primeiro-ministro.

Troca de cadeiras com Seguro

Já uma forte incoerência na mensagem política foi-lhe apontada pela coligação PSD/CDS quando Costa falava, em Fevereiro deste ano, perante uma plateia de investidores chineses e disse que Portugal está numa “situação diferente daquela que estava há quatro anos”. Melhor, portanto. A avaliação viria ao encontro de toda a mensagem de recuperação económica do país construída pela coligação e que nunca tinha sido reconhecida pelo líder. Nessa altura, os problemas locais já tinham começado a ganhar dimensão nacional, amplificados pelo PSD e pelo CDS. Foi o caso das cheias em Lisboa, no Outono de 2014, em que as chuvas transformaram ruas em rios, e das isenções fiscais para o Benfica em que o presidente da CML acabou por recuar. Já com impacto nacional, a criação da taxa aeroportuária tornou-se um alvo do CDS. Pouco mais de um mês depois da gaffe com os chineses, renuncia ao mandato de presidente da CML, deixando no seu lugar Fernando Medina, vice-presidente desde 2013 e visto como um sucessor plausível de Costa caso este tivesse de sair.

A caminhada para a liderança do PS tinha começado meses antes, depois de uma pública hesitação em Janeiro de 2013. Até esse episódio e mesmo depois dele, António Costa foi constantemente questionado pelos jornalistas sobre a sua disponibilidade para liderar o PS. O então autarca foi repetindo a recusa, com os mesmos argumentos, mas sem nunca fechar completamente a porta. “Neste momento não estou a concorrer para cargo nenhum, mas também não fujo de cargo nenhum”, disse em Março de 2012, numa entrevista ao PÚBLICO a propósito do lançamento do seu livro Caminho Aberto, uma compilação de textos sobre o seu pensamento político dos últimos 20 anos.

A crítica à forma como o então secretário-geral do PS, António José Seguro, geria o partido, sobretudo por causa da herança socrática, não foi discreta. Foi mesmo bastante visível quando disse que o PS, que na altura cumpria um ano de oposição, “fingiu que o passado não existe” e apostou numa “política impossível” que não era nem a de “autoflagelar-se” nem a de uma “avaliação crítica”. A farpa foi lançada no programa Quadratura do Círculo, na SIC, onde foi comentador político até ser candidato a primeiro-ministro. Nessa cadeira, condenou o PS de Seguro por se ter abstido na proposta de Orçamento do Estado para 2012, que impunha uma forte dose de austeridade, e considerou que o Governo PSD/CDS “se distanciou” do memorando da troika. Apesar de ter defendido, a 22 de Novembro de 2014 — um dia depois da detenção do ex-primeiro-ministro — que o PS “não adopta as más práticas estalinistas de eliminação da fotografia deste ou daquele” —, as políticas de Sócrates passaram a ser quase um tabu nos seus discursos de campanha.

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Com antagonismos acumulados na história do PS desde os tempos em que ambos militavam na Juventude Socialista, Costa foi mortal para Seguro logo que este assumiu a candidatura à liderança do PS, em Junho de 2011. “Não o conheço bem. Sei quem ele é e já nos cruzámos, mas não é uma pessoa com quem tenha convivido”, reagiu na Quadratura do Círculo. Pormenor: os dois socialistas foram membros de ambos os governos liderados por António Guterres (1995-1999/1999-2002).

A rivalidade entre os dois veio ao de cima no incidente que aconteceu no congresso de consagração de Seguro como secretário-geral, em Setembro de 2011. O então líder recém-eleito aproximou-se dos estúdios das televisões instalados no congresso e interrompeu uma entrevista de António Costa, em directo na TVI. De imediato, Costa cedeu o seu lugar, mas não perdoou. Seguro representava “uma nova etapa de intimidade entre a liderança política [do PS] e a comunicação”, disse aos jornalistas, momentos depois da troca de lugares. E deixou o contraste com Sócrates que foi “menos íntimo [da comunicação social] e mais concentrado nas pessoas e nos cidadãos”. Frase que, hoje em dia, seria quase impossível de repetir.

Como comentador político ou como presidente da CML, Costa foi expondo o seu pensamento político, sobretudo a sua crítica à “ideologia liberal” do Governo liderado por Passos Coelho. Nas cerimónias de comemoração do 5 de Outubro, os discursos do autarca não se confinavam ao município. Eram para o país. Em 2012, por exemplo, a intervenção serviu para criticar o “estatuto do bom aluno” assumida pelo Governo perante a Europa. “Menoriza-nos e infantiliza-nos.”

Poucos meses depois, em Janeiro de 2013, assume a vontade de liderar não só a governação de Lisboa, mas também a do PS. Horas antes de uma comissão política nacional, convocada para decidir o calendário do congresso e de eleição para secretário-geral, chamou os vereadores e informou-os da sua intenção. Dias antes, o ex-ministro socrático Pedro Silva Pereira defendia, na Rádio Renascença, que o congresso devia ser antecipado para antes das eleições autárquicas, marcadas para Setembro desse ano. A lebre estava lançada.

Costa chegou ao Largo do Rato, acompanhado por Francisco Assis, que se tinha candidatado contra Seguro em 2011 e que viria a abandonar o congresso da consagração do actual líder por não lhe darem tempo para intervir. Na comissão-maratona, apoiantes de um e de outro trocaram duras acusações. Sem o apoio da esmagadora maioria dos presidentes das federações, Costa recuou na sua intenção e comprometeu-se a trabalhar com Seguro na união do partido. As tréguas foram seladas com um abraço entre os dois, perante os dirigentes socialistas, após seis horas de reunião. Dias mais tarde, foi aprovado o Documento de Coimbra, que aproximou as alas desavindas do partido. E dois meses depois Costa aceitaria ser o número dois da comissão nacional liderada por Seguro e eleita por larga maioria em congresso.

A marcha-atrás de Costa desiludiu fortemente os seus apoiantes, mas até hoje justifica a sua decisão com a indesejada instabilidade que voltaria a existir no partido. Oito meses depois desta noite longa do PS, reconquistou a CML com o melhor resultado de sempre de um partido em Lisboa. Uma nova tentativa para liderar o PS só aconteceria após as eleições europeias de 25 de Maio de 2014. Poucas semanas antes, no arranque da campanha eleitoral, andou ao lado de Seguro, do cabeça de lista Francisco Assis e do presidente do Parlamento Europeu, Martin Schulz, nas ruas de Lisboa. O momento de aparente unidade ficou cristalizado numa selfie. A imagem viria a tornar-se anacrónica quando um mês depois o embate entre os dois se tornou público.

Na noite eleitoral das europeias, Costa não passou pelo Hotel Altis para cumprimentar Seguro pelo resultado e seguiu directamente para a SIC para participar numa edição especial da Quadratura do Círculo. À medida que as horas passavam, percebeu que o PS tinha ficado nos 31%. “Não havia nenhuma sondagem que o indicasse. Foi para mim um choque”, diz à Revista 2, usando uma palavra próxima da que António Guterres escolheu para comentar a derrota do então líder socialista Jorge Sampaio contra Cavaco Silva em 1991. Quando as percentagens se consolidavam, escreveu um sms a Seguro com o que se preparava para dizer no comentário televisivo. “Foi das poucas vezes que eu fui para a Quadratura do Círculo com a frase escrita depois de ter informado o que é que ia dizer. Tive esse cuidado. Mandei para ele e disse-lhe que gostava de falar com ele pessoalmente”, revela. Nessa noite, mostrou preocupação pelo facto de a “derrota histórica da direita [27,7%] não ter correspondido a uma vitória histórica do PS”. A eleição “soube a pouco”, rematou.

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Foi das poucas vezes que eu fui para a Quadratura do Círculo com a frase escrita depois de ter informado o que é que ia dizer. Tive esse cuidado. Mandei para ele [António José Seguro] e disse-lhe que gostava de falar com ele pessoalmente

Esse encontro com Seguro não aconteceu nos dois dias seguintes, até Costa anunciar a sua disponibilidade para disputar a liderança. Assegura que o processo de decisão de avançar aconteceu entre a noite de domingo e a terça-feira do anúncio. “Só falei com a minha família, não falei com mais ninguém. Falei com os meus filhos e falei com o meu irmão [Ricardo Costa, director do Expresso] para medir as consequências na vida dele. Há decisões que só o próprio pode tomar”, conta. Para esse ânimo súbito, terá contribuído também o apoio popular. “Passei a campanha toda das autárquicas a ouvir as pessoas na rua a dizerem-me ‘eu vou votar em si mas verdadeiramente o que eu quero é que vá para primeiro-ministro ou para Presidente da República’. Alternava.”

A escolha de avançar três anos depois de Seguro fazer o seu “caminho das pedras” deixou-lhe colada uma imagem de calculista que, dizem os mais próximos, “transpareceu em estudos de opinião”.

O processo da luta interna viria a tornar-se tempestuoso e porventura mais demorado do que o esperado. O país assistiu, em directo na televisão, ao duelo entre os dois Antónios, camaradas do mesmo partido que se tratavam por tu. O embate foi feio. Trocaram acusações a roçar o insulto e, por várias vezes, Costa perdeu as estribeiras. Tanto os seus colaboradores como os seus adversários dizem que é muito frequente ter fúrias, mas também que é capaz de as ultrapassar em pouco tempo. Essa capacidade é potenciada se perceber os ganhos de atingir determinado objectivo. “É um dos políticos mais pragmáticos que eu conheço”, diz João Gonçalves Pereira, vereador do CDS-PP, que desafiou António Costa a criar o comissariado municipal do combate ao desperdício municipal. Apesar de ser uma proposta de um partido da oposição, foi aceite de imediato. E aprovada por unanimidade.

Numa disputa que não foi pacífica, Costa ganhou o lugar de candidato a primeiro-ministro com uns esmagadores 67,7% contra 31,5% de Seguro. Nessa noite eleitoral, foi ao auditório do Fórum Lisboa com um discurso muito conciliador. “Estas primárias só têm um vencedor: o PS.” E empolgou a plateia com o combate contra o seu adversário seguinte, inspirado em Sérgio Godinho: “Este é o primeiro dia de uma maioria de Governo e o primeiro dos últimos dias do actual Governo.” Já o próximo executivo, se for socialista, pode ter outras latitudes. O primeiro acto como candidato a primeiro-ministro foi discursar no primeiro congresso do Livre, liderado pelo ex-bloquista Rui Tavares, e falar num “ponto de equilíbrio” para alternativa de governação à esquerda. “O que temos de fazer não é guerrear entre nós”, disse, deixando claro que “há várias formas de governar que não passam necessariamente e só pela coligação”. Estava dado o sinal para possíveis entendimentos à sua esquerda.

Com a crítica ao executivo de Passos Coelho muito acentuada na ideia de que “foi para além da troika”, a actuação do Presidente da República Cavaco Silva foi o outro pólo das atenções. Logo em Junho de 2011, o ainda autarca antevia o “carinho” de Cavaco ao Governo PSD/CDS. Críticas não faltaram nos últimos quatro anos, mas uma das mais violentas aconteceu em Julho deste ano, depois de Cavaco pedir que o próximo Governo seja “estável e duradouro”. A resposta foi dura ao repescar uma frase do próprio Cavaco, na altura primeiro-ministro, dita há 21 anos sobre o então Presidente Mário Soares. “O prof. Cavaco Silva está no fim da sua carreira política já bastante longa. Devemos aliviá-lo dos problemas e ajudá-lo a terminar o mandato com dignidade e não lhe criar problemas acrescidos”, disse.

A escolha de um candidato a sucessor de Cavaco tem-lhe dado dores de cabeça. Pôs a cassete sobre Presidenciais — “o PS tomará a sua decisão no momento oportuno” — mas já foi confrontado com o anúncio da disponibilidade para o cargo da ex-presidente do partido Maria de Belém. Mesmo assim insistiu em elogiar o antigo reitor e já candidato Sampaio da Nóvoa. 

Sócrates “é um teste à democracia”

Com a escolha do novo líder do PS, no Outono de 2014, os socialistas estavam a viver uma onda de euforia. Na véspera do congresso da eleição do secretário-geral, Sócrates é detido por suspeitas de corrupção. Foi um balde de água gelada para os socialistas e uma espada apontada ao novo líder. Estava manchado o nome do ex-primeiro-ministro de quem Costa foi número dois no Governo e com quem manteve uma relação de muita proximidade durante muitos anos. Foi, aliás, a Sócrates que Costa cedeu o lugar, em 2004, para a corrida à liderança do PS. “Ele achou que estava em melhores condições e eu apoiei-o”, recorda.

A poucas horas de o partido se reunir e poder transformar o congresso num palco incontrolável de guerra contra o poder judicial, Costa usou um dos seus meios preferidos para comunicar: o sms. Enviou uma mensagem escrita a todos os militantes socialistas com um forte apelo de contenção e traçando uma linha de demarcação — que manteve intransigente até hoje — entre o caso judicial e a esfera política. Mesmo sabendo que não está a agradar a muitos. “Acho que tenho feito o correcto e que é, mesmo com muitas incompreensões, estabelecer uma rígida separação entre aquilo que é a acção do PS e aquilo que é esse processo.”

Até recentemente as suas palavras resumiam-se a assumir que é um “caso doloroso do ponto de vista pessoal” e a reconhecer que a detenção tem “um peso muito grande” no partido.

Em contraste com a romaria a Évora de muitos socialistas, visita Sócrates na prisão uma única vez, a 31 de Dezembro de 2014. À saída, pouco mais de uma hora de encontro, faz uma declaração que soube a pouco aos socráticos: “A personalidade dele é conhecida de todos. Vai certamente lutar pelo que acredita ser a sua verdade.” A 4 de Setembro, a um mês das legislativas, Sócrates foi transferido para prisão domiciliária. E passa a poder dar entrevistas presencialmente. Reconquista a atenção mediática e põe à prova o candidato a primeiro-ministro a quem as sondagens não dão larga vantagem. Ainda antes da alteração da medida de coacção do ex-primeiro-ministro, Costa falava ao PÚBLICO do caso como “teste muito importante” para a democracia. “É o caso que tivemos até hoje onde mais radicalmente se confronta o princípio da afirmação do Estado de direito relativamente ao poder político. E acho que aqui estamos a ser testados no princípio da presunção da inocência.”

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Antes de tomar posições públicas sobre questões europeias, estabeleci contactos com a nossa família na Europa e tirei as minhas conclusões.

O factor Sócrates faz de Costa “uma marca com elevada contingência”, sustenta o marketeer Carlos Coelho, um contraste com a “marca líder que é a que está no Governo e que normalmente é que tem as contingências” por causa das políticas que desenvolveu. “É um factor de enfraquecimento invulgar a que o político António Costa tem de fazer face”, observa. O outro ponto fraco apontado é também um ponto forte: ser um conciliador. Se por um lado a sua “grande característica é a capacidade de conectar os mais variados interesses, faixas etárias e preocupações sociais”, por outro “é impossível manter essa flexibilidade sem perder a sua personalidade”. Nesta última fase da campanha, pode mesmo “ter de quebrar algumas compatibilidades” para lidar com o caso Sócrates. Transpondo a política para o marketing, Carlos Coelho considera que “a marca pessoal de Costa vale mais do que a do partido”.

Esta posição é partilhada por outro marketeer, Pedro Bidarra. “A marca PS está de rastos”, diz, tendo em conta não só o caso Sócrates, mas também o anúncio da candidatura às presidenciais de Maria de Belém e as implicações de ter chamado a troika. O publicitário aponta um contraste entre o autarca e o líder partidário. “Lá na câmara parecia-me alto e mandão e agora sinto-o abafado pelo PS”. Para Pedro Bidarra, o partido devia “puxar pelos galões” do autarca na campanha: “Se o PS tivesse tronco e membros, Fernando Medina [presidente da CML] devia estar a fazer inaugurações todos os dias e dizer que era obra do Costa.”

No combate político que tem travado contra o Governo PSD/CDS, o seu discurso sofreu outro percalço: a Grécia. No início de Janeiro deste ano, o líder do PS cavalgou a onda de entusiasmo que os partidos à esquerda partilharam com o que a vitória do Syriza podia significar para a Europa. “Este é mais um sinal da mudança da orientação política que está em curso na Europa, o esgotamento das políticas de austeridade e a necessidade de termos uma outra política que permita que a moeda única seja efectivamente uma moeda comum”, afirmou na noite em que Alex Tsipras foi eleito primeiro-ministro. Não felicitou o Syriza pela vitória, é verdade, mas omitiu no seu discurso a pesada derrota do partido grego homólogo do PS, o PASOK.

Perante os ziguezagues do Syriza nas negociações com os credores, o entusiasmo com os ventos de mudança na Europa esfumou-se. O ânimo que restava findou quando Tsipras aceitou um pacote de austeridade brutal. Costa tinha acentuado as críticas ao erro da Europa em “humilhar a Grécia”, passou a censurar mais a estratégia de “confrontação” assumida pelo Governo grego, chegando a dizer que Yanis Varoufakis, então ministro das Finanças, foi negociar para Bruxelas qual “cavaleiro andante”.

Hoje em dia, diz não se surpreender com o que aconteceu com a Grécia: “Antes de tomar posições públicas sobre questões europeias, estabeleci contactos com a nossa família na Europa e tirei as minhas conclusões.” Quando o Syriza se curvava perante Bruxelas, anunciou uma aliança com o PSOE — o novo impulso para a convergência de Portugal e Espanha. Uma estratégia de “construir alianças” a que se junta a defesa da “leitura inteligente” do Tratado orçamental” e a de colocar em segundo plano a renegociação da dívida. 

Quatro anos de uma legislatura — três na câmara e um como líder do PS em exclusivo — geraram algumas mudanças na vida pessoal de Costa e bastantes cabelos brancos. Quando entrou na corrida para a liderança do PS, deixou de participar no programa da SIC, o que fez baixar o seu rendimento mensal em 7700 euros. Essa quebra levou-o a sair do apartamento em Lisboa e voltar a morar na casa de família, em Fontanelas, Sintra. O prédio em que arrendou o duplex, na Avenida da Liberdade, entre Julho de 2012 e o final de 2014, não passou despercebido quando o PÚBLICO noticiou que foi alvo de um parecer desfavorável da câmara sobre as obras de ampliação.

Regressou à casa onde a mulher (com quem é casado há 28 anos) não deixou de viver, mas não tem tido tempo para se perder num dos seus gostos pessoais que é cozinhar.

Nas poucas horas que tem para ler ficção, continua a gostar de José Eduardo Agualusa. Mas o tempo da leitura foi consumido em livros sobre a crise económica e monetária em que a Europa mergulhou. Um deles foi marcante por ter das “análises mais interessantes” sobre a crise. Tem o sugestivo título La gauche n’a plus droit à l’erreur (A esquerda não tem direito a falhar) e é uma visão apocalíptica sobre a Europa de dois socialistas franceses, o ex-primeiro-ministro Michel Rocard e o economista Pierre Larrouturou.

As novas funções no PS deixaram-lhe pouco tempo para a família. Ainda assim não perdeu a festa de aniversário dos 25 anos do seu filho mais velho, em Julho deste ano, numa discoteca em Vilamoura. Uma das raras ocasiões em que se deixou fotografar com a família para a revista Caras.

Seis meses entre primárias, directas, congresso e em acumulação com a presidência da câmara esgotaram muito da vida pessoal. Mas voltou a um dos seus hobbies: os puzzles. Desta vez, um de 1800 peças. “É pequenino, já fiz um de 24 mil.”

Essa “paciência evangélica” — como assumiu ter num dos debates televisivos com Seguro — não se revelou nas redes sociais. Usa um tablet, tem um iPhone 6, “que é uma grande ajuda”, mas não gosta de Facebook. “É um espaço para o insulto gratuito. É um caso curioso em que a democratização não tem contribuído para o apuramento da qualidade.”

É capaz de ver notícias no tablet, mas prefere ler os jornais em papel. É aí que lê as notícias de que nem sempre gosta.

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Não creio que tenha uma relação diferente do que outros políticos têm [com jornalistas]. Porventura manifestam-se menos ou serão menos exigentes.”

Filho da jornalista Maria Antónia Palla e irmão do director do Expresso, parece viver uma relação de amor/ódio com a comunicação social. Não esconde que é crítico do jornalismo que se faz hoje em dia. “Para ser totalmente franco, é pior do que há dez anos. Porventura porque o noticiário de meia em meia hora, o noticiário no online, é uma pressão que diminui o tempo de trabalho do jornalista e porque há degradação no mercado de trabalho.”

As irritações com jornalistas — como aconteceu na passada semana na entrevista da RTP com Vítor Gonçalves — somam-se nos últimos tempos. 

Em Maio deste ano, enviou um sms ao director adjunto do Expresso João Vieira Pereira — que o tornou público — em que lhe dava um raspanete a propósito de uma análise escrita em torno do programa do PS. A resposta não seria a mesma se o artigo não tivesse sido escrito por um subdirector de um jornal “que se arroga ser o mais influente do país”. Admite que há tensão entre a política e o jornalismo, mas assegura que aprendeu a respeitar muito. “Não creio que tenha uma relação diferente do que outros políticos têm [com jornalistas]. Porventura manifestam-se menos ou serão menos exigentes.” A exigência, como lhe chama, não é apenas reflexo de um impulso, mas decorre da convicção de considerar que “alguns jornalistas acham que têm o exclusivo da crítica e que não estão sujeitos também a uma avaliação crítica”.

Filhos do escritor e militante do PCP Orlando Costa, os dois irmãos, o político e o jornalista, traçaram publicamente as suas balizas. Ricardo fê-lo numa carta dirigida ao “irmão político”, António anunciou que deixou de ler as crónicas do director para ele não ter, “ainda que subconscientemente, qualquer tipo de autocensura”. Depois de muitos anos a viver em lados diferentes da barricada, vem ao de cima o lado pragmático do político: “Temos de viver assim. Olhe, se fôssemos jogadores de futebol, como ele é do Sporting e eu sou do Benfica, se calhar tínhamos de jogar um contra o outro. Assim, temos apenas de conviver dentro do mesmo campo.”