Refugiados 2: Adeus e duas guitarras

1. Pode chamar-me Ivan, disse ele. Estávamos sentados num jardim no Norte do Iraque, fim de tarde tão tranquilo que duas guitarras ao centro alcançavam tudo. Mas naquele canto o que acontecia era uma separação. Ivan foi o nome que ele escolheu caso eu contasse a história no jornal. Escolheu também o nome das pessoas a quem dizia adeus, o pai: Aziz, a mãe: Jian.

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1. Pode chamar-me Ivan, disse ele. Estávamos sentados num jardim no Norte do Iraque, fim de tarde tão tranquilo que duas guitarras ao centro alcançavam tudo. Mas naquele canto o que acontecia era uma separação. Ivan foi o nome que ele escolheu caso eu contasse a história no jornal. Escolheu também o nome das pessoas a quem dizia adeus, o pai: Aziz, a mãe: Jian.

2. Quando voltei dessa viagem, em Maio passado, escrevi sobre alguns refugiados, cristãos, yazidis, muçulmanos, e por cada um muitos não entraram. Do adeus e das guitarras só sobrou o parágrafo num dos textos a dizer isso, que não cabiam.

3. Os dois rapazes das guitarras eram curdos, portanto estavam em casa, tinham papéis e ninguém em cima deles, eu podia usar os nomes verdadeiros: Niaz, 21 anos, Hunar, 28, estudantes de Música na Universidade de Sulaymaniyah. À semelhança de todos os curdos, haviam crescido no mito da resistência peshmerga (os combatentes locais), então pegavam em armas como na guitarra.

4. “Quando a minha cidade foi ameaçada pelo ‘Estado Islâmico’, peguei na Kalashnikov do meu pai, que é engenheiro e foi peshmerga”, diz Niaz, no jardim. Por trás dele, há sol, rosas, carrinhos de guloseimas, como se o “Estado Islâmico” não estivesse a uns cem quilómetros, aliás, justamente porque o “Estado Islâmico” está a uns cem quilómetros. Do ponto de vista da Europa, muito perto, do ponto de vista de Sulaymaniyah, mais longe do que já foi. Toda a gente em Sulaymaniyah já esteve mais perto da morte, e é disso que Niaz está a falar. Hoje, está aqui a tocar guitarra, em Agosto de 2014 estava a lutar contra o “Estado Islâmico”. Foi quando os jihadistas avançaram sobre o Curdistão, até ataques aéreos os fazerem recuar. “Ninguém sabe quem eles são”, diz Niaz. “São uma ideia que está por toda a parte. Então temos de começar por lutar contra a ideia. Porque é que os seguidores deles vieram de toda a parte? Encorajados pelas redes sociais. O ‘Estado Islâmico’ usa as armas dos homens, e os homens têm medo. A Humanidade tem medo da morte e do futuro. Os seguidores do ‘Estado Islâmico’ seguem-nos para poderem ir para o paraíso.” Niaz tem as unhas cuidadas de um guitarrista. Um guitarrista cuida das suas unhas em Sulaymaniyah, como em Budapeste ou Munique, talvez só tenha de interromper mais vezes, por exemplo, para pegar numa Kalashnikov. Pai xiita, mãe sunita, leitor tanto da Bíblia como do Corão, Niaz ia ter problemas sérios com os jihadistas. Já o seu amigo Hunar “nunca quis lutar”, queria só um país em que a arte não fechasse por causa da guerra, ano sim, ano sim.

5. Hunar toca, eu gravo, é uma das formas de não fechar por causa da guerra. Ainda tenho a gravação no meu telefone, 10 de Maio de 2015, um minuto e trinta e três. Inclui os pássaros da tarde a cantarem por cima.

6. Foi depois da gravação que reparei no trio ao canto do jardim. O tradutor curdo com quem eu estava apanhou uma frase de um deles, reconheceu a nuance do árabe e sussurrou-me: são refugiados sírios. Pareciam, de caras, uma família, mãe à esquerda, filho ao meio, pai à direita, sentados na relva. Aproximámo-nos, perguntando se eram sírios, e sim, exactamente, uma família. O filho, chamemos-lhe Ivan, viera há dois anos para o Curdistão iraquiano, porque queriam obrigá-lo a fazer o serviço militar. Serviço militar em 2013 na Síria era contar os mortos antes de morrer, e continua a ser. Por isso é que eles se estavam a despedir, os pais tinham vindo visitar o filho por duas semanas, enfim ao fim de dois anos, e nessa madrugada iam partir.

7. Ivan fala-me em inglês, estudou inglês em Aleppo, tem 26 anos. Ainda devia estudar quando estive lá em 2009, esse outro século, a fugir do calor cego de Agosto para o Bimaristan Arghun, onde há sete séculos os loucos já eram bem-vindos, trazendo comigo o cheiro a sabão de louro, a música das qanuns na cidadela, os fantasmas do hotel que agora é um fantasma na linha da frente. Um hotel na Síria: em apenas seis anos, só essa ideia parece outro século.

8. O pai, chamemos-lhe Aziz, diz, não há nada na Síria agora, nada, todas as universidades estão paradas. A mãe, chamemos-lhe Jian, diz, quando vi o meu filho abracei-o meia hora, porque não vi o meu filho durante dois anos, durante dois anos chorei, e chora agora, esconde a cara com o lenço. O curdo que me acompanha é quem traduz do árabe, os pais dizem em árabe que as aldeias sírias estão vazias de homens, só com raparigas e velhos, que deixaram cinco filhas lá e têm medo, por causa do “Estado Islâmico”, que as levem como escravas. Entre árabe e inglês, o filho conta que o pai é psicólogo, formado pela Universidade de Damasco, mas como era curdo e não apoiava Assad não tinha emprego em Damasco, achavam que era perigoso para o regime.

9. A terra desta família é Qamishli, uma zona em que se juntam as fronteiras da Síria, Turquia e Iraque. Já esteve cercada pelo “Estado Islâmico”, depois vieram os aviões estrangeiros, conta a mãe. Para voltar lá, será preciso viajar num táxi colectivo até Dohuk, por cima de Mossul, a maior cidade iraquiana controlada pelos jihadistas, atravessar o Tigre de barco e apanhar um autocarro do outro lado, uma viagem longa e perigosa. Se eu voltar para o meu país, talvez não volte a ver o meu filho por vários anos, diz a mãe.

10. Ivan continuará a ser um refugiado em Sulaymaniyah, porque antes isso, diz. Se tivesse ficado no meu país, ia matar o meu povo, ia matar ou ser morto, essa é a primeira razão, e a segunda é que não há trabalho, a economia não existe. Aqui trabalha numa organização sueca, ajuda refugiados como ele.

11. O pai diz que o “Estado Islâmico” é uma organização fascista, ditatorial, feita com sobras de extremistas de todo o mundo, que iria ameaçar a Europa se não fossem os ataques aéreos e a resistência dos peshmergas. Uma organização internacional que ocupou os nossos lugares, diz ele, e isso parece conter tudo. Ocupação feita de muitas botas, espécie de boneca russa do Grande Médio Oriente, uma bota enfiada na outra, americanos, russos, sauditas, iranianos, europeus, até dar a volta à terra, e em cima dela não há fora nem longe. A única certeza do século é estarmos todos cá dentro.

Foto
Alexandra Lucas coelho