O cabelo do delito
O peso da comédia humana, tal como ela se vive no Portugal real — e não apenas para nosso divertimento
Não porque nelas não se distingam um estilo e um humor muito próprios, na verdade de altíssima qualidade literária, estilo e humor que bastam para lembrar que, numa certa tradição da crónica, a diferença entre jornalismo e literatura é absolutamente impossível de sustentar. Antes porque o traço mais conspícuo dos casos relatados por Rui Cardoso Martins é a ausência de importância que parecem ter, salvo para quem os protagoniza. Ou nem isso, dado o número ainda razoável de personagens que nem no tribunal comparecem mesmo sendo os queixosos.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Não porque nelas não se distingam um estilo e um humor muito próprios, na verdade de altíssima qualidade literária, estilo e humor que bastam para lembrar que, numa certa tradição da crónica, a diferença entre jornalismo e literatura é absolutamente impossível de sustentar. Antes porque o traço mais conspícuo dos casos relatados por Rui Cardoso Martins é a ausência de importância que parecem ter, salvo para quem os protagoniza. Ou nem isso, dado o número ainda razoável de personagens que nem no tribunal comparecem mesmo sendo os queixosos.
Essa aparente insignificância destes casos reais que parecem inventados confere um tom muito particular ao tipo de realismo do cronista que os narra, salvando-os da irrelevância. Dir-se-ia que são escritos no limite de um espírito de repórter que anda à cata do que, para qualquer jornalista propriamente dito, não merece sequer ser reportado.
Um rapaz julgado por matar um esquilo no Parque de Monsanto (argumentou que lhe parecera um coelho, embora nem sobre coelhos estivesse autorizado a disparar ali e, portanto, saiu condenado); um caso de injúrias cujo conteúdo obsceno uma testemunha não quer reproduzir por força da educação que diz ter recebido; um caso cujo título basta para explicar tudo — O escabroso caso do tráfico de caldos Knorr — incluindo o comentário da juíza: “O valor do furto é ridículo… é tudo ridículo aqui”; a história do “pobre diabo”, um coxo que foi rasteirado numa tasca e respondeu com um inesperado murro que “enfiou o nariz para dentro” ao autor da rasteira; o escândalo do capachinho trocado, ainda que estejamos a falar aqui de capachinhos de qualidade, próteses capilares que naqueles anos 90 podiam custar “cerca de 250 contos cada, mais 15 contos por sessão de reajuste”, para citar um parêntesis cujos valores totais cambiados significam hoje cerca de 1.325 euros.
Alguns destes casos, de facto, são como parêntesis insólitos no meio de um jornalismo que, nem sendo o do PÚBLICO, deixa de seguir a regra de se interessar por figuras de referência na sociedade, escândalos de alto nível, mais, muito mais, do que por estes anónimos caracteres envolvidos nos seus conflitos irrisórios. Mas nem todos os casos são assim e vê-se, por exemplo, que Rui Cardoso Martins está especialmente atento à brutalidade sobre mulheres na pequena vida familiar urbana ou suburbana, às vezes cometida por pais alcoólicos, outras vezes por irmãos que molestam sexualmente as irmãs e deixam disso um rasto verbal que é só de si um documento repugnante.
Neste sentido, o que é distintivo nestas crónicas é que, nunca perdendo de vista o essencial das experiências sociais que chegam à barra do tribunal, também nunca se dão como narrativas de casos quotidianos naturalizados: há sempre, mais ou menos desenvolvida, mais ou menos explícita, uma reflexão sobre o próprio facto de fazer crónica dessas experiências e sobre o modo de o fazer. Isto é, sobre a escrita. Não há, portanto, no estilo de Rui Cardoso Martins, a obrigação de extrair divertimento desta que é a sua versão da comédia humana efectiva, tal como ela se vive em Portugal no fim do século XX e nos inícios do século XXI. Mas também não há obstáculo a que de alguns dramatículos que preenchem a profissão dos juízes, procuradores e advogados se apure sobretudo o caricato recorrente. São, afinal, dramatículos de faca e alguidar, como tão inteligentemente sublinha a magnífica capa assinada por Vera Tavares e pela editora.
O cronista não é pois um moralista, como pelo contrário são (ou fingem ser, com bastante rendimento em vendas) vários repórteres do crime nos tablóides e na televisão sensacionalista; mas também não é um cartoonista dos tribunais, uma versão escrita do entertainer sem escrúpulos que expõe o ridículo da pequena vida. Cada caso destes tem um peso particular, que muitas vezes só se percebe no modo como as personagens falam dos acontecimentos, ou na maneira como o narrador comenta as falas, o modo de falar, o tom, os trejeitos, as atitudes de réus e acusadores. Não raro tudo isso é mais importante do que o desfecho propriamente jurídico do caso, o que também se explica pela quantidade deles que ficam, por assim dizer, casos sem desfecho. A última preocupação de um cronista de tribunal como Rui Cardoso Martins é, provavelmente, a lei. Não será impossível apontar aí a sua grande arte: a de fazer da crónica de tribunal um género literário em que a lei é um detalhe abstracto e francamente secundário.
Não é só a fuga do culpado que impede a severidade do exercício da lei. Às vezes é uma pertinaz ausência de provas, um estranho desaparecimento das coisas que torna a diferença entre crime e inocência tão fina como um cabelo. Como na história de Emília, a cabeleireira, no escândalo do capachinho. O final dessa crónica é a marca, tão inequívoca quanto esquiva, de um grande cronista: “O capachinho original ainda não se sabe onde está. Pode estar morto. Pode viver algures no estrangeiro. E Emília foi absolvida. Sem cabelo do delito não há crime.”