La dolce vita de Destroyer
Entre a celebração e o desencanto, entre Fellini e Sinatra, entre a pop e o jazz, entre classicismo e carnaval, eis o novo álbum do canadiano Dan Bejar, ou seja Destroyer.
Foi um novo alento para uma carreira que há muito merecia outro tipo de reconhecimento. Hoje é inegável que Dan Bejar é um dos maiores cantores-compositores da pop contemporânea, capaz de nos devolver canções de complexidade interior com alcance universal. Desta vez há temas expressivos que evocam o coração de Nova Iorque e momentos de grande enlevo orquestral, num álbum em que, diz-nos ele nesta entrevista, se misturam o encantamento e a decepção pela existência.
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Foi um novo alento para uma carreira que há muito merecia outro tipo de reconhecimento. Hoje é inegável que Dan Bejar é um dos maiores cantores-compositores da pop contemporânea, capaz de nos devolver canções de complexidade interior com alcance universal. Desta vez há temas expressivos que evocam o coração de Nova Iorque e momentos de grande enlevo orquestral, num álbum em que, diz-nos ele nesta entrevista, se misturam o encantamento e a decepção pela existência.
O seu último álbum, Kaputt, deu-lhe uma visibilidade que não tinha. Foi o seu maior sucesso comercial e crítico. No novo disco poderia explorar esse filão, mas pelo contrário fica-se com a ideia de que é uma reacção. O sucesso assusta-o?
Espero que não... [risos]. Tinha várias hipóteses depois desse disco. Poderia sentar-me, ficar a pensar sobre o assunto e fazer um disco na linha do anterior, ou algo muito diferente. Ou poderia também ir criando canção atrás de canção sem preocupações desse tipo. Foi o que aconteceu. No fim de contas queria apenas que este álbum espelhasse o som da banda Destroyer a desfrutar em colectivo numa sala de gravação de forma espontânea. Uma parte do disco reflecte essa aspiração. Há uma outra metade que constituiu um regresso a modelos antigos de canção, dos anos 1940 ou 1950, na forma de baladas orquestrais com arranjos jazzísticos. Esses foram os dois elementos nucleares. A maior parte dos músicos que tocaram em Kaputt estão presentes também aqui, portanto é natural que existam pontos de contacto, embora o resultado final seja deveras diferente, o que me parece coerente com o facto de dizerem de mim que não consigo fazer dois discos semelhantes.
Mas há características que se mantêm, como a sonoridade espaçosa, principalmente nas baladas orquestrais, contribuindo para o destaque da voz. Nesse sentido tem aqui algumas das suas canções mais clássicas.
É verdade. Em grande parte isso acontece porque pensei neste disco como um álbum clássico centrado na vocalização, atribuindo-lhe alguma vibração jazzística. Essa sensação de espaço está presente, embora este disco não seja coerente como Kaputt – que é aliás, provavelmente, o meu único álbum com uma consistência sonora do início ao fim –, aproximando-se mais do tipo de disco desalinhado que gosto de fazer. Dito isto, não me posso queixar do sucesso do álbum anterior. Foi com o dinheiro ganho com ele que pude gravar este disco nas melhores condições, nomeadamente com o acompanhamento de cordas.
Há pouco dizia que lhe interessou regressar a modelos pré-rock dos anos 1940 e 1950. Frank Sinatra, por exemplo?
Sim, claro. Oiço-o há muitos anos, mas curiosamente nem sempre são a voz ou o seu fraseado que me desafiam. Nos últimos tempos fui-me concentrando mais nos arranjos, não só das suas canções, mas de outros cantores da mesma geração, que se faziam rodear de verdadeiros mestres da orquestração. Talvez por isso algumas pessoas olhem para este disco como se pertencesse a um cantor bem mais velho do que eu. O que me satisfaz porque – e é raro dizê-lo – estou verdadeiramente satisfeito com a minha voz neste disco.
O ambiente das canções varia entre a celebração e a melancolia. Numa entrevista disse mesmo que incitou os seus músicos a tocarem de uma forma algo depressiva.
Fui mal interpretado quando disse isso. Estava meio a brincar. Esse clima de algum abatimento que se pode extrair de algumas canções só surgiu depois, quando estávamos nas misturas. Foi aí que desejei que algumas canções adquirissem uma tonalidade mais melancólica. Mas era apenas uma direcção, nada mais. Não era um objectivo. Algumas canções tinham um som pop moderno, muito cromático, orgânico e envolvente, e queria que contrastassem com outros temas, pintando-os com ambientes mais nebulosos, como se habitassem um mundo que já se perdeu, com qualquer coisa de romântico e cinemático.
Da última vez que falámos dizia-se algo saturado da vida de músico, mas fica a ideia de que nos últimos anos nunca deve ter estado tão ocupado com digressões. Que impacto é que isso teve neste disco?
Imenso. A ideia de como o disco deveria soar nasceu em palco. Foi a primeira vez que me aconteceu. Ou seja, percebi que queria trabalhar neste disco com aqueles músicos. É verdade que muitas vezes contesto o que se passa à volta de um concerto, porque o processo pode ser cansativo, mas não questiono o que fazemos em palco, especialmente com este grupo. Questiono-me sobre o adormecer de cansaço num autocarro em digressão e ter saudades de casa, mas sobre o som da banda, o estarmos em palco, isso não. Aliás, como cantor, nunca me senti tão confiante. Queria registar em estúdio a naturalidade com que tocamos porque gosto da qualidade desta banda ao vivo.
O álbum começa e encerra com Times Square e pelo meio ainda há outra versão desse tema. O imaginário de grandeza e sofisticação dessa zona de Nova Iorque alicia-o ou, pelo contrário, simboliza qualquer coisa na qual não se revê?
É uma canção simples e peculiar, uma das poucas que compus à guitarra, já que parte delas foi feita ao piano. É como um postal ilustrado em três versões. Não pensei nela como um gesto romântico endereçado à cidade de Nova Iorque. Pelo contrário. Pensava mais em Times Square como o reverso negativo de qualquer coisa de absurdo. Mas, ao mesmo tempo, é apenas um ambiente que associo aos anos 1970 – símbolo da excitação da cidade, de qualquer coisa pela qual nos podemos apaixonar com facilidade, mesmo se o mundo de promessas que Times Square continha se esbateu. É como se a actual Times Square fosse apenas uma memória dessa outra Times Square dos anos 1970, quando tudo parecia possível.
É canadiano, vive em Vancouver, perto da fronteira com os EUA. Nunca o confundem com um cantor americano?
A maior parte das vezes…[risos]. Mas não penso muito nisso. Não é grave. Essa proximidade com os Estados Unidos vivo-a sem conflito (já vivi noutros lados: aí ao pé, em Espanha, por exemplo). Mas é verdade que muitos canadianos passam o tempo nesse exercício comparativo.
O Canadá projecta uma imagem de bem-estar e tranquilidade, mas também de afastamento das convulsões do mundo actual, o que pode geral alguma estranheza: parece colocar-se numa redoma...
Tem muito a ver com essa proximidade com os EUA. É um pouco como o pai mais velho. Por um lado vivemos confortavelmente na sua sombra protectora, por outro desejamos emancipar-nos e ter uma voz própria. Mas claro que no interior do Canadá existem imensas divisões, como toda a gente sabe, apesar dessa imagem homogénea para fora.
Como é o seu quotidiano em Vancouver?
Eis uma boa e difícil pergunta: que diabo faço eu da minha vida?...[risos]. É estranho pensar nisso. Não tenho uma existência direccionada para as sociabilidades. Vejo os meus e-mails, não vejo muitos amigos, não tenho Facebook. Às vezes sento-me, apenas. Soa bizarro, eu sei. Não sou místico, nem nada disso, mas às vezes sou visitado por melodias e por palavras e tento passá-las para o papel ou para o iPhone para não me esquecer delas. Na preparação para este disco ia à tarde para um pequeno espaço que possuo e gravava demos que depois apresentava à banda. Mas é uma coisa que não acontece muito. Na verdade não sei muito bem o que responder: tenho uma filha, ela mantém-me muito ocupado.
Diz-se que antes de se abraçar uma actividade definitiva é muito comum ter-se falhado outra. Foi o seu caso?
Sim. Não vejo tantos filmes como no passado, mas o cinema é o meu primeiro grande amor, mais do que a música, ou a literatura, de que gosto também muito. Estou sempre em ligação com a música. Não toco em casa, mas oiço discos. Sem música daria em doido. O mesmo com a literatura. Não sou capaz de passar grandes intervalos de tempo sem ler qualquer coisa. Acho que fico um pouco deprimido. Ler inspira-me. Mas o cinema é sem dúvida a mais completa forma de arte. Gosto muito de Fellini, por exemplo. Pensei nele quando estava a fazer Poison Season, em especial no La Dolce Vita, talvez porque a maior parte das pessoas da minha idade que estão à minha volta parece em crise espiritual…[risos].
Há um misto de celebração e de desencanto nesse filme, um pouco como no seu novo álbum.
Sim, existe essa celebração do prazer misturada com sentimentos de profunda solidão, como se estivéssemos todos, mais ou menos, perdidos. Nos filmes de Fellini o mundo é sempre um lugar meio marado, mas capaz de nos devolver também momentos de fulgor e beleza. É um realizador muito físico na aproximação às imagens e à música, nessa mescla de classicismo e carnaval. Nesse sentido foi uma inspiração. Aliás os arranjos são influenciados por música instrumental para cinema, que tenho ouvido muito. Engraçado: no passado a influência do cinema estava mais presente nas letras, agora é provavelmente na música.
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Quando escreve uma canção, necessita de estar num ambiente específico, ou pode fazê-lo em qualquer lado?
Quando era mais novo os aeroportos revelavam-se especialmente criativos. Eram inspiradores. Agora não sei muito bem como é. Ando sempre com um bloco de apontamentos, mas não sei para quê, porque já não funciono assim. Não sou muito disciplinado. É estranho, mas agora é como se as palavras viessem ter até mim, e aí sei imediatamente se elas possuem qualidade melódica. Há até uma reacção física às palavras, difícil de explicar, mas quando acontece sei que pode ser o princípio de uma bela canção.