Confiar ou não nas pessoas, eis a questão
“Confiar nas pessoas” é o lema básico da política democrática.
Os portugueses sabem que Portugal esteve em bancarrota. Foi por isso que a diabolizada “troika” teve de ser chamada. E foi por isso que houve um programa de assistência e a correspondente política de austeridade. Se o programa foi mal ou bem aplicado, se podia ter sido diferente, etc., tudo isso pode e deve ser discutido. Mas nada nessa discussão fará sentido sem a assunção prévia da gravidade da situação que enfrentámos e que, em parte, ainda enfrentamos. E sem detectar com algum rigor e bastante energia as razões que nos levaram à bancarrota.
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Os portugueses sabem que Portugal esteve em bancarrota. Foi por isso que a diabolizada “troika” teve de ser chamada. E foi por isso que houve um programa de assistência e a correspondente política de austeridade. Se o programa foi mal ou bem aplicado, se podia ter sido diferente, etc., tudo isso pode e deve ser discutido. Mas nada nessa discussão fará sentido sem a assunção prévia da gravidade da situação que enfrentámos e que, em parte, ainda enfrentamos. E sem detectar com algum rigor e bastante energia as razões que nos levaram à bancarrota.
Lamento que o líder da Oposição não pareça ter consciência destes factos cruciais. Julgo que a única atitude credível por parte do líder do partido que estava no Governo na época da bancarrota teria sido começar por assumir frontalmente essa responsabilidade. Não o fez.
Receio que essa lacuna afecte a credibilidade do novo programa que apresenta. Pode ser um programa fantástico. Mas tem de responder à pergunta: por que motivo(s) entrámos em bancarrota? Em rigor, todos nós (incluindo os membros do actual Governo) devíamos tentar responder a essa pergunta. Seria uma espécie de “exame de consciência” que talvez não nos ficasse mal.
Quem seguramente tem um programa fantástico é o novo líder do Partido Trabalhista britânico, Jeremy Corbyn. No sábado passado, foi eleito esmagadoramente com quase 60% dos 422 mil votantes trabalhistas. Entre as propostas do seu programa conta-se: (1) saída da NATO; (2) desnuclearização do Reino Unido; (3) fim da austeridade; (4) nacionalização dos caminhos-de-ferro, dos serviços de água e electricidade; (5) abolição das propinas nas universidades; (6) fim dos cortes nas prestações sociais do estado; (6) reforço do apoio do estado às artes, educação e ciência.
É indubitável que 251 mil votos (os referidos 60%) são muitos votos. E todos inteiramente respeitáveis. Mas é igualmente indubitável que são uma pequeníssima fracção dos muitos milhões de eleitores britânicos. Vários líderes históricos do Partido Trabalhista — entre os quais Tony Blair e Gordon Brown — avisaram repetidamente que a eleição do sr. Corbyn afastaria o partido de qualquer esperança de obter uma maioria parlamentar. Isso parece ter apenas reforçado o entusiasmo dos apoiantes de Corbyn: “mais vale um programa certo do que um programa maioritário”, disseram eles.
Receio detectar aqui mais uma dissonância cognitiva. Por que motivo um “programa certo” não deve ser “um programa maioritário”? E porque é que um “programa maioritário” não pode ser um “programa certo”?
A única resposta possível é porque os apoiantes do sr. Corbyn não confiam nos eleitores. Pertencendo à escola marxista, eles desdenham a chamada “democracia burguesa” e os eleitores “alienados pelo consumismo”. Preferem o programa ideológico das vanguardas esclarecidas e desprezam o senso comum das pessoas comuns.
Infelizmente, uma dissonância semelhante, embora de efeitos opostos, parece por vezes afectar os políticos moderados, ao centro-esquerda e ao centro-direita. Impressionados pelos estudos quantitativos dos técnicos de marketing, estes políticos dizem o que os técnicos lhes mandam dizer. Hoje uma coisa, amanhã outra. Um truque aqui, mil promessas ali.
Em ambos os casos — entre os marxistas centrados na pureza ideológica e entre os moderados dominados pelo marketing — encontramos um equívoco comum. Eles não confiam na capacidade de avaliação de argumentos políticos por parte das pessoas comuns.
Acontece que todos os grandes líderes democráticos se distinguiram por acreditar no bom senso das pessoas comuns. “Trust the people” era uma das máximas preferidas de Winston Churchill e de Edmund Burke. Por isso mesmo, eles foram capazes de muitas vezes desafiar modas dominantes. Entendiam-nas como passageiras e acreditavam na capacidade de as contrariar — dirigindo-se com vigor ao bom senso das pessoas comuns. E não consta que seguissem sondagens.
Isso mesmo foi celebremente dito por Péricles, há 2500 anos, na inesquecível Oração Fúnebre em defesa da democracia ateniense: “Embora só uns poucos sejam capazes de criar uma política, todos nós somos capazes de a julgar.”
Por outras palavras, não há qualquer oposição inevitável entre um “programa certo” e um “programa maioritário”. “Confiar nas pessoas” é o lema básico da política democrática.