A viagem de todos os sonhos

Milhares de refugiados sírios estão a chegar à Alemanha, depois de, durante semanas, terem percorrido os Balcãs e a Hungria, a pé, de barco, de autocarro e comboio.Acompanhámos a viagem, de Budapeste a Munique.

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Domingo à noite, compartimento 15, carruagem 10, comboio especial Viena-Munique. Os olhares e as vozes são filtrados por uma barreira narcótica de cansaço. Yussef tem 3 anos e está quase a chegar a casa. Vai a dormir, cheio de confiança. O irmão, Abud, recusa-se a descansar. É daqueles miúdos que não param. Mesmo a morrer de sono, atira-se para o chão, grita, puxa o cabelo ao pai, rebola no colo da mãe, pendura-se na janela, esperneia, exige atenção, quer mamar, ri à gargalhada, desata a chorar. Aliás, quanto mais cansado, mais eléctrico. E não se percebe de onde vem a energia que alimenta aquele corpinho de gafanhoto. Tem um ano de idade, um babygrow de pêlo branco com patas de urso e os olhos esbugalhados e vermelhos de sono e petulância. “Abud!” A mãe, Yathreb, 26 anos, está nas últimas. No limite das suas forças. “Abud! Vai ter com o pai!”

Ahmad, 31 anos, levanta-se e leva o filho ao colo para o corredor. Tenta adormecê-lo, de um lado para o outro, evitando pisar os passageiros deitados no chão. “Aquele é um rapaz bom”, diz, apontando para Yussef, estendido como um anjo no banco do comboio. “Este é mau”.

Todos os pais sabem que há dois tipos de crianças. Se umas são dóceis, sossegadas, comem e dormem a horas, já outras parecem ter vindo ao mundo para lhes roubar anos de vida. Funcionam em contraciclo. Ficam despertos quando todos dormem, mas adormecem quando é preciso sair de casa, e têm de ser levados ao colo. Abud, que agora despiu o babygrow de urso, e está descalço, de pijama cor-de-rosa, é um destes casos.

“Quando precisamos de descansar, ele não deixa”, diz o pai. “Mas quando temos de atravessar uma fronteira a pé, clandestinamente, pela floresta, ou chegamos a um campo de refugiados, ele adormece, e temos de carregar com ele. Esta família só é feliz quando ele está a dormir”.

Quando ele adormece e começa a sonhar está também na sua nova casa, na Alemanha, com o irmão e os pais.

Budapeste, domingo de manhã. O parque Varosliget, nas imediações da estação de Keleti, está transformado em dormitório. Famílias inteiras ou grupos de homens acampam nos relvados entre o lago, o jardim zoológico e os castelos que são a atracção turística do parque.

Sacos, mantas, tendas, roupas, garrafas de água dispõem-se ao longo dos caminhos, com a desordem própria de quem acabou de chegar e pode ter de partir a qualquer momento. “Dormíamos na estação, mas a polícia expulsou-nos a noite passada”, diz Karim, um sírio de 27 anos, calças rotas e muito sujas. “Estávamos na estação de Keleti há cinco dias, porque não nos deixavam apanhar nenhum comboio. Agora, muitos partiram a pé para a fronteira, mas nós estamos à espera de uns amigos, que ficaram detidos num campo próximo da fronteira sérvia”.

Há grupos de refugiados nos passeios, nas entradas dos centros comerciais, nas passagens subterrâneas, nos acessos à estação de Keleti. São aglomerados dispersos, preparando-se para partir. Voluntários húngaros trouxeram roupa, sapatos e brinquedos para distribuir. Espalharam tudo no chão, na passagem que dá acesso às linhas férreas. Algumas mulheres aproveitam uns sapatos de criança, ursinhos de peluche, pouco mais. É óbvio que os refugiados não estão muito interessados nos donativos. A maioria quase nem traz bagagem, e não parece preocupar-se com isso. O importante é seguir viagem,  não é transportar bens ou utensílios. “Quando chegarmos ao destino compraremos tudo o que precisamos”, diz Shadi, 39 anos, que veio num grupo de cinco homens. “Nós não vamos em busca de dinheiro, mas apenas de segurança. O dinheiro é fácil de obter, desde que haja paz”.

Nas últimas semanas, milhares de refugiados sírios, misturados com outros de várias nacionalidades, atravessaram os Balcãs até à capital húngara, para daí seguirem para a Alemanha ou outros países da Europa ocidental. Mas o caminho foi-lhe barrado em Budapeste. Impedidos de entrarem nos comboios ou autocarros, apesar de terem dinheiro para comprar os bilhetes, foram-se amontoando na estação de Keleti.

Mas sexta-feira, dia 4, algumas centenas deles tomaram uma decisão: caminhar até à fronteira austríaca. Iniciaram aquela a que chamaram a “marcha da liberdade”, preparando-se para percorrer centenas de quilómetros a pé, e não foram impedidos pela polícia húngara, como se temeu.

As autoridades optaram aliás por enviar autocarros, que transportaram os refugiados até à fronteira. Aos que ainda se encontravam em Keleti, ou aí chegaram durante o dia, foi, desde o final da tarde, autorizado o embarque nos comboios que partiam para ocidente.

À entrada do terminal de uma das linhas, um cartão escrito à mão em inglês indicava “Destino: Hegyesshalon, a 5 quilómetros da fronteira com a Áustria. Preço: 13 euros. Mudança de comboio aqui”. Uma seta apontava para um ponto num mapa desenhado a esferográfica: "Gyor”.

Os refugiados começaram a comprar os seus bilhetes e, às 13h10m, hora marcada para a partida, surgiram de todas as direcções, numa fila imensa para entrar nas carruagens. O cais está repleto de polícias, e são eles que inspeccionam os bilhetes. A estação parece de súbito transformada numa zona militar. Onde reinava o caos, há agora uma ordem intimidante.

A polícia não faz nada, excepto cortar os bilhetes e apontar o caminho para o comboio, e as pessoas avançam até à plataforma com ordem e sem grande alarido. A composição enche até não haver lugares sentados nem de pé, e arranca à hora marcada.

Compartimento 23, carruagem 8. Zobaida, Abdalrahman e Isra’a vão muito calados, a folhear as revistas do IKEA disponíveis nos seus lugares. No resto da carruagem são já audíveis algumas manifestações de alegria, mas para os três do compartimento 23 o recato parece ser a melhor opção. De início ainda sussurravam entre si, mas calaram-se totalmente quando dois húngaros se sentaram nos lugares vagos. Até atravessarem a fronteira, estão decididos a fechar os olhos e conter a respiração.

Abdalrahman, de 15 anos, é o único homem da família, por isso é ele quem mostra os bilhetes ao revisor, que permanece sisudo, mesmo quando Isra’a, de 20 anos, irmã de Abdalrahman, sorri para ele. A tia, Zobaida, de 54 anos, olha para o chão. Estão os três muito bem vestidos, limpos, e trazem apenas uma pequena mochila cada um. Dir-se-ia que fazem uma pequena viagem de fim-de-semana, para visitar algum familiar.

Mas vêm de Damasco e querem chegar à Suécia, onde têm amigos à espera. Compraram um “bilhete” completo, de que preferem não dizer o preço. O traficante garantiu que os deixava em Estocolmo, através de uma rede de contactos em vários países. O difícil seria chegar à Hungria, avisou ele. Depois, o caminho estaria aberto.

Em parte tinha razão. As primeiras etapas foram duras. Chegar à Turquia e daí, da cidade de Esmirna, atravessar para a Grécia, Mitalini, depois para Kavala, Salónica, cruzar a fronteira para a Macedónia, e depois para a Sérvia. A “agência de viagens” informal tinha tratado de todos os meios de transporte, mas na fronteira da Sérvia com a Hungria abandonou-os à sua sorte.

“Ficámos sozinhos, e tivemos de caminhar uns 3 quilómetros, pela floresta, à noite”, conta Isra’a. “Fomos obrigados a passar clandestinamente, porque a fronteira estava fechada, e com muitos polícias. Foi muito perigoso. Estávamos com um grupo muito grande, todos a andar em silêncio. Mas cinco rapazes foram apanhados. Foram presos e levados para um campo de detenção”.

Isra’a, que usa óculos, xaile nos joelhos e um véu prateado na cabeça, faz o relato com um sorriso envergonhado, esperando uma compreensão especial para o que terá sido a primeira ilegalidade que cometeu na vida. É também a primeira vez que sai do seu país. Tem um ar de jovem de classe média alta, confundir-se-ia facilmente com uma estudante de Erasmus. É difícil imaginar como, com os seus dois acompanhantes, tão frágeis como ela, pode ter acabado de viver uma aventura tão desmesurada. Talvez eles próprios também não acreditem, ou, numa estratégia de preservar a inocência, perante si e os outros, se esforcem por fingir que nada aconteceu.

Isra’a terminou este ano a licenciatura em Literatura Inglesa, e aceitou a decisão do pai de partir para a Suécia. Ele, engenheiro numa grande empresa de Damasco, e a mãe, irmã de Zobaida, juntar-se-lhes-iam em breve.

“Há bairros nos arredores da cidade, muito perto da nossa casa, que estão a ser bombardeados, e onde morrem pessoas todos os dias. É muito perigoso ficar lá. O meu pai já tinha pensado tirar-nos do país, mas decidiu fazê-lo agora, porque muitas pessoas tiveram a mesma ideia. Ele achou que agora ia ser possível. Que era a altura certa.”

O comboio entra na ponte que separa Buda e Peste, nas duas margens do Danúbio. Os três sírios ficam indiferentes à beleza da paisagem. Pergunto a Isra’a se sabe o nome daquele rio. Não sabe. Ela e o irmão mantêm-se agarrados ao telemóvel durante grande parte da viagem, tentando captar algum sinal wifi.

O comboio pára na estação de Tatabanya, onde há vários polícias na plataforma, o que sucederá em todas as outras paragens. Nenhum refugiado está interessado em apear-se antes da fronteira, mas a polícia mobilizou-se em grande escala para garantir que isso não acontece. Alguns agentes fardados entram no comboio e percorrem os corredores.

Paramos em Gyor, mas alguém diz que afinal não é necessário mudar de comboio. Percebe-se vagamente que tudo foi alterado, que já não estamos num comboio normal, que uma lógica superior tacitamente se impôs. A partir daqui, já não há húngaros na viagem.

Quem começasse agora a sonhar teria a certeza de que os líderes mundiais decidiram abolir vistos e fronteiras, e que se pode viajar livremente pelo mundo, onde uma nova ordem utópica é subitamente plausível. Na Síria, alguém teve a premonição misteriosa de que poderia partir, como se fosse portador de passaporte alemão ou britânico, sem ser detido em lado nenhum. E isso transformou-se numa ordem de acção, percorrendo à velocidade da luz a consciência colectiva.

Hegyesshalon, início da tarde. Centenas de pessoas foram sendo depositadas num apeadeiro antes da pequena cidade perto da fronteira, para onde se preparam para avançar a pé. Mas o fascizante governo húngaro de Viktor Orbán mudou entretanto de política. Depois de várias semanas a impedir os movimentos dos refugiados, internando-os à força em campos prisionais, decidiu agora reencaminhá-los rapidamente para a Europa ocidental.

“O meu sonho era entrar na zona da União Europeia”, diz Jamir, sírio, de 25 anos. “Percorri vários países, com grandes riscos, com o objectivo de chegar à Hungria. Aí tudo será diferente, pensei. Já estarei na Europa. A grande surpresa é que fui mais maltratado na Hungria do que em todos os outros países. Foi uma grande decepção. Afinal ainda não estava na Europa.”

Jamir, que diz já ter estado detido por uma milícia na Síria, não confia em ninguém, e só tem uma ideia na cabeça: a Noruega. Não sabe explicar porquê. Amigos falaram-lhe, viu uma vez um filme. Motivos pouco sólidos, mas não importa. Quer chegar à Noruega, e não acredita nos transportes públicos: tenciona apanhar um táxi. Talvez de Viena, se conseguir lá chegar. O preço não é problema.

No cais da estação entra um comboio de alta-velocidade. Fará paragem em Hegyesshalon, mas o destino, está escrito nas carruagens, é Viena. Jamir, Isra’a, o irmão e a tia, mais umas centenas de pessoas, sobem a bordo. Um funcionário da estação ainda diz, em inglês: “Só para quem tem bilhete para Viena”.

Ninguém tem, mas não é altura de discutir pormenores. A família de Isra’a passa de carruagem em carruagem, até encontrar lugar na 1ª classe. São compartimentos de luxo, ocupados por alguns húngaros e turistas, que rapidamente ficam cheios de sírios, com calças rotas e ténis sujos, sem bilhete nem passaporte. Ninguém fala com eles, mas também ninguém se queixa. Não aparece revisor, nem polícia, como se houvesse uma conspiração geral para discretamente os expulsar do país.

O comboio nem pára na fronteira. Não há dúvida: o pequeno ponto azul do GPS do telemóvel surge a piscar no lado austríaco do mapa Google. Estendo o ecrã a Isra’a, que percebe imediatamente o que aquilo significa. “Finalmente estamos em segurança”, diz ela.

Estação Central de Viena, final da tarde. Quando o comboio pára, ouve-se lá fora um alarido de palmas e gritos. Isra’a sobressalta-se. Escutou toda a espécie de histórias contraditórias sobre manifestações de apoio aos refugiados e ataques de neo-nazis. “Isto é para nos dar as boas-vindas, ou é contra nós?”, pergunta.

“Refugiados, bem-vindos à Áustria”, dizem os cartazes. Um grupo de jovens voluntários e activistas está na estação distribuindo comida e bebidas, roupa, aconselhamento. Alguns seguram um papel que diz: “Tradutor. Árabe, inglês, alemão”.

São muitos, e fazem os possíveis por transmitir afecto. Têm bancas com refeições quentes, distribuem kits para viagem. Isra’a treme de emoção. Está desorientada pela recepção calorosa, mas não pode perder tempo. Tem um número de telefone para onde deve ligar. O plano inclui permanecer alguns dias em Viena, até prosseguir a viagem pelo Norte da Alemanha e a Dinamarca, ficando por períodos mais ou menos longos em várias cidades, em casas ou hotéis. Tudo incluído no “pacote” previamente pago pelo pai, em Damasco.

Faz o telefonema e dão-lhe uma direcção para onde se deve dirigir, de táxi. Toma cuidados para despistar os outros companheiros de viagem, despede-se e entra no carro com o irmão e a tia.

Jamir fica parado, sozinho, no hall da estação, sem saber o que fazer. No meio da confusão, há correrias em direcção a uma outra plataforma. Uma composição especial está prestes a partir, já superlotada. Jovens voluntários encaminham os refugiados, dão-lhes mantimentos para a viagem, água, medicamentos.

A atmosfera é de festa. “Viena-Munique”. Lê-se nas carruagens. “Ainda há lugar para mais alguns. Venham! Venham!” Jamir aproxima-se, indeciso, mas acaba por entrar. Eu sigo-o. Mais grupos trepam para as carruagens, hipnotizados pela palavra mágica — Munique.

O comboio enche até ao sufoco. Os voluntários andam lá dentro, a entregar coisas, a falar com as pessoas. Ouço alguém perguntar-lhes se não faz mal não ter bilhete… Os jovens austríacos riem, distribuem abraços e carícias. “Não te preocupes. Ninguém te vai pedir um bilhete.”

Nos rostos de todos, o cansaço transforma-se numa euforia tingida de ingenuidade e loucura. Sentem que vão iniciar a viagem mais extraordinária das suas vidas. E no entanto, de todos estes passageiros, nenhum alguma vez visitou Munique, ou a Alemanha, ou até a Europa. É uma viagem para o desconhecido. E, uma vez chegados ao destino, o que acontecerá? Ninguém sabe. Nem isso os preocupa. É a Alemanha. Um fim em si mesmo. Acabou-se a infelicidade e o medo.

Já ninguém desconfia de ninguém. Aqui chegados, façam deles o que quiserem. Levem-nos para campos de refugiados, façam-nos esperar meses, ou anos, por um documento de residência. Será sempre diferente, será sempre humano. Uma multidão endurecida pela guerra, agora dócil, feliz, rendida. Quem adormecesse sonharia com um paraíso chamado Alemanha.

Compartimento 15, carruagem 10. “No Médio Oriente somos números. Na Europa somos tratados como seres humanos”, diz Ahmad, que partiu da Síria há 24 dias. Abud, o filho mais novo, não há meio de adormecer. De dez em dez minutos pede a mama à mãe, Yathreb. Yussef parece ter decidido só acordar na sua nova casa. “Eu minto-lhe”, admite o pai. “Ele quer compreender tudo, está sempre a fazer perguntas, e eu vou inventando explicações”.

Disse-lhe por exemplo que os polícias húngaros que os levaram para a prisão eram soldados europeus que os protegeriam dos militares sírios que lhes bombardearam a casa. E que as noites passadas ao frio no campo prisional na Hungria eram um exercício de preparação para a neve do Inverno europeu, onde teriam a sua nova casa.

Quem agora começasse a sonhar veria Guido, a personagem interpretada por Roberto Benigni, inventando histórias para o filho, no campo de concentração.

Ahmad e a família vêm de Dara’a, a cidade do Sul da Síria onde começou o conflito. “Pensámos, ao princípio, que era uma Primavera, como na Tunísia e Egipto. Nunca pensámos que a guerra se tornasse interminável.”

Em 25 de Maio de 2012, a casa de Ahmad e Yathreb foi destruída por 13 bombas do exército governamental. Fugiram da cidade, e andaram de casa em casa, nos últimos anos. Yussef nasceu pouco depois, na Jordânia, onde tentaram refugiar-se. Ahmad, que é engenheiro agrícola de formação, trabalhou lá, com a ajuda de um primo que vive no país vizinho, mas acabou por ser expulso. Voltou, pagando mais de 1500 euros para passar a fronteira, para o nascimento do segundo filho, Abud.

“Nos últimos três anos, vivemos em mais de 30 casas. Sempre a fugir de um lado para o outro, para nos pormos a salvo da violência. Até que, há dois meses, tomámos a decisão de partir.”

Era um empreendimento caro. Ao todo, Ahmad pagou 10 mil euros pela viagem. Só para os passaportes foram 4 mil, mais 1600 para o voo da Jordânia à Turquia. Não os tinha, mas conseguiu empréstimos da família e dos amigos.

Todos o aconselharam a não levar mulher e filhos. Seria demasiado perigoso. O que os outros homens fazem é deixar a família num campo de refugiados na Jordânia ou Turquia, e partem sozinhos para a Europa. Mais tarde, com a situação estabilizada, viriam buscar os familiares.

“Tentei encontrar pessoas de confiança que ficassem com os meus filhos, mas não encontrei. Fizemos então a opção mais arriscada: trazê-los. Se tivesse êxito, toda a missão estaria cumprida, enquanto para os outros ainda faltaria a parte mais importante.”

A parte mais dramática da viagem foi a travessia da Turquia para a Grécia. “Foi a máfia que organizou a viagem. Meteram 100 pessoas numa furgoneta, para uma viagem de 5 horas, onde mal podíamos respirar. Depois, mais 3 horas de barco. Ainda pensei desistir, mas não era possível. Eles tinham armas, e obrigaram-nos a entrar. Éramos 46 pessoas no pequeno barco, nove das quais crianças. No meio do mar, o barco começou a meter água, e acabou por afundar. Estivemos 45 minutos na água, a nadar, sem saber para onde. Tive de segurar os meus filhos no ar, com as mãos, enquanto tentava manter-me à tona. Não morreram por milagre. Os nossos companheiros de viagem, jovens que vinham connosco, sem família, ajudaram-me a salvar os meus filhos. Arriscaram a vida para não os deixarem morrer.”

Foram resgatados por um barco de pescadores gregos, levados para a ilha de Samos. “As crianças ficaram mais de 5 horas sem roupas, numa unidade militar. Um sítio onde não havia nada, nenhuma loja onde pudéssemos comprar agasalhos ou comida. Porque ficámos sem nada no naufrágio.”

Acabaram por ser metidos num barco para Atenas, 13 horas de viagem, de pé. De Atenas a Salónica, mais 9 horas de autocarro. Quando passaram a fronteira para a Macedónia, caminhando durante dez quilómetros (com Abud ao colo, sempre a dormir), e esperando mais três horas ao sol, foram agredidos por rapazes das povoações circundantes, que acabaram por ser presos pela polícia.

Na fronteira entre a Macedónia e a Sérvia esperaram três dias na rua, sem água nem comida. Eram mais de 500 pessoas ali deixadas sem qualquer explicação. Os guardas não falavam inglês, e nem tentaram comunicar com eles.

A travessia da Sérvia foi feita de uma vez só, de autocarro. “E a Hungria foi a grande surpresa. Inicialmente, fomos bem recebidos, com umas senhoras a darem comida e roupa, as televisões a fazerem entrevistas. Mas à noite, quando as câmaras se afastaram, e ficámos sozinhos com a polícia, a atitude mudou completamente. Trouxeram carros e levaram-nos para a prisão. Ficámos um dia a pão e água num campo militar. Os polícias eram agressivos para com as crianças, que tinham medo deles. A seguir levaram-nos para outro campo, perto da fronteira com a Roménia.”

Foi aí que Ahmad leu a notícia sobre Aylan, o menino sírio de 3 anos encontrado morto na praia, porque o barco onde seguia, na travessia para a Grécia, naufragou, precisamente como acontecera com a sua família.

“Foi a primeira vez que chorei. Pensei em Yussef, que também tem 3 anos. Se tivesse acontecido alguma coisa aos meus filhos, toda a minha vida teria falhado. Chorei tanto naquele campo. Pensava: ‘O que foste fazer? Como puseste assim em risco a vida dos teus filhos! Aylan podia ser Yussef. E no entanto temos de agradecer a Aylan, porque foi a tragédia dele que mudou as atitudes na Europa. Yussef agora odeia o mar, diz que não quer ir à praia nunca mais. Mas Aylan morreu para que nós chegássemos aqui.”

Nesse campo, em Dicibrin, as condições eram ainda piores do que nos outros. Havia presos de delito comum. “Ficávamos na rua, ao frio. Pedimos cobertores para as crianças, mas não trouxeram. Ninguém falava inglês. Havia bichos. Eu ficava acordado toda a noite, a vigiar o sono dos meus filhos, com medo dos criminosos.”

Tentaram fugir. Umas duas mil pessoas tentaram chegar a Budapeste. Meteram-se num comboio, mas havia polícias em todas as estações, impedindo-os de se apearem. Voltaram a Dicibrin. Numa segunda tentaviva, partiram a pé. Caminharam duas horas, quiseram ficar num hotel, mas nenhum os aceitou. Voltaram para trás.

Acabaram por conseguir apanhar um comboio para Budapeste. Daí, caminharam para a fronteira austríaca. “Uma mulher ensinou-nos o caminho, e partimos. Abud sempre ao colo. Surgiu um homem brasileiro que nos ajudou. Comprou bilhetes de comboio para 200 pessoas, até Hesysshalom. Andámos mais 5 quilómetros até à fronteira. Éramos umas duas mil pessoas.”

Na Áustria, foram recebidos calorosamente. “Era o inferno, agora era o paraíso. Vieram médicos, polícias, homens de negócios. Perguntei-lhes porque estavam ali. Disseram: para ajudar. Um homem veio falar connosco, levou-nos para casa dele, deixou-nos comer e tomar banho.”

Ahmad quer viver na Alemanha, porque acha que o país precisa dele. “É um país grande e rico, que precisa de trabalhadores, como precisou nos anos 60. A Alemanha cresceu devido aos Gastarbeiters turcos, dessa época. As pessoas que querem ir para a Escandinávia, fazem-no porque pretendem viver de subsídios. Eu não. Tenho ambição. Quero trabalhar muito, e fazer parte do crescimento de um grande país.”

Não pensa voltar à Síria. “A guerra lá vai durar pelo menos mais 35 anos. Só há dois tipos de pessoas que ficaram na Síria: os que não têm dinheiro nem ninguém que os ajude para sair, e os que lucram com a guerra. As pessoas tornaram-se más. Têm os corações negros. Todos querem combater. Durante duas gerações, ninguém vai querer a paz na Síria. Nem os sírios, nem os americanos, os russos, os sauditas e os iranianos. Todos estão a combater na Síria.”

Na janela correm as paisagens verdejantes da Áustria e da Baviera, mas nenhum dos sírios parece reparar. Ao cair da noite paramos em Salzburgo, durante uma hora. Depois viajamos por mais algumas horas, o que faz Ahmad pensar que o comboio já não vai para Munique.

“Talvez já não haja espaço em Munique, e nos levem para outra cidade”, diz ele, depois de tentar informar-se com alguns dos voluntários. Mas não está preocupado. Qualquer cidade serve, desde que na Alemanha. Porque quando Yussef lhe pergunta onde é a nova casa, responde: “Na Alemanha.” Ainda que a mulher, Yathreb, ainda sob a hipnose do tratamento afectuoso em Viena, optasse por viver na Áustria.

“Talvez estejam à espera que o comboio da frente se esvazie, na fronteira, para poder avançar este”, tenta ele outra explicação, entusiasmado.

Mas sempre chegamos a Munique, a meio da noite. Milhares de refugiados saem dos comboios e são encaminhados para recintos cercados, dentro da estação, onde terão de esperar por autocarros da polícia, que os levarão a alojamentos temporários, onde serão registados.

Há agentes fardados por todo o lado, a conduzir os refugiados pelos caminhos determinados. Não é permitido sair dos percursos. Nos altifalantes, vozes falando em inglês com sotaque alemão dão instruções. “Please, walk to the right!”. Milhares de refugiados são conduzidos de um lado para o outro, cambaleantes. Quem começasse agora a sonhar talvez formasse na cabeça imagens arrepiantes de multidões trazidas em comboios sob ordens de soldados alemães.

Um polícia grita para um sírio que tenta ultrapassar as grades, fugindo para a rua. Mas logo a seguir põe-lhe a mão na cabeça e diz a rir “Estou a brincar. Não tenhas medo. O caminho é por ali”.

Mais uma vez há comida e roupa, bebidas quentes. A multidão senta-se no chão e aguarda pacientemente. Mas não Jamir. Quer apanhar o seu táxi para a Noruega e não tem paciência para burocracias. Encosta-se a um canto, espera a oportunidade, e escapa por baixo da grade.

Encontro-o mais tarde lá fora, a comer um hambúrguer no restaurante Subway. Disse-me que iria dormir ali, e de manhã procuraria o seu táxi. Quando começasse a sonhar estaria na Noruega.