O “camarada Corbyn” ou o drama da social-democracia
O destino do Labour é mais um sério aviso sobre o que se está a passar na paisagem política europeia, com a emergência de forças de natureza populista ou extremista, à direita e à esquerda.
A humilhante derrota de Ed Miliband nas legislativas de Maio abria inevitavelmente a porta para um duro confronto pela identidade do partido. Quando, em 2010, Miliband foi eleito, vencendo o seu irmão mais velho David que representava a mudança na continuidade do blairismo, o resultado foi uma meia surpresa. David era o preferido do establishment. Ed apostou na viragem à esquerda, tirando proveito da revolta dos trabalhistas contra o “liberalismo” de Blair. Nos últimos cinco anos tentou encontrar uma linha de rumo que respondesse às preocupações de uma vasta classe média “espremida” pelos anos do neoliberalismo económico e pelos primeiros efeitos da crise financeira na Europa. Nunca conseguiu acertar num caminho que não fosse de curvas e contracurvas. Deixou o seu partido perder aquilo que Blair lhe tinha oferecido desde 1994, garantindo três vitórias eleitorais consecutivas: a credibilidade na gestão da economia e o sentido das realidades novas que desafiavam a sociedade britânica na era da globalização. Sinal dos tempos, o Labour acaba de eleger para a sua liderança uma figura da “pré-história” que nos remete para os anos 80, quando o Labour atravessou 18 anos de oposição, defendendo uma linha radical que Jeremy Corbyn foi retirar a um baú do qual já ninguém se lembrara. Há um par de meses, a hipótese da sua vitória não era sequer levada em conta. No último dia para apresentar candidaturas, teve de pedir aos outros candidatos que lhe emprestassem os 35 deputados necessários para formalizá-la. O mundo mudou radicalmente nas últimas décadas. Corbyn não. Quer ser um Syriza em ponto grande, na versão anterior à conversão de Alexis Tsipras à ortodoxia europeia. Não se trata apenas do programa económico de outro tempo. O seu perfil político, do qual pouca gente deu conta (votou quase sempre contra qualquer proposta do Labour em Westminster) inclui o antiamericanismo e o antimilitarismo típicos da extrema-esquerda. Responsabiliza o Ocidente por todos os males do mundo. Foi visita frequente de Chávez, de Putin ou de Teerão. Queria o desmantelamento da NATO quando acabou a Guerra Fria. Quer acabar com a frota nuclear britânica. Mesmo assim conseguiu uma enorme mobilização de jovens à procura de uma causa ou de trabalhadores fartos de austeridade. “Os apoiantes jovens do Labour não querem alguém que torne o partido elegível, querem alguém exprima a sua revolta”, escreve Robert Colvil, antigo comentador do Telegraph, no site Politico
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A humilhante derrota de Ed Miliband nas legislativas de Maio abria inevitavelmente a porta para um duro confronto pela identidade do partido. Quando, em 2010, Miliband foi eleito, vencendo o seu irmão mais velho David que representava a mudança na continuidade do blairismo, o resultado foi uma meia surpresa. David era o preferido do establishment. Ed apostou na viragem à esquerda, tirando proveito da revolta dos trabalhistas contra o “liberalismo” de Blair. Nos últimos cinco anos tentou encontrar uma linha de rumo que respondesse às preocupações de uma vasta classe média “espremida” pelos anos do neoliberalismo económico e pelos primeiros efeitos da crise financeira na Europa. Nunca conseguiu acertar num caminho que não fosse de curvas e contracurvas. Deixou o seu partido perder aquilo que Blair lhe tinha oferecido desde 1994, garantindo três vitórias eleitorais consecutivas: a credibilidade na gestão da economia e o sentido das realidades novas que desafiavam a sociedade britânica na era da globalização. Sinal dos tempos, o Labour acaba de eleger para a sua liderança uma figura da “pré-história” que nos remete para os anos 80, quando o Labour atravessou 18 anos de oposição, defendendo uma linha radical que Jeremy Corbyn foi retirar a um baú do qual já ninguém se lembrara. Há um par de meses, a hipótese da sua vitória não era sequer levada em conta. No último dia para apresentar candidaturas, teve de pedir aos outros candidatos que lhe emprestassem os 35 deputados necessários para formalizá-la. O mundo mudou radicalmente nas últimas décadas. Corbyn não. Quer ser um Syriza em ponto grande, na versão anterior à conversão de Alexis Tsipras à ortodoxia europeia. Não se trata apenas do programa económico de outro tempo. O seu perfil político, do qual pouca gente deu conta (votou quase sempre contra qualquer proposta do Labour em Westminster) inclui o antiamericanismo e o antimilitarismo típicos da extrema-esquerda. Responsabiliza o Ocidente por todos os males do mundo. Foi visita frequente de Chávez, de Putin ou de Teerão. Queria o desmantelamento da NATO quando acabou a Guerra Fria. Quer acabar com a frota nuclear britânica. Mesmo assim conseguiu uma enorme mobilização de jovens à procura de uma causa ou de trabalhadores fartos de austeridade. “Os apoiantes jovens do Labour não querem alguém que torne o partido elegível, querem alguém exprima a sua revolta”, escreve Robert Colvil, antigo comentador do Telegraph, no site Politico
2. O resultado da escolha do novo líder do Labour surge num momento particularmente adverso. Não porque a economia britânica não esteja a recuperar mais depressa do que as suas congéneres europeias, com o desemprego a cair acentuadamente, mas porque o Reino Unido enfrenta uma das decisões com consequências mais pesadas para o seu futuro: o referendo sobre a União Europeia. Não se sabe exactamente o que pensa o novo líder trabalhista sobre o assunto, que evitou cuidadosamente. O que se sabe é que considera que “a Europa não favorece os interesses dos trabalhadores” e que votou contra a adesão no referendo organizado pelo então primeiro-ministro trabalhista Harold Wilson em 1975. Ora, uma posição forte e clara do Labour a favor da Europa seria decisiva para vencer o referendo. David Cameron sabe o risco que corre se o resultado não for o pretendido. Deixou de poder contar com um “aliado”. Corbyn é um “pacifista”. O primeiro-ministro britânico pode, aliás, sentir imediatamente na pele o seu pacifismo quando apresentar no Parlamento a autorização para participar nos bombardeamentos contra o Estado islâmico.
3. O destino do Labour é mais um sério aviso sobre o que se está a passar na paisagem política europeia, com a emergência de forças de natureza populista ou extremista, à direita e à esquerda, que desafiam cada vez mais o establishment político europeu num sentido que pode acabar por ser fatal. Corbyn é a última confirmação de que a social-democracia europeia ainda não conseguiu encontrar um caminho suficientemente distinto do centro-direita em matéria de economia para atrair a confiança da mesma classe média “espremida” que está cansada de pagar a globalização económica (nos últimos trinta anos, os seus rendimentos praticamente estagnaram em muitos países europeus e nos Estados Unidos, enquanto a riqueza aumentava para cada vez menos). O problema para o qual a social-democracia procura uma resposta é o mesmo: como salvar o Estado social em condições em que a concorrência internacional nunca foi tão forte, a demografia tão desfavorável e a desigualdade tão acentuada. A globalização trouxe outros países para a competição mundial, com os seus baixos salários e as suas condições sociais limitadas mas também a possibilidade de retirar da pobreza milhões de pessoas. O dilema do centro-esquerda é como conciliar competitividade económica com menos desigualdade social.
4. Houve um tempo, na segunda metade dos anos 90 até meados da primeira década deste século, em que a resposta parecia estar encontrada. Era a “Terceira Via” de Tony Blair, inspirada nos novos Democratas de Clinton, que rapidamente se estendeu ao continente e fez com que uma maioria de partidos de centro-esquerda dominassem as grandes decisões europeias. A ideia era simples: aceitar o funcionamento livre dos mercados na economia mas não na sociedade. O combate às desigualdades no novo contexto mundial seria feito através da educação e da capacitação das pessoas. A competitividade ganhava-se com o conhecimento e a inovação. Gerhard Schroeder abraçou a nova fórmula chamando-lhe o “Novo Meio”. Reformou a economia alemã, ainda a sofrer as penas da unificação, deixando a Merkel uma magnífica herança mas criando uma forte crise de identidade no SPD que até agora ainda não foi superada. Em Portugal, Guterres chamou-lhe a “Via Europeia”. Em Espanha, o PSOE de Felipe González foi um dos mais reformistas da Europa. Na própria França, os socialistas começaram a invejar a economia britânica em forte crescimento e a perguntar-se: porque não? Seguiu-se a queda do Lehman Brothers e uma catástrofe financeira de proporções colossais. Os ensinamentos da Grande Depressão levaram os governos (nos EUA, na EU mas também na China) a injectar liquidez na economia em grande escala. Houve ainda um breve momento em que a esquerda acreditou que a crise significaria o seu regresso, ao obrigar o Estado a salvar a economia da loucura dos mercados. Não foi assim. A direita gere o que está. A esquerda quer transformar o que está. Quando as diferenças se tornam mínimas (ou abissais) há um problema. A crise do euro e a sua gestão alemã fixaram uma receita única, deixando um caminho ainda mais estreito para uma alternativa social-democrata. “Estamos a assistir à emergência de uma nova clivagem que é consequência da globalização”, disse ao Público há já um par de anos, o sociólogo alemão Wolfgang Merkel. Entre os “viajantes frequentes” mais educados e mais preparados para tirar partido da internacionalização e os “comunitários nacionais” que viram as suas vidas afectadas, que tendem para o proteccionismo, que são contra a imigração. Os sociais-democratas, diz Merkel, vêem-se divididos entre estas duas camadas. Corbyn nunca apareceu na televisão mas passou os últimos trinta anos a cultivar as pequenas comunidades. “Mudámos a política britânica” disse ontem Corbyn. Pelo menos isso é consensual. Talvez Philip Stephens tenha alguma razão quando escreve na sua coluna do Financial Times: “Corbyn for leader? Blame the bankers”. Ou seja, a crise não reformou o capitalismo liberal, as elites financeiras estão bem, obrigado, e os cidadãos comuns continuam a pagar a crise com a austeridade.