Tiago Rodrigues faz a sua entrada – "meio suicidária" – no D. Maria II

Tiago Rodrigues quis que a sua entrada no Teatro Nacional D. Maria II fosse esta "loucura meio suicidária" de reescrever e encenar, em simultâneo, três clássicos esmagadores vindos da Grécia Antiga. Será sempre assim no seu teatro: a eficácia sacrificada ao risco.

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E esse é o pacto de confiança que Tiago Rodrigues reforça nos primeiros minutos de Ifigénia, a primeira das três tragédias gregas que dão forma à abertura da sua primeira temporada como director artístico do TNDMII: as pessoas confiam nas tragédias porque sabem que terminam sempre mal. Arrumada essa questão, os textos de Eurípedes, Ésquilo e Sófocles avançam não na direcção do drama (que implicaria a dúvida sobre o desfecho) mas rumo à tragédia (garantida a desgraça, escolhem-se as travessas e ruelas que a ela conduzirão).

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E esse é o pacto de confiança que Tiago Rodrigues reforça nos primeiros minutos de Ifigénia, a primeira das três tragédias gregas que dão forma à abertura da sua primeira temporada como director artístico do TNDMII: as pessoas confiam nas tragédias porque sabem que terminam sempre mal. Arrumada essa questão, os textos de Eurípedes, Ésquilo e Sófocles avançam não na direcção do drama (que implicaria a dúvida sobre o desfecho) mas rumo à tragédia (garantida a desgraça, escolhem-se as travessas e ruelas que a ela conduzirão).

Ao perguntar-se como dar continuidade ao seu trabalho artístico agora à frente do TNDMII, Tiago descobriu a resposta numa leitura de cabeceira. Ifigénia em Áulis, de Eurípides, era há muito uma vontade sua, e alimentava esta gravitação natural no sentido dos clássicos – que o levara antes até António e Cleópatra, adaptando espantosamente o texto de Shakespeare para os bailarinos e coreógrafos Sofia Dias e Vítor Roriz –, ao mesmo tempo que insistia num diálogo com a tradição teatral, uma das suas linhas-mestras na programação do Nacional. “Uma missão que queremos interpretar aqui no TNDMII é trabalhar os textos clássicos pelo confronto com linguagens contemporâneas”, afirma ao Ípsilon. “Queremos pensar como é que estes grandes clássicos podem ser apresentados hoje ao público, quais as linguagens de palco que nos permitem interpelar esses textos mas também o nosso tempo, a nossa sociedade, a nossa cultura, as pessoas que vêm ao teatro hoje e que fazem teatro hoje.”

Ponderando a hipótese de adaptar Ifigénia em Áulis, possivelmente a sua tragédia de eleição, Tiago Rodrigues não demorou a perceber que o novelo não se esgotava no final da peça e reconheceu que teria de “seguir a máquina histórica” e a “máquina de tragédia” daquela família, puxando o fio que o levava do sacrifício de Ifigénia pelo seu pai, Agamémnon, em troca do qual este obteria dos deuses o vento necessário para que os barcos gregos partissem à conquista de Troia, até às vinganças em cadeia em que Clitemnestra (mulher de Agamémnon) e o seu amante Egisto vingam a morte de Ifigénia matando Agamémnon e, posteriormente, Electra e Orestes (irmãos de Ifigénia) vingam o assassínio de Agamémnon matando aqueles dois. E tudo fica desgraçadamente em família – uma filha que é sacrificada pelo pai que é morto pela mulher que é morta pelos filhos.

Seguindo o modelo clássico das trilogias gregas, Tiago Rodrigues forjou a sua própria trilogia a partir de textos de Eurípedes, Ésquilo e Sófocles – Ifigénia, Agamémnon e Electra poderão ser vistas este fim-de-semana na programação ampliada do Entrada Aberta. E ficou impressionado com aquilo que o novelo lhe oferecia: “a forma como as ideias de justiça, patriotismo ou sacrifício se vão alterando ao longo dos tempos, e nem é preciso muito tempo – 10, 17, 20 anos – para os valores se deslocarem na sociedade”. “Fez-me pensar na voragem destes dias em que vivemos comandados pelo fecho da bolsa ao final da tarde, pelos ratings, pelo ciclo noticioso, pela próxima sondagem, pela prestação da casa, pelas contas ao fim do mês, e como esta medida mais larga do tempo já não nos é tão acessível.” Essa “miopia temporal” de que fala, essa estreiteza de noção do passado, é aqui representada pelo arco que começa no sacrifício de Ifigénia até à vingança final de Electra e Orestes, numa altura em que estes parecem já esquecidos de que a descida aos infernos começa pela troca da vida da sua irmã pelo vento que levará os gregos até Troia.

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Para Tiago Rodrigues, um dos desafios fundamentais de estar à frente do Teatro Nacional é precisamente o de não deixar que o presente perca de vista o passado, para que não se caia no erro de achar que o presente se inventa a si próprio. “Quando vemos Ricardo III”, de Shakespeare, que em Outubro chegará ao D. Maria numa nova encenação de Tónan Quito, “sabemos que a corrupção, o clientelismo, os maquiavelismos da intriga política não são um exclusivo do nosso tempo; são um problema da nossa espécie”. Em palco, poderá estar sempre toda a Humanidade, mas o director artístico diz querer lembrar o público de que está no TNDMII a assistir a um discurso sobre uma peça, sobre um tempo e sobre um lugar social e histórico, desmoronando a tentação fantasista de fazer crer que nos encontramos em Áulis ou em Argos.

Na incerteza
Portugal e Grécia debaixo de um espesso nevoeiro que tolda a visão e rouba o discernimento estão indesmentivelmente em palco. A esse nevoeiro pode, claro, chamar-se crise económica, pode até (é demasiado tentador) acrescentar-se um K para transformar o sacrifício que conduz os gregos a Troia no caminho que leva portugueses e gregos até à troika. Tal como o vocabulário empregue espelha sem atritos aquele que conhecemos dos últimos anos: a inevitabilidade das decisões, o sacrifício para o bem comum (“Só quero o melhor para os gregos”, declara Menelau, tio de Ifigénia), o sacrifício que o povo aceita desde que não calhe a cada um directamente, mas também a consciência de que se fabrica uma realidade à medida das conveniências (Agamémnon: “Os deuses são aquilo que contamos aos gregos para justificar aquilo que não compreenderiam”). “Inevitavelmente”, diz Tiago Rodrigues, “dei por mim na reescrita das peças mas também em muitos ensaios a fazer ricochete com a última primeira página que li, a última notícia que ouvi na rádio, com aquilo que é a Europa e com o que a palavra ‘gregos’ significa hoje. O que estas histórias têm de poderoso é que, fazendo ricochete em todos os tempos, são maiores do que qualquer presente”.

A Tiago Rodrigues interessa-lhe essa infindável capacidade de os textos clássicos, começando pelas tragédias gregas, reverberarem nos nossos dias. Sem esforço. E é também por isso que defende uma programação sensível à urgência e à voragem deste tempo. Claro que a urgência como capacidade de convocar o presente, de manter o público suspenso na incerteza daquilo a que assistirá, comporta um risco que Rodrigues reclama para o TNDMII, mas um risco que privilegia claramente em detrimento de uma ideia de “eficácia”. Daí a abertura que se faz com a "loucura meio suicidária” de levar à cena três peças novas (prolongando-se a sua apresentação faseada até 4 de Outubro). “Não estou aqui, e não devemos estar aqui, os artistas neste teatro, num teatro municipal ou num espaço alternativo, a produzir aquilo que o público já sabe que vai ver”, argumenta. “O nosso papel não é criar algo reconhecível, em que o espectador chega e compra o bilhete como quem compra o produto a que está habituado no supermercado sabendo que vai ter este ou aquele sabor. Acredito que a função de um Teatro Nacional é permitir que o público faça uma aposta no desconhecido, não sabendo o que vai ver e não sabendo se vai correr bem ou mal, uma aposta militante na importância da criação artística.” Essa aposta, do lado do Nacional, concretiza-se também no ciclo Recém-Nascidos, que dá espaço a novíssimas companhias e artistas, em apresentações das suas primeiras, segundas, terceiras peças – como acontece, já a partir de hoje, com Coleção de Amantes, de Raquel André (ver caixa).

Podendo ter escolhido a continuação do novelo pela Oresteia fora até chegar ao julgamento de Orestes, fundamental na definição milenar do princípio de justiça, Tiago Rodrigues preferiu terminar entregando Orestes não inteiramente à loucura, mas também à culpa que o leva a estancar “a máquina de tragédia”. Assassinados a mãe e o amante, enquanto Electra clama pela liberdade de poder entregar-se a uma “vida normal”, Orestes recusa o seu lugar dinástico no trono alegando que “a mão que esfaqueou a mãe não pode ser a mão que assina as leis da cidade e indica o caminho”. A mão não mais largará a faca. Orestes tinha “de dissolver tudo o que vinha antes dele para se pudesse recomeçar”. “Há essa proposta nas peças – de recomeço, de repensar, de reorganizar”, diz o director artístico. Mas esse recomeço e essa reorganização apontam tanto para um modelo social e de relação com o poder como também para um Teatro Nacional que, durante pelo menos três anos, se adaptará a uma nova visão e à vontade de que, como desejavam Woody Allen ou Bertolt Brecht, entrar numa sala de teatro seja tão vertiginoso e imprevisível quanto assistir a um jogo de basquetebol ou a um combate de boxe.

A janela que se abriu
A decisão de fazer Orestes retirar-se e não prosseguir a sua senda de perseguição, condenação e descida à loucura não foi tomada sem conflito. Quando Tiago Rodrigues faz com que Orestes se atire (não literalmente) para cima de uma bomba e ofereça o corpo à explosão, poupando os restantes, remata com um sacrifício aquilo que com um sacrifício começa. E assume o papel que atribuiu a si mesmo: o de reescrever. A reescrita aconteceu a partir das leituras dos originais com os actores e da discussão espoletada por cada passo que o autor fizesse diferir claramente dos originais. Seguiu, na verdade, o seu mesmo modelo de sempre, que foi desenvolvendo a partir da criação colectiva, com a preocupação constante de escrever para um específico grupo de intérpretes, colocando-se a si mesmo nos textos mas também o resultado das conversas e a perscrutação do mundo daqueles com quem trabalha. “É uma ideia que venho discutindo há algum tempo e que surgiu [na sua relação com os clássicos] talvez pela primeira vez quando criei o Entrelinhas com o Tónan Quito”, reflecte. “Esse texto era uma tentativa falhada de montar o Rei Édipo”, atravessada pela relação entre autor e actor.

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O percurso de Tiago Rodrigues há muito que confunde os lugares de autor, encenador e actor, fruto de uma descoberta daquilo que o teatro podia ser num workshop da companhia belga tg STAN no Centro Cultural de Belém em 1997 – estudava então na Escola Superior de Teatro e Cinema. Essa descoberta, que se prende com a recusa de transportar consigo a eficácia como valor primordial para o Nacional, era a do teatro como espaço onde tudo devia ser possível. “Ali”, recorda, “tive uma espécie de revelação de um teatro muito diferente daquele mais convencional para o qual estava a ser treinado no Conservatório e que ia ao encontro da liberdade que procurava em palco e de uma ideia de actor que não tinha de ser um ser amestrado obrigado a fazer sempre igual, mas sim uma criatura da criatividade e da imaginação”. Foi um encantamento tão intenso e imediato que Tiago abandonou o Conservatório logo que os STAN, em 98, o convidaram a participar em Point Blank, uma criação inspirada em Platonov, de Tchékhov. A partir desse momento, forjou-se uma colaboração regular que persiste ainda, tendo a última participação do português em espectáculos dos STAN acontecido em Nora (2012), a partir de Casa de Bonecas, de Ibsen.

Desde 2003, quando Tiago Rodrigues e Magda Bizarro criaram a estrutura Mundo Perfeito na cozinha de um T2 da Amadora, as colaborações com os STAN foram acontecendo em paralelo com a actividade quase compulsiva da sua própria companhia. E com Berenice, um encontro entre quatro actores europeus (com elementos dos STAN e dos ingleses Forced Entertainment), o Mundo Perfeito escolhia, em 2005, a sua família do teatro europeu. Era, no entanto, um período que o director do D. Maria II hoje vê como fundamentalmente de aprendizagem. Tudo mudou a partir de 2010. Com a estreia de Se Uma Janela se Abrisse, do modelo das criações colectivas começou a emergir uma voz autoral, acompanhada por uma liderança mais clara no capítulo das encenações, ao mesmo tempo que se agudizava o seu interesse em confrontar os domínios do público e do privado (uma marca das suas obras, ali corporizada num telejornal dobrado por actores que dão conta de notícias que escapam ao interesse mediático, seguidas da imagem do pivot televisivo João Adelino Faria olhando uma câmara em silêncio enquanto se ouvem os seus pensamentos). “Comecei aí um percurso em que, se há uma recorrência, é a de tentar sempre inventar uma linguagem – que cada espectáculo não seja só sobre aquilo de que fala, mas também sobre a forma como fala daquilo de que fala.”

É também isso que encontramos no modo como a censura do teatro durante o Estado Novo é abordada em Três Dedos Abaixo do Joelho, socorrendo-se dos textos dos próprios censores, ou como em António e Cleópatra os dois intérpretes em cena contam uma história de amor através de um exercício de linguagem. O reconhecimento da pertinência dessa via artística levou a que António e Cleópatra chegasse este ano ao Festival de Avignon, primeiro exemplo da penetração internacional do reportório de autores portugueses que Tiago Rodrigues deseja ver repetido e explorado a fundo no TNDMII. E primeiro exemplo porque cedeu gratuitamente e na íntegra os direitos de autor de todas as suas peças enquanto for director artístico do Nacional. Até se ir embora, o D. Maria terá o direito de explorar as suas criações (e a respectiva receita) sem lugar a pagamento de cachet ou direitos ao autor, encenador e actor Tiago Rodrigues, dando, ainda assim, resposta ao persistente interesse nacional e internacional pela apresentação de peças como By Heart.

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Se Uma Janela se Abrisse (2010) MAGDA BIZARRO
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Três Dedos Abaixo do Joelho (2012) PEDRO CUNHA
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António e Cleópatra (2014) DR

A contrapartida é que o reportório de Tiago Rodrigues continua a circular, mantendo vivo o seu nome enquanto criador, até ao dia em que, findo o seu mandato no Nacional, possa retomar as colaborações que suspendeu ao assumir as actuais funções – como, por exemplo, o lugar de professor de teatro na escola PARTS, de Anne Teresa de Keersmaeker, em Bruxelas, onde leccionou durante dez anos. Talvez nessa altura o encontremos também a encenar Tchékhov ou Büchner. Por agora, o seu maior desejo continua a ser, como o próprio lhe chama, escrever “estas cartas” que vai enviando para dialogar com os actores.