O olhar de Sam Shaw para a saia esvoaçante de Marilyn

O Centro Cultural de Cascais mostra uma retrospectiva dos 60 anos de carreira de Sam Shaw, o fotógrafo que privou com Marilyn Monroe ou Marlon Brando, e também fixou o movimento pelos direitos cívicos dos negros.

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É isso que agora é possível constatar na retrospectiva Sam Shaw: 60 Anos de Fotografia, que contempla mais de 200 fotos e que abre ao público este sábado no Centro Cultural de Cascais, estando patente até 8 de Novembro, naquela que constituiu a primeira paragem de uma longa digressão europeia.

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É isso que agora é possível constatar na retrospectiva Sam Shaw: 60 Anos de Fotografia, que contempla mais de 200 fotos e que abre ao público este sábado no Centro Cultural de Cascais, estando patente até 8 de Novembro, naquela que constituiu a primeira paragem de uma longa digressão europeia.

Ele nasceu em Nova Iorque, filho de emigrantes russos, tendo morrido em 1999, aos 87 anos, deixando um espólio que é hoje gerido pela família. Essa herança conta com inúmeras fotografias de actores, músicos, artistas e escritores, com quem conviveu, em especial, nos anos 50, 60 e 70, mas também fotos que captaram alguns dos conflitos sociais e políticos dos Estados Unidos.

A iniciativa partiu da Fundação D. Luís, que gere em conjunto com a câmara o Centro Cultural de Cascais, e não surgiu por acaso. É que o director delegado da fundação é Salvato Telles de Menezes que, em 1992, como director do festival de cinema de Tróia, esteve por detrás de uma exposição em torno de Sam Shaw.

“Nessa altura, o Mário Ventura era o presidente do festival de Tróia e eu o director, e tínhamos um colaborador americano que sugeriu que convidássemos o Sam Shaw para ir ao festival na qualidade de fotógrafo”, recorda Salvato Telles de Menezes, “e nós ficámos surpresos porque não o conhecíamos nessa qualidade, mas sim enquanto produtor dos filmes de John Cassavetes.”

No seguimento da conversa, vieram a perceber que Sam Shaw era o autor de inúmeras fotografias icónicas do cinema, e acabaram por convidá-lo para uma exposição em Tróia. “A exposição foi feita em cima da hora, portanto foi uma coisa muito limitada, mas a iniciativa valeu a pena porque veio ele, as duas filhas, a Lorie Karnath – que viajou com ele pelo mundo, sendo hoje a maior especialista da sua obra e que estará também agora na inauguração (esta setxa-feira) pelo facto de ter sido a autora do catálogo – e a conhecida cantora Debbie Harry dos Blondie, porque ele estava a fazer um documentário sobre essa banda.”  

Durante onze dias conviveram diariamente acabando por tornar-se amigos e comunicar com regularidade nos anos seguintes. Foi a partir daí que nasceu em Salvato Telles de Menezes a vontade de mostrar condignamente a obra de Sam Shaw em Portugal. “Propus à empresa Terra Esplêndida, que já tem colaborado connosco noutras exposições de fotografia, que encetasse contactos e rapidamente percebemos que a família estava a organizar uma retrospectiva e viram com bons olhos que a primeira paragem da exposição fosse aqui no Centro Cultural.”

A mostra estende-se por dois pisos. Logo à entrada deparamos com uma série de fotos de Marilyn Monroe. Não é acaso. Por um lado, algumas das suas fotos dela tornaram-se icónicas. Por outro a sua relação era realmente de amizade. Conheceram-se em 1951 nos testes de casting de Viva Zapata!, era ela ainda uma desconhecida.

Três anos mais tarde, o realizador Billy Wilder filmava O Pecado Mora ao Lado, e Sam Shaw era o fotógrafo de cena. Com uma sessão fotográfica de 1940 para a revista Friday na cabeça – da qual haveria de resultar uma capa onde se via uma rapariga a segurar a saia por força do vento –, criou qualquer coisa de semelhante com Marilyn Monroe, de pé, sobre um respiradouro do metro e uma lufada de ar soprando o seu vestido branco.

A fotografia, com Monroe de olhar provocador para a câmara, haveria de fazer capas de jornais e revistas em todo o mundo, não só trazendo publicidade ao filme, como cimentando Monroe como um dos símbolos de uma era. Depois da morte dela, aos 36 anos, em 1962, em nome da sua amizade, ele recusou-se a publicar qualquer foto dela durante um período de dez anos.

“Eles eram verdadeiramente amigos”, reforça Salvato Telles de Menezes. “Aliás, uma das coisas que se percebe nas suas fotos é que ele procurava o momento mais oportuno, era um fotógrafo da espontaneidade, o que só era possível pelo facto de ser muito próximo das pessoas que retratava.” Curiosamente, a única fotografia em que ele assumiu que existiu encenação foi precisamente a foto da saia esvoaçante de Marilyn Monroe.

Na exposição, existe uma galeria infindável de celebridades do cinema que ele fotografou (Sophia Loren, Woody Allen, Dennis Hooper, Marcello Mastroianni, Lauren Bacall, Romy Schneider, John Wayne, Anthony Quinn, Ingrid Bergman, Natalie Wood, Elizabeth Taylor, Peter Falk ou Hitchcock), quase sempre em circunstâncias muito informais, de proximidade e cumplicidade.  

De todas essas amizades, existiu uma que se destacou, a que manteve ao longo de anos com o realizador John Cassavetes, de quem produziu vários filmes, e a actriz e sua mulher Gena Rowland. A actividade como produtor surgiu dez anos depois de ter começado a trabalhar na indústria cinematográfica com o filme Noites de Paris (1961), com Paul Newman e Sidney Poitier.

“Falávamos de muita coisa de que ambos gostávamos, em especial de Marlon Brando – que era para ele o actor mais completo que tivera oportunidade de ver – e de Cassavetes que uma vez disse: ‘O meu melhor amigo é Sam Shaw, mas o que eu gosto mais nele é que há pelo menos mais vinte pessoas que podem dizer o mesmo!’. Eu diria que havia mais pessoas nessa situação porque para além do talento era generoso e discreto.”

Para além dos retratos de personalidades do cinema, existem também de artistas, escritores ou músicos (Duchamp, Rodin, Prévert, Tennessee Williams, Sinatra, Irving Berlin, Armstrong ou Duke Ellington) e séries temáticas de fotojornalismo que reportam momentos marcantes da história dos EUA, com fotos do movimento dos direitos civis dos negros, de mineiros de carvão da Virgínia, de músicos de jazz de Nova Orleães, de barqueiros do Mississípi, de manifestações contra a guerra no Vietname, ou de despedida de soldados que partiam para a II Guerra Mundial.

“Não é por acaso que ele colaborou com a Life ou a Look, mas também com uma revista pouco conhecida chamada Friday, muito ligada à classe operária americana”, afirma Salvato Telles de Menezes. “O que dá uma nota do que o preocupava, porque tinha uma visão do mundo progressista, vincando todo esse lado que ele manteve da experiência como fotojornalista.”  

Em criança adorava desenhar e pintar, formando-se em estudos clássicos e arte, partilhando um estúdio com o amigo e artista Romare Bearden, depois de concluir o liceu. Ao longo dos anos foi trabalhando como desenhador em tribunais, depois como cartoonista político e desportivo. A sua carreira de fotojornalista teve início na revista Collier’s, tendo sido também um dos primeiros a contribuir para a agência de fotografia Magnum.

“O meu ponto de vista pessoal sobre a fotografia privilegia a improvisação de um momento, mas como profissional há uma visão geral de um tema”, haveria de afirmar uma vez. “No entanto, dentro deste tema há ainda a aventura da descoberta, que para mim reside nas imagens que contam a história. Não trabalho à procura da composição ou da impressão perfeita.”

Na retrospectiva, estão presentes fotos nunca antes vistas ou raras, entre elas uma que Salvato Telles de Menezes fez pressão para que fizesse parte da mostra, “porque está ligada a uma história que ele me contou”, afirma. “Mostrou-me uma pequena foto do Gary Cooper e eu disse-lhe que era extraordinária e tinha imensa força. E ele para mim: 'Sabes porquê? Porque esta foto foi tirada depois de ele ter sido informado que estava com uma doença grave e nessa mesma foto está a fumar o último cigarro da vida dele.”

Nas paredes da exposição lá está a foto que capta o instante em que o actor Gary Cooper decidiu que nunca mais iria fumar, com a imagem a transmitir esse sentimento de tristeza profunda, ao mesmo tempo que reflecte também a proximidade entre os dois.

“Em quase todas as fotos dele está presente essa intimidade. Nesta até sabemos a história que a sustenta e não se conta uma história tão grave, no momento em que se recebe a notícia, a uma pessoa qualquer. E Sam Shaw não era uma pessoa qualquer.”