Os convergentes descontentes
No final de um debate entusiasticamente morno, Catarina Martins e Jerónimo de Sousa não chegaram a acordo sobre a maneira de sair do edíficio da RTP, tendo a primeira optado por descer a Marechal Gomes da Costa e seguir pela marginal até ao Chiado, e o segundo subido até à Rotunda do Relógio e apanhado a Almirante Reis. As diferenças de percurso são evidentes
Foi lindo mas deixou confusas e confusos as companheiras e os companheiros, as camaradas e os camaradas, as simpatizantes e os simpatizantes, as militantes e os militantes. Catarina Martins, do Bloco de Esquerda (BE), e Jerónimo de Sousa, do Partido Comunista Português (PCP), terão de voltar rapidamente à televisão para um novo debate eleitoral em que consigam divergir um pouco mais. Só assim poderão apresentar-se em separado nas urnas como a alternativa certa ao partido da direita da esquerda, ou da esquerda que é direita mas não é bem direita, é só nas políticas, ou lá o que é (o PS).
Apesar da sua lendária boa educação, um consternado Jerónimo de Sousa pôs no final as mãos nos bolsos e lamentou só ter divergido de Catarina num ponto:
— Bolas, só discordámos no euro... Roubaram-me um porco e devolveram-me um chouriço.
Como no caso dos votos, por um euro se ganha, por um euro se perde. Mas e agora? Jerónimo disse no debate da RTPi que é preciso fazer já “o estudo e preparação da saída do euro”. Catarina, num momento arrepiante de ruptura ideológica, e do fundo verde dos seus olhos, pediu desculpa ao cavalheiro à sua frente mas sair do erro agora seria um erro terrível porque Portugal teria então “o pior dos dois mundos”.
O resto do debate foi basicamente malhar no PS e nisso sentiram ter contribuído para a construção de um mundo melhor e de uma sociedade mais justa. Mesmo assim, nem no tema do PS chegaram ao fundo mais à esquerda do problema. Não debateram a última imagem de campanha dos socialistas, depois do desastre dos cartazes tipo igreja evangélica e dos falsos desempregados da junta de Arroios. Por isso precisam de voltar à RTP para esgrimir verbalmente sobre a velha fotografia de rua do recém-casado António Costa com a mulher Fernanda Tadeu, há 28 anos. (Ainda se apanha por aí nos jornais e Facebook, apesar de o site de campanha a ter supostamente eliminado “devido a questões técnicas”.)
Porque há profundas divergências à esquerda sobre o significado e o poder estético-eleitoral da fotografia dos Costas recém-casados.
Para Catarina e para o Bloco de Esquerda, a maneira como o futuro secretário-geral do PS agarra o pescoço da mulher por trás, com o braço e cotovelo em torniquete, faz lembrar os piores arquétipos do machismo e de posse do corpo da mulher que “pensávamos arredados da nossa sociedade”. Se é que não configura uma situação de sequestro físico e moral em plena via pública.
Já Jerónimo (“Já Jerónimo!” dava um bom slogan, pensem nisso) admite tratar-se de um simples gesto de protecção e carinho pela companheira, na expectativa dos longos e conturbados anos que esperam os recém-casados com a política. Se é que António Costa não lhe agarra os gorgomilos para evitar males maiores (não iria um autocarro da Carris a passar?, não estaria do outro lado a sinistra figura do então primeiro-ministro Cavaco Silva e foi preciso segurar Fernanda Tadeu?, repare-se na cara de desafio hostil dela, no alarme dele). Na roupa, Jerónimo não se conforma. Apesar da boa combinação com o azul-celeste da T-shirt, o calção amarelo de Costa não se consegue decidir se pertence a um honesto operário em passeio de domingo ao Seixal ou ao Barreiro, se é uma directa influência burguesa da Benetton (como o próprio cartaz) ou, pior ainda, um resquício queque da cadeia Quebra-Mar. No entanto, a toalha de mesa de jardim à cintura e o maiô Nadia Comaneci de Fernanda parecem-lhe justos. Catarina Martins, contra Jerónimo, discorda em absoluto da pochette (fanny pack, em inglês) à cintura de António Costa. Um homem que nos pede confiança pode afinal trazer ali escondido um tratado orçamental. Ou mesmo um pacote de austeridade novo.
Mas num segundo debate entre BE e PCP será também preciso discordar sobre Paulo Rangel, do PSD. Esse político que afirmou, e reafirmou, que os juízes só prenderam Sócrates e detiveram Ricardo Salgado porque Passos Coelho trouxe liberdade e honestidade ao país e coisas assim giras de se dizer entre jovens que vestem calças vermelhas em Castelo de Vide durante o Verão, desencorajando alentejanos honestos de passear em paz na bela vila nordestina. Catarina Martins e Jerónimo foram tão próximos a atacar as declarações “inaceitáveis” de Rangel que terão agora de dizer mais. Jerónimo por exemplo, acha que Rangel fez uma “dieta demagógica”, no momento em que tantos passam fome, e Catarina acredita que Rangel emagreceu como uma indigna alimentação de “toca-e-foge”, só para ver se entala o PS na barriguinha de António Costa. Sem esquecer que ao ideólogo Rangel, que escreve sobre assuntos como “Jesus Cristo não é socialista”, se aplicaria bem a história do jovem rico que se propõe seguir Jesus, o Mestre, como seu discípulo. Jesus diz-lhe que tudo bem, só tem de deixar tudo para trás, incluindo a demagogia, as citações de Montesquieu e os mocassins Prada. E o jovem Rangelito, envergonhado, afasta-se, pois dessas riquezas não consegue separar-se.
A campanha dos debates televisivos prossegue para a semana, com o debate de dia 9 entre Pedro Passos Coelho e António Costa. Especula-se que o primeiro-ministro poderá acrescentar à lista das promessas — como “combater as desigualdades sociais” — a revelação total sobre os dinheiros dos estágios dos aeródromos da Tecnoforma e da Segurança Social.
Mas esta hipótese pode revelar-se falsa. Falsa ou uma verdade das dele.