Refugiados: a tragédia maior está a acontecer no Médio Oriente

Os refugiados sírios que estão a chegar à Europa são apenas uma pequena percentagem dos quatro milhões que fugiram da guerra e (sobre)vivem agora nos países à volta da Síria.

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Os que chegam à Europa representam uma pequena percentagem dos quatro milhões de sírios que fugiram para o Líbano, Jordânia, Turquia e Iraque, transformando a Síria na maior fonte de refugiados em todo o mundo e na pior crise humanitária em mais de quatro décadas.

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Os que chegam à Europa representam uma pequena percentagem dos quatro milhões de sírios que fugiram para o Líbano, Jordânia, Turquia e Iraque, transformando a Síria na maior fonte de refugiados em todo o mundo e na pior crise humanitária em mais de quatro décadas.

À medida que o conflito entra no quinto ano, as agências humanitárias, os países que acolhem os refugiados e os próprios sírios começam a aperceber-se de que a maioria não regressará a casa num futuro próximo, confrontando a comunidade internacional com uma crise de longo prazo para a qual não tem respostas capazes e que pode revelar-se profundamente desestabilizadora, quer para a região quer para o mundo em geral.

O fracasso é, em primeiro lugar e sobretudo, diplomático, diz António Guterres, o alto comissário das Nações Unidas para os Refugiados. O conflito provocou pelo menos 250 mil mortos no coração estratégico do Médio Oriente e deslocou mais de 11 milhões de pessoas, no entanto não existe um processo de paz, nenhuma solução perceptível ou um fim à vista.

Agora, os esforços humanitários estão também a falhar, por causa do interesse decrescente, da diminuição das doações e pelo aumento exponencial das necessidades. As Nações Unidas receberam menos de metade do valor que disseram precisar para cuidar dos refugiados ao longo dos últimos quatros anos. A ajuda está a ser cortada e há programas suspensos no momento em que aqueles que deixaram a Síria à pressa, esperando regressar em breve a casa, estão a esgotar as suas poupanças e os apoios que receberam à chegada.

“É uma tragédia sem comparação no passado recente”, diz Guterres em entrevista, alertando que milhões de pessoas podem ficar sem a ajuda de que precisam para se manterem vivos. “Há muitas batalhas que estamos a ganha”, acrescenta. “Infelizmente, o número de batalhas que estamos a perder é maior.”

“Isto não é vida”
Esta é uma crise cujos verdadeiros custos ainda não estão claros.

Sem ajuda, refugiados sem nada espalham-se por cidades, vilas e quintas do Médio Oriente, numa recordação visível da negligência mundial. Amontoam-se nas ruas de Beirute, Istambul, Amã e nas cidades e aldeias entre elas, vendendo lenços de papel, rosas ou simplesmente mendigando por trocos.

Mães com crianças ao colo dormem junto aos sinais de trânsito, debaixo de pontes, em parques de estacionamento e à porta das lojas. Famílias acampam em quintas abrigando-se com toldos de plástico, bocados de madeiras ou velhos cartazes de publicidade a restaurantes, filmes, apartamentos e a outros pedaços de vidas que podem nunca mais vir a viver.

“Isto não é vida”, diz Jalimah Mahmoud, de 53 anos, que vive de esmolas juntamente com a sua neta de sete anos em Al-Minya, um campo de tendas construídas à pressa junto a uma auto-estrada costeira no Norte do Líbano. “Estamos vivos apenas porque ainda não morremos.”

Inevitavelmente, os que podem vão-se embora. As famílias juntam as suas poupanças, pedem emprestado aos amigos para pagar aos contrabandistas que os amontoam em barcos que atravessam o Mediterrâneo com destino à Europa e à hipótese de uma vida melhor.

Quando lá chegam repetem, a uma escala menor, as cenas de miséria que se desenrolam por todo o Médio Oriente – acampam nas praias da Grécia, dormem nas ruas de cidades europeias e amontoam-se em filas pedindo asilo. Uma prova dos perigos que a sua viagem comporta surgiu a semana passada na Áustria, quando as autoridades descobriram os corpos em decomposição de 71 pessoas deixados ao abandono num camião – aparentemente migrantes levados para o país por contrabandistas.

Os sírios representam a maior percentagem de refugiados que chegaram à Europa nos últimos dois anos e o seu número cresce rapidamente – 63% das 160 mil pessoas que chegaram à Grécia por mar neste ano eram oriundos da Síria.

Mas a Europa é uma opção viável apenas para os refugiados que conseguem pagar os cinco ou seis mil dólares que os contrabandistas pedem.

Dados baseados em entrevistas junto de sírios na Turquia e no Líbano sugerem que aqueles que já fizeram a viagem tendem a ser pessoas que viviam melhor antes da guerra. Os outros poupam tudo o que podem do que recebem ou ganham, vendem terras e bens, na esperança de que também eles consigam fazer a viagem.

“Todas as pessoas que eu conheço estão a tentar partir”, diz Nada Mansour, de 37 anos e mãe de duas meninas, que aguarda autorização para se juntar ao marido que está na Suécia depois de ter pago 6500 dólares aos contrabandistas que o levaram a partir da Líbia. “Estou tão contente”, diz, com lágrimas de antecipação, “porque serei capaz de dar uma vida melhor às minhas filhas”.

Mas para a maioria dos refugiados não há escapatória dos campos esquálidos, da humilhação de andar a pedir ou do desespero mudo de esperar o fim da guerra nos campos montados pelos governos vizinhos e pelas Nações Unidas. Segundo estimativas do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, dois terços dos refugiados no Líbano e na Jordânia vivem em pobreza extrema.

“Iriamos embora se pudéssemos, mas não temos dinheiro”, diz Fitnah al-Ali, 40 anos e mãe de sete meninas e um rapaz, que às vezes consegue trabalhar ao dia. Conta que as Nações Unidas cortaram a ajuda à família depois de ela ter vendido cupões de comida para pagar os tratamentos para o marido que está doente. “Há dias em que não comemos nada”, diz.

Futuro adiado
O risco para a estabilidade dos já frágeis e voláteis países que foram tomados por esta vaga de miséria humana é evidente. Cerca de 750 mil crianças não vão à escola, os pais estão a perder anos de vida activa e os adolescentes estão a crescer sem esperança de encontrar trabalho a tempo inteiro.

A crise dura há já tanto tempo que algumas crianças se esqueceram de onde são. Rashid Hamadi, de 9 anos, lembra-se da sua casa, com quartos para ele e os irmãos, um jardim onde cresciam rosas. Lembra-se também dos tanques e das balas, de correr com medo das bombas. Mas hesita quando lhe perguntamos o nome da sua cidade natal. “Não me lembro”, diz.

Bushra, uma das filha de Ali, tem 11 anos e está a esquecer-se de como se lê. Há três anos, quando frequentava a escola na Síria, a leitura era a sua disciplina preferida, diz.

O seu rosto ilumina-se quando vai buscar o único material de leitura ao fundo da tenda sombria da família – um panfleto antitabagista distribuído por uma organização de caridade islâmica. À medida que os dedos percorrem as palavras, a voz falha. “Consigo ler cada vez menos”, diz. “E está a tornar-se cada vez mais difícil.”

O futuro  destas crianças é cada vez mais sombrio e o risco de radicalização é real, afirma Peter Harling, conselheiro para o Médio Oriente do International Crisis Group. “É uma geração inteira de pessoas privadas de tudo aquilo com que podiam sonhar ou acreditar”, diz. “O que é assustador é a medida em que este conflito está a espalhar as sementes de algo no futuro que será crónico”.

O facto de ainda não ter surgido uma revolta de grande dimensão ligada aos refugiados diz muito da capacidade de resiliência tanto dos sírios como das nações que os acolhem, explica Rochelle Davis, professora do Centro de Estudos Contemporâneos Árabes da Universidade de Georgetown. No entanto, sublinha, “não é possível ter 25% da população de um país composta por pessoas de outras nacionalidades e não ter problemas. Vai haver problemas no Líbano e também na Jordânia.”

Na Turquia, o único país da região que faz questão de acolher os refugiados, alguns sírios foram autorizados a trabalhar, a frequentar a escola e a receber tratamentos médicos. O Governo já avisou os seus cidadãos de que têm de estar preparados para a eventualidade dos 1,9 milhões de sírios que estão no país, de 75 milhões de habitantes, ali ficarem de forma permanente.

No Líbano, a memória do papel que tiveram os refugiados palestinianos no desencadear da guerra civil de 1975-1990 impede o Governo de adoptar medidas para melhorar a vida dos 1,1 milhões de refugiados sírios registados pela ONU.

Pelo menos uma em cada quatro pessoas que vive no Líbano é um refugiado sírio. A maioria são muçulmanos sunitas e a sua presença arrisca-se a abalar o delicado equilíbrio confessional no país, tal como a chegada de cem mil refugiados sunitas palestinianos após a criação do Estado de Israel em 1948 desequilibrou a balança entre muçulmanos e cristãos, acabando por desencadear as tensões que arrastaram o Líbano para a guerra civil.

O Governo libanês recusou autorização para a construção de campos para os sírios, por isso os refugiados estão entregues a si próprios. Arrendam apartamentos muitas vezes sem condições ou vivem às centenas nos acampamentos informais que foram surgindo por todo o país, pagando por norma 100 dólares por mês aos donos das terras pelo privilégio de dormir em tendas.

Novas restrições aprovadas pelo Governo fazem com que seja mais difícil os sírios conseguirem trabalho ou sejam capazes de renovar os documentos de residência, deixando muitos com medo de sequer sair dos acampamentos. Algumas cidades impuseram recolheres obrigatórios aos cidadãos sírios.

“É como estar na prisão”, diz Nour Msaitef, de 25 anos, que fugiu da província de Idlib há três anos e não se arrisca a sair do campo, nos arredores da cidade de Zahle, no vale de Bekaa, mesmo durante o dia, temendo ser detido pelas autoridades ou espancado pelos residentes.

Nas comunidades onde os refugiados se concentram, a fricção é palpável. “São campos onde proliferam terroristas e doenças”, diz Ali Rahimi, um comerciante da cidade vizinha de Talabaya. “Os libaneses estão a ser espremidos por causa deles. Há menos comida, menos trabalhos”, diz Rahimi, um muçulmano xiita. “Se a situação continuar por muito mais tempo vai haver guerra” entre os refugiados e a população local.

Falta dinheiro
Cada vez mais as agências humanitárias lançam os seus apelos de financiamento não em termos humanitários, mas como imperativos estratégicos. Este ano, os fundos estão também a ser identificados como destinados às comunidades mais pobres que acolhem os refugiados.

“Não se trata de uma questão humanitária, mas de uma questão de segurança”, diz Ross Mountain, o coordenador cessante da ONU para a ajuda humanitária ao Líbano. “Pessoas pobres e desesperadas são incompatíveis com segurança e estabilidade”.

Mas cada vez mais a generalidade da ajuda sofre com a falta de fundos. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) gastou mais de 5600 milhões de dólares albergar, alimentar e tratar sírios desde que o conflito começou, mas esse montante é apenas metade do que diz precisar. Durante o primeiro semestre do ano, os doadores contribuíram apenas com 37% dos 4500 milhões de dólares que a ONU pediu para ajudar os refugiados em 2015.

O Programa Alimentar Mundial tem vindo sistematicamente a reduzir o apoio mensal por pessoa, passando dos 40 dólares do ano passado para 13,5$. E anunciou que no próximo mês vai suspender por completo a ajuda a mais de 200 mil dos 1,6 milhões de refugiados com maiores carências.

A seguir à Turquia, que diz já ter gasto 6 mil milhões de dólares no apoio aos refugiados, os Estados Unidos são o maior contribuinte para a ajuda humanitária à Síria, tendo canalizado quatro mil milhões de dólares para refugiados e os que estão deslocados dentro da Síria. Mas esta quantia – que equivale a 3,1 milhões de dólares por dia em 2014 e deverá atingir um montante semelhante este ano – é menos de um terço dos 10,5 milhões gastos diariamente na ofensiva aérea liderada pelos EUA contra o Estado Islâmico na Síria e no Iraque, adiantam dados da Administração federal.

As doações privadas estão também a cair. Por várias razões, os melhores esforços dos que se dedicam a angariar dinheiro nunca conseguiram gerar em relação à crise na Síria a simpatia dos cidadãos anónimos que no passado contribuíram para outras causas.

Uma pouco habitual convergência de guerras e desastres em todo o mundo elevou o número de pessoas obrigadas a sair das suas casas para mais de 59,5 milhões no final de 2014, um recorde desde a II Guerra Mundial, segundo dados do ACNUR.

Desses, mais de 13 milhões foram deslocados no último ano, por conflitos na Ucrânia, no Iémen, Nigéria, República Centro Africana, Sudão do Sul e Iraque. A epidemia de Ébola na África Ocidental e o sismo no Nepal ajudaram a aumentar o fardo das agências humanitárias. O Gabinete da ONU para a Coordenação da Ajuda Humanitária calcula que precisará de 52 mil milhões de dólares em 2015 para lidar com estas situações de emergência, além dos 6,2 milhões requisitados pelo ACNUR.

A nova normalidade?
Os orçamentos para ajuda de emergência dos governos não suportam esses montantes e o universo das organizações humanitárias não tem os meios para lidar com tantos desastres ao mesmo tempo.

“Estamos esticados ao limite”, diz Andrea Koppel, dirigente da agência Mercy Corps. “Não temos pessoas, quanto mais dinheiro, para responder às necessidades de todas as pessoas afectadas. Não temos pessoas suficientes com as capacidades necessárias para enviar para esses sítios. Os doadores internacionais estão no limite. Não há capacidade para dar resposta a tudo. E perguntamo-nos ‘Esta é a nova normalidade? E se assim for como vamos lidar com isto?”.

Os trabalhadores humanitários dizem que o maior problema na questão dos refugiados sírios está na guerra em si. “O que nós precisamos desesperadamente é de paz na Síria, não apenas para impedir que os sírios continuem a ser mortos, mas para permitir que os refugiados regressem a casa”, diz o coordenador da ONU Ross Mountain.

É isso que os refugiados dizem querer – mas algo que cada vez mais temem nunca venha a acontecer.

Alguns fugiram das atrocidades do Estado Islâmico, outros das cometidas pelas forças governamentais. Muitos descobrem que as suas cidades ficaram do lado errado de uma linha da frente que dificilmente se moverá.

Um sobrinho de Fitnah al-Ali regressou no ano passado à casa da família em Homs, epicentro em 2011 da revolta contra o governo que desembocou na guerra civil. A cidade está agora sob controlo do Governo. Ele foi detido e desde então nunca mais tiveram notícias dele. “Só por causa de termos fugido eles vão dizer que eramos apoiantes da revolução”, diz o filho de Ali, que não se atreve a regressar.

Alguns acampamentos de refugiados começam a mostrar sinais de que vão tornar-se permanentes. Shakoud Sharqi, que trabalhava como carpinteiro em Homs, plantou gerânios, rododendros e malmequeres em volta da sua tenda no Vale de Bekaa, no Líbano, um surto de cor e vida entre as barracas e as pilhas de lixo por recolher.

Watfa Assad Saleh e a família juntaram um telhado de madeira, paredes e pequenas estantes decoradas com bibelôs de loiça à cabana onde vivem do outro lado da fronteira com a Síria, de onde conseguem ouvir os bombardeamentos diários que atingem a sua cidade de Zabadani, outro foco da revolta. Os vizinhos contaram-lhes que a casa deles foi arrasada e ela questiona-se sobre se alguma vez regressará. “Dizemos ‘Insha Allah’, mas eu acredito que nunca mais voltarei”. 

*Com Suzan Haidamous e Sam Rifaie

Exclusvivo PÚBLICO/The Washington Post