Cartas brasileiras que merecem ser lidas por todos
O Instituto Moreira Salles lançou o site Correio IMS, que recolhe e apresenta algumas das mais notáveis cartas brasileiras de todos os tempos. Homenagem a uma arte em extinção e repositório de informações únicas sobre grandes figuras da literatura e da música, da ciência e da política.
Este breve inventário de personagens, tempos e situações tão díspares bastará para dar uma ideia da diversidade das cartas brasileiras reunidas e apresentadas no site Correio IMS, lançado em Agosto pelo Instituto Moreira Salles.
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Este breve inventário de personagens, tempos e situações tão díspares bastará para dar uma ideia da diversidade das cartas brasileiras reunidas e apresentadas no site Correio IMS, lançado em Agosto pelo Instituto Moreira Salles.
Homenagem à antiga e requintada arte da epistolografia, hoje em vias de se perder na escrita apressada de emails e SMS, este tesouro digital de correspondência brasileira arrancou em Agosto com uma centena de cartas escolhidas a dedo pela responsável do departamento literário do Instituto Moreira Salles, Elvia Bezerra.
E todas as semanas, por norma à quarta-feira, há mais uma carta acrescentada ao rol. A mais recente é uma carta da Imperatriz Maria Leopoldina para Dom Pedro I em que esta avisa o seu marido : “As cortes portuguesas ordenam vossa partida imediatamente; ameaçam-vos e humilham-vos. O Conselho de Estado vos aconselha a ficar. Meu coração de mulher e de esposa prevê desgraças se partirmos agora para Lisboa.”
D. Pedro terá lido esta carta por volta desse histórico dia 7 de Setembro de 1822, quando soltou o seu famoso “grito do Ipiranga”, data simbólica da independência do Brasil.
“Há duas semanas colocámos uma carta do João Cabral de Melo Neto em que ele recusa o convite para escrever prosa no suplemento literário do Estado de S. Paulo”, diz ao PÚBLICO Elvia Bezerra, que dirige o projecto apenas com o auxílio de uma jovem assistente, Lyza Brasil, a quem cabe fazer a pesquisa iconográfica - todas as cartas são acompanhadas de imagens alusivas -, redigir os apontamentos biográficos e contactar as famílias de remetentes e destinatários, pedindo-lhes autorização para publicar a correspondência em causa, quando esta não tenha ainda caído no domínio público.
O Correio IMS possui ainda um blogue que Elvia Bezerra alimenta com uma entrada semanal. É dedicado à correspondência, como o site-mãe, mas não se restringe ao Brasil. Uma das entradas mais recentes é a tradução da carta que Virginia Woolf escreveu ao marido, Leonard, na manhã do dia 28 de Março de 1941, mesmo antes de entrar no rio Ouse com os bolsos cheios de pedras. E Elvia acrescentou ainda um vídeo em que a actriz Juliet Stevenson lê esta notável carta de amor e despedida na sua língua original.
Ao mesmo tempo que a convencional troca de correspondência se pratica cada vez menos, “a publicação de cartas, em livro, tem vindo a ganhar força no Brasil ao longo da última década”, diz a responsável do Correio IMS. E o animador número de partilhas que muitas destas cartas já disponibilizadas online estão a registar parecem confirmar esse crescente interesse dos brasileiros pela epistolografia.
Mas nem sempre é fácil conseguir autorização para divulgar textos que têm uma dimensão privada, por muito óbvio que seja o seu interesse público. “As pessoas depositam as suas emoções nas cartas, falam da vida dos outros”, e por isso, reconhece Elvia Bezerra, “são documentos delicados”. Mas se compreende que as famílias dos autores tenham “algum pudor em liberar” a sua correspondência, observa que os próprios escritores revelam com frequência sentimentos contraditórios quanto à eventual posteridade das cartas que escreveram. O contista e jornalista Otto Lara Resende, que escreveu nada menos do que 8500 cartas, e cujo acervo está hoje no IMS, é um bom exemplo. Ele mesmo dizia sofrer de “cocaína postal”, conta Elvia Bezerra, e prometia “queimar o seu arquivo”, mas a verdade é que “guardou cópia de todas as cartas que escreveu, e deixou tudo muito bem organizado”.
Carta a uma garrafa de uísque
Para esta espécie de antologia em crescimento da epistolografia brasileira, que inclui cartas já publicadas e cartas inéditas, Elvia Bezerra promove um “trabalho de garimpagem amplo”, pesquisando livros e arquivos, e contactando famílias e coleccionadores”, mas recorrendo também largamente aos acervos conservados no próprio Instituto Moreira Salles.
Fundado em 1992 pelo banqueiro e filantropo Walter Moreira Salles e hoje administrado pelos seus descendentes - um dos seus filhos é o cineasta Walter Salles -, o IMS possui colecções de autores como Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), Erico Verissimo (1905-1975), Mário Quintana (1906-1994), Rachel de Queiroz (1910-2003), Clarice Lispector (1920-1977), Paulo Mendes Campos (1922-1991), Lêdo Ivo (1924-2012) ou Ana Cristina Cesar (1952-1983), e ainda alguns arquivos de escritores vivos, como Lygia Fagundes Telles ou João Gilberto Noll, além de um importantíssimo conjunto de acervos de fotógrafos e vários espólios de músicos e coleccionadores.
“Por meio das cartas, pretendo mostrar uma trajectória da história da cultura brasileira, da literatura à política, das artes ao cinema, mas sem propósitos didácticos”,explica Elvia. “Não me interessa uma carta ruim ou mal escrita só porque ela prova um determinado facto”.
O que torna o critério de selecção “simples e difícil ao mesmo tempo”, diz. “Simples porque privilegiamos as cartas notáveis, sob qualquer aspecto, e difíceis porque não havendo uma critério rígido para seleccioná-las, devemos senti-las do ponto de vista histórico, social, político ou simplesmente humano, contanto que sejam boas cartas”.
E a escolha não se circunscreve à carta em sentido mais convencional, a da missiva pessoal que uma pessoa envia a outra pelo correio, mas engloba cartas abertas, como a que Graça Aranha endereçou em 1924 à Academia Brasileira de Letras, rompendo com uma instituição que considerava “antiquada” e “nefasta à literatura brasileira”, ou ainda cartas testamentárias, como a que o prolífico cronista brasileiro Rubem Braga enviou ao filho, o também escritor e jornalista Roberto Sejan Braga, pedindo-lhe que o seu corpo fosse cremado e que as cinzas fossem lançadas no rio da sua terra natal, Cachoeiro de Itapemirim. E prevendo que o filho pudesse sofrer pressões para permitir uma cerimónia mais formal, recomenda-lhe: “Não ceda aos símbolos da morte, que assustam as crianças e entristecem os adultos”.
E num país que sempre produziu grandes cronistas, não podiam faltar as cartas-crónica, como a já referida Carta de separação à garrafa de uísque de Paulo Mendes Campos, publicada em 1953 no Diário Carioca e até hoje inédita em livro. “Naquele tempo em que ainda eras pura, e em que tuas exigências de dinheiro, sem nunca ser modestas, ainda não atribulavam meu orçamento, pude manter-te com decência, não faltando jamais a nossos encontros”, recorda o escritor com nostalgia, lamentando que a relação tenha chegado a um ponto de não retorno: “Falta-me dinheiro para sustentar-te. Ah, se fosses pelo menos fiel, eu seria capaz de um esforço supremo. Mas como estás, não, meu bem. Assim não é possível”.
Nesta escolha inicial do Correio IMS há mesmo cartas que são letra de músicas, como a da célebre canção Meu Caro Amigo, em que Chico Buarque dá notícias do Brasil ao dramaturgo Augusto Boal, então exilado em Lisboa: “(…) Aqui na terra tão jogando futebol/ Tem muito samba, muito choro e rock’n’roll/ Uns dias chove, noutros dias bate sol/ Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta (…)”.
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Um “rijo e fino espírito”
Se o site é dedicado a cartas brasileiras, Elvia Bezerra precisa que “não poderia deixar de lado as cartas de portugueses que se ligaram a nós, como os membros da família imperial ou o padre Manuel da Nóbrega”. Chefe da primeira missão jesuítica no Brasil, e fundador do colégio do planalto de Piratininga, que está na origem da cidade de S. Paulo, Nóbrega lamentava-se numa carta de 1549: “Nesta terra há um grande pecado, que é terem os homens quase todos suas negras por mancebas”.
Mas o mais antigo documento seleccionado para o Correio IMS não podia deixar de ser a histórica carta em que o escrivão da frota de Pedro Álvares Cabral, Pero Vaz de Caminha, confia ao rei D. Manuel I, com realismo e minúcia, as suas primeiras impressões dessa terra a que acabara de aportar e que se viria a chamar Brasil. No volume A Epistolografia em Portugal (1965), pioneira tentativa de antologiar algumas das mais notáveis cartas portuguesas, Andrée Crabbé Rocha diz desta primeira carta luso-brasileira: “Não creio que a epistolografia de nenhum outro país do mundo se honre de possuir um documento comparável à única carta que se conhece de Pero Vaz de Caminha”.
Uma das cartas preferidas de Elvia Bezerra é a de D. Amélia Leuchtenberg ao seu enteado D. Pedro de Alcântara, nascido do primeiro casamento do imperador Pedro I (D. Pedro IV de Portugal) com Leopoldina da Áustria. “Acho comovente uma madrasta expressar sentimento materno genuíno”, justifica.
Em 1831, a braços com uma grave crise política no Brasil, e com o trono de Portugal usurpado pelo seu irmão D. Miguel, D. Pedro abdica da coroa brasileira em favor do filho e parte para a Europa. É neste contexto que D. Amélia, então com 19 anos, deixa uma emocionada carta de despedida, presumivelmente escrita enquanto lança um derradeiro olhar ao seu pequeno enteado adormecido: “És o espectáculo mais tocante que a terra pode oferecer! Quanta grandeza e quanta fraqueza a humanidade encerra, representadas por ti, criança idolatrada: uma coroa, um trono e um berço!”.
E a madrasta do futuro imperador Pedro II, obrigada por “um dever sagrado” a acompanhar o marido no exílio, garante ao seu enteado: “Ah! querido menino, se eu fosse tua verdadeira mãe, se meu ventre te tivesse concebido, nenhuma força te arrancaria dos meus braços!”. E termina rogando a todas as “mães brasileiras” que a substituam e adoptem “o órfão coroado”.
Avançando até à viragem do século, encontramos uma carta de Machado de Assis em que o extraordinário ficcionista de Memórias Póstumas de Brás Cubas lamenta a recente morte do “rijo e fino espírito” que fora o seu par português, Eça de Queiroz.
“Tomo tudo na veia”
Apesar de um contingente importante de cartas oitocentistas, a maior parte das seleccionadas são já do século XX. E há-as de todos os géneros: cartas com importância para a história da literatura brasileira, como a Carta contra os escritores mineiros (por muito amar) que Vinicius de Moraes publicou em 1944, ou cartas com relevância mais biográfica, como aquela em que Clarice Lispector pede a Erico e Mafalda Verissimo que aceitem ser “padrinhos leigos” dos seus filhos, ou a do farmacêutico José Freire Silva contando ao filho de seis anos, o já então pianista Nelson Freire, como decidiu mudar de cidade e de vida para que este pudesse aperfeiçoar o seu talento.
Há cartas divertidas, comoventes, poéticas, cartas cheias de amizade, como a de Millôr Fernandes desejando a Otto Lara Resende, então adido cultural em Lisboa, que receba em Portugal “carinho e bons tratos gerais”, e também cartas um pouco estranhas, como a que Clarice Lispector escreve ao futuro marido, Maury Gurgel Valente, em Janeiro de 1941: “Quanto a mim, estou mais ou menos o.k. Não consegui, no entanto, soltar minhas rédeas. Planos, programas, consciência, vigilância. O que vale é que misturado a tudo isso, está a vida que não para”. E a escritora acrescenta em post scriptum: “Nunca vi uma alma tão feia quanto a minha letra”.
Uma das cartas mais divertidas, até por adivinharmos o embaraço do jovem artista que se vê obrigado a contrariar um veterano, é aquela em que Chico Buarque explica ponto por ponto a Vinicius de Moraes as suas objecções às muitas alterações que este se propunha fazer na letra de Valsinha, a começar pela proposta de a rebaptizar como Valsa Hippie. Chico até vai reconhecendo que “Valsa Hippie é um título forte”, mas avisa que “pode parecer forçação de barra, com tudo o que há de hippie à venda por aí”. E deixa tudo nas mãos de Vinicius: “Estude o meu caso, exponha-o a Toquinho e Gessy [então mulher de Vinicius, que se casou nove vezes], e se não gostar foda-se, ou fodo-me eu”, resigna-se.
E uma das cartas mais notáveis, e também mais inquietantes, é a que a malograda poetisa Ana Cristina Cesar enviou ao seu amigo e confidente Armando Freitas Filho em Janeiro de 1982, menos de dois anos antes de se atirar de um oitavo andar em Copacabana: “A literatura me perturba. Uma caixa cheia de cartões-postais me perturba. A renúncia me perturba. Até uma caixa d’água, um otorrino gauche, um índice onomástico. Tomo tudo na veia”.